domingo, 14 de outubro de 2012

Comensalidade: passagem do animal ao humano

 Leonardo Boff*

Há indícios de que há 7 milhões de anos o ser humano partiu de um ancestral comum

A especificidade do ser humano surgiu de forma misteriosa e de difícil reconstituição histórica. Mas há indícios de que há 7 milhões de anos partiu de um ancestral comum, que teria começado a separação lenta e progressiva entre os símios superiores e os humanos.

Etnobiólogos e arqueólogos nos acenam para um fato singular. Quando nossos antepassados antropoides saíam a recoletar frutos, sementes, caças e peixes, não comiam individualmente. Tomavam os alimentos e os levavam ao grupo. E aí praticavam a comensalidade, o que significa: distribuíam os alimentos entre si  e comiam-nos comunitariamente. Esta comensalidade permitiu o salto da animalidade em direção à humanidade. Essa pequena diferença faz toda uma diferença.

O que ontem nos fez humanos continua ainda hoje a fazer-nos de novo humanos. E se não estiver presente, nos faremos desumanos, cruéis e sem piedade. Não é esta, lamentavelmente, a situação da humanidade atual?

Um elemento, produtor de humanidade, estreitamente ligado à comensalidade, é a culinária, vale dizer, a preparação dos alimentos. Bem escreveu Claude Lévi-Strauss, eminente antropólogo que trabalhou muitos anos no Brasil: ”O domínio da cozinha constitui uma forma de atividade humana verdadeiramente universal. Assim como não existe sociedade sem linguagem, assim também não há nenhuma sociedade que não cozinhe alguns de seus alimentos”.

Há 500 mil anos o ser humano aprendeu a fazer fogo e  a domesticá-lo. Com o fogo começou a cozinhar os alimentos. O “fogo culinário” é o que diferencia o ser humano de outros mamíferos complexos. A passagem do cru ao cozido é  considerada um dos fatores de passagem do animal ao ser humano civilizado. Com o fogo surgiu a culinária,  própria de cada povo, de cada cultura e de cada região.

Não se trata nunca de apenas  cozinhar os alimentos mas de dar-lhes sabor. As várias culinárias criam hábitos culturais, não raro vinculados, entre nós, a certas festas como o Natal (o peru), a Páscoa (ovos de chocolate), primeiro do ano (carne suína), a festa de São João (milho assado) e outras.

Nutrir-se nunca é uma mecânica biológica individual. Consumir comensalmente é comungar com os outros que conosco comem. É comungar com as energias cósmicas que subjazem aos alimentos, especialmente a fertilidade da terra, o sol, as florestas, as águas e  os ventos.
Em razão deste caráter numinoso do comer/consumir/comungar, toda comensalidade é de certa forma sacramental. Embelezamos os alimentos, porque não comemos só com a boca mas também com os olhos. O momento do comer é um dos mais esperados do dia e da noite. Há a consciência instintiva e reflexa de que sem o comer não há vida nem sobrevida, nem alegria de existir e de coexistir.

Durante milhões de anos os seres humanos eram triibutários da natureza, tiravam dela o que precisavam para sobreviver. Da apropriação dos frutos da natureza evolui-se para a sua produção  mediante a criação da agricultura que supõe a domesticação e o cultivo de sementes e plantas.

Por volta de 10 a 12 mil anos atrás, ocorreu talvez a maior revolução da história humana: de nômades, os seres humanos se fizeram sedentários. Fundaram as primeiras vilas (12.000 a.C.), inventaram a agricultura (9.000 a.C.) e começaram a domesticar e a criar animais (8.500 a.C.). Criou-se um processo civilizatório extremamente complexo, com sucessivas revoluções: a industrial, a nuclear, a cibernética, a da nanotecnologia,  a da informação até alcançar o nosso tempo.

Primeiramente, domesticaram-se vegetais e cereais selvagens, provavelmente, por mulheres mais observadoras dos ritmos da natureza. Tudo parece ter se iniciado no Oriente Médio entre os rios Tigre e Eufrates e no vale do Indus da Índia. Ai se domesticou o trigo, a cevada, a lentilha, a fava e a ervilha. Na América Latina foi o milho, o abacate, o tomate, a mandioca e os feijões. No Oriente foi o arroz e o milhete. Na Africa, o milho e o sorgo. Em seguida, por volta de 8.500 a.C. se domesticaram espécies animais, a começar pelas cabras, carneiros, depois o boi e o porco. Entre os galináceos a galinha foi a primeira. Tudo foi facilitado com a invenção da roda, da enxada e do arado e de outros utensílios de metal por volta de 4.000 a.C.

Estes poucos dados hoje são levantados cientificamente por arqueólogos e etnobiólogos, usando as mais modernas tecnologias do carbono radioativo, do microscópio eletrônico e da análise química de sedimentos, de cinzas, de pólens, de ossos e carvões de madeiras. Os resultados permitem reconstituir como era  a ecologia local e como se operava a utilização econômica por parte das populações humanas.

Ao plantar e colher trigo ou arroz elas podiam criar reservas, organizar a alimentação dos grupos, fazer crescer a família e assim a população. Teve que ganhar a vida com o suor do seu rosto. E o fez com furor. O avanço da  agricultura e da criação de animais fez desaparecer lentamente a décima parte de toda a vegetação selvagem e de animais. Não havia ainda a preocupação com a gestão responsável do meio ambiente. E é também difícil de imaginá-la, dada a riqueza dos recursos naturais e a capacidade de regeneração dos ecossistemas.

De todas as formas, o neolítico pôs em marcha um processo que nos alcança até os dias de hoje. A segurança alimentar e o grande banquete que a revolução agrícola poderia ter preparado para toda a humanidade, no qual todos seriam igualmente comensais, não pôde ser ainda celebrado. Mais de 1 bilhão de seres humanos estão ao pé da mesa, esperando alguma migalha para poderem matar a fome.

A Cúpula Mundial da Alimentação celebrada em Roma em 1996 que se propôs erradicar a fome até 2015 diz que “a seguridade alimentar existe quando todos os seres humanos têm, a todo o momento, um acesso físico e econômico a uma alimentação suficiente, sã e nutritiva, permitindo-lhes satisfazer suas necessidades energéticas e suas preferências alimentares a fim de levar uma vida sã e ativa”. Esse propósito foi assumido pelas Metas do Milênio da ONU. Lamentavelmente, a própria FAO comunicou em 1998 e agora a ONU que estes propósitos não serão alcançados a menos que se supere o fosso demasiadamente grande  das desigualdades sociais.

Enquanto não dermos este salto, não completaremos nossa humanidade. Esse é o grande desafio do século 21: tornarmo-nos plenamente humanos.
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* Leonardo Boff, teólogo e filósofo, é escritor.
-  lboff@leonardoboff.com

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