segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Nenhum caminho será longo - Para uma teologia da amizade (II)

José Tolentino Mendonça*
 

Aceitando comer e beber com os pecadores, Jesus está a infringir o poderoso sistema de pureza. Mas a verdade é que o gesto de Jesus não é apenas de rutura, mas de afirmação de uma nova experiência de Deus. Na linha da abrangência universalista do banquete messiânico que os profetas projetaram para o futuro, Jesus reivindica para o seu hoje uma vivência religiosa que vá além do reforço da legalidade, promovendo que os excluídos regressem à amizade de Deus.

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Há um provérbio que diz: «Viver sem amigos é morrer sem testemunhas.» Os amigos trazem à nossa vida uma espécie de atestação. Os amigos sabem o que é para nós o tempo. Eles testemunham que somos, que fizemos, que amamos, que perseguimos determinados sonhos e que fomos perseguidos por este ou aquele sofrimento. E fazem-no não com a superficialidade que, na maior parte das vezes, é a das convenções, mas com a forma comprometida de quem acompanha. O olhar do amigo é uma âncora.

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É sempre uma sede de liberdade que nos acorda para o gratuito. E não uma liberdade disto e daquilo. Eu diria: é antes, uma pura liberdade de ser, de sentir-se vivo; uma expansão da alma, não condicionada pela avareza das convenções; uma urgência não de dons, mas de dom. Hoje, por exemplo, uma amiga procurou-me para que eu lhe indicasse um voluntariado. Ela nem tem muito tempo, dedicada a um emprego absorvente e complexo, com os filhos numa idade em que dependem muito dela. «Talvez só possa dar duas horas de quinze em quinze dias» – disse-me. E eu retorqui-lhe, sorrindo: «Duas horas podem ser uma imensidão.»

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Abraçar a imperfeição é aceitar a amizade como uma história ainda em aberto, que conta ativamente connosco. Na imperfeição é sempre possível começar e recomeçar. A imperfeição permite-nos compreender a singularidade, a diversidade, o real impacto da passagem do tempo em cada um. É verdade que as nossas fragilidades dão-nos também a ver as nossas singularidades. E é o impacto da fragilidade em nós que mostra a nossa realidade mais profunda, mostra a vida de Deus e os seus vestígios em nós.

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A alegria é expansão pessoalíssima e profunda. Não há duas alegrias iguais, como não há duas lágrimas ou dois prantos iguais. A alegria é uma gramática singular. Por um lado, tem uma expressão física, mas, por outro, conserva uma natureza evidentemente espiritual. A alegria, se quisermos, é uma provocação do espírito que nos abeira do milagre.

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Só quem nos ama pronuncia corretamente o nosso nome, sabe o seu significado até ao fim, está apto a nomear o nosso mundo na sua complexa e enigmática inteireza. Só quem nos ama é capaz de ver-nos como realmente somos: esta mistura apaixonada e contraditória, esta aventura conseguida e, ainda assim, inacabada, esta pulsão de nervos e de alma, de opacidade e vislumbre.

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A confiança não vive de uma imagem estática ou aprisionada do outro. Ter confiança é admitir a possibilidade de mudança, de viragem, de deslocação e, num certo sentido, também de “traição”. É claro que cada vez que a traição se desenha, ela surpreende e fere, precisamente porque ocorre dentro de um espaço de confiança.

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A verdadeira amizade transfigura e amplia a nossa humanidade, dá-nos competências afetivas, estimula-nos a abrir o círculo, a fazer mais, a ser melhor. A amizade inspira-nos a desmontarmos, inclusive, a lógica da inimizade, como nos desafia Jesus: «Ouvistes o que foi dito: Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo. Eu, porém, digo-vos: Amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem.»
 
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Uma coisa é entender, na amizade, a confiança como um abandono mágico à benevolência ou à proteção do outro. Esse é um estádio insuficiente, que somos chamados a transcender. Outra, mais adulta espiritualmente, é compreender que a vulnerabilidade integra o dinamismo da própria confiança. A vida é polifónica, é um horizonte de múltiplos trânsitos, muitos deles inacabados e imperfeitos, é um trânsito de encontros e reencontros, de feridas e de reconstruções. As amizades mais fortes são as que aceitam os seus caminhos frágeis, as suas costuras humildes.

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A solidão tem um sentido ambivalente. Tanto pode nomear uma experiência de labirinto, de humilhação e ausência extrema como constituir o habitat buscado para um encontro mais profundo consigo mesmo, com os outros, com Deus. A solidão não é ela também uma porta? Não se revela, às vezes, no mais silencioso isolamento, uma visão inesperada?

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A despedida talvez seja a parte mais difícil da amizade. Não se pode dizer muita coisa. Acho que aprendemos devagar, por vezes com muito custo, por vezes mais serenamente, e ambas as coisas estão certas. Aprendi alguma coisa sobre a arte da despedida com o poeta italiano Tonino Guerra e a sua mulher. Parece que é uma tradição russa (ou pelo menos, eles explicavam-na assim). Antes de partir, ficávamos junto uns dos outros, por uns instantes, em puro silêncio. E, depois, despedíamo-nos de um modo leve, quase alegre, como se não nos fôssemos realmente ausentar. Aqueles instantes de silêncio, porém, tinham atado os nossos corações com uma força que raras palavras teriam. Quando, nas despedidas da vida, nos parece que ficou, inevitavelmente, alguma coisa ou quase tudo por dizer, é bom pensar naquilo que o silêncio disse, ao longo do tempo, de coração a coração.

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Alguns amigos tornam-nos herdeiros de um lugar, outros de uma morada, outros de uma razão pela qual viver. Certos amigos deixam-nos o mapa depois da viagem, ou o barco em qualquer enseada, oculto ainda na folhagem, ou o azul desamparado e irresistível que lhes serviu de motivo para a demanda. Há amigos que iniciam-nos na decifração do fogo, na escuta dos silêncios da terra, no entendimento de nós próprios. Há amigos que nos conduzem ao centro de bosques, à geografia de cidades, ao segredo que ilumina a penumbra do templo, à bondade de Deus.
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José Tolentino Mendonça. Teólogo. Escritor. Poeta.
In Nenhum caminho será longo - Para uma teologia da amizade, ed. Paulinas
30.09.12
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