José Tolentino Mendonça*
Aceitando comer e beber com os pecadores, Jesus
está a infringir o poderoso sistema de pureza. Mas a verdade é que o
gesto de Jesus não é apenas de rutura, mas de afirmação de uma nova
experiência de Deus. Na linha da abrangência universalista do banquete
messiânico que os profetas projetaram para o futuro, Jesus reivindica
para o seu hoje uma vivência religiosa que vá além do reforço da
legalidade, promovendo que os excluídos regressem à amizade de Deus.
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Há um provérbio que diz: «Viver sem amigos é
morrer sem testemunhas.» Os amigos trazem à nossa vida uma espécie de
atestação. Os amigos sabem o que é para nós o tempo. Eles testemunham
que somos, que fizemos, que amamos, que perseguimos determinados sonhos
e que fomos perseguidos por este ou aquele sofrimento. E fazem-no não
com a superficialidade que, na maior parte das vezes, é a das
convenções, mas com a forma comprometida de quem acompanha. O olhar do
amigo é uma âncora.
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É sempre uma sede de liberdade que nos acorda
para o gratuito. E não uma liberdade disto e daquilo. Eu diria: é
antes, uma pura liberdade de ser, de sentir-se vivo; uma expansão da
alma, não condicionada pela avareza das convenções; uma urgência não de
dons, mas de dom. Hoje, por exemplo, uma amiga procurou-me para que eu
lhe indicasse um voluntariado. Ela nem tem muito tempo, dedicada a um
emprego absorvente e complexo, com os filhos numa idade em que dependem
muito dela. «Talvez só possa dar duas horas de quinze em quinze dias» –
disse-me. E eu retorqui-lhe, sorrindo: «Duas horas podem ser uma
imensidão.»
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Abraçar a imperfeição é aceitar a amizade como
uma história ainda em aberto, que conta ativamente connosco. Na
imperfeição é sempre possível começar e recomeçar. A imperfeição
permite-nos compreender a singularidade, a diversidade, o real impacto
da passagem do tempo em cada um. É verdade que as nossas fragilidades
dão-nos também a ver as nossas singularidades. E é o impacto da
fragilidade em nós que mostra a nossa realidade mais profunda, mostra a
vida de Deus e os seus vestígios em nós.
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A alegria é expansão pessoalíssima e profunda.
Não há duas alegrias iguais, como não há duas lágrimas ou dois prantos
iguais. A alegria é uma gramática singular. Por um lado, tem uma
expressão física, mas, por outro, conserva uma natureza evidentemente
espiritual. A alegria, se quisermos, é uma provocação do espírito que
nos abeira do milagre.
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Só quem nos ama pronuncia corretamente o nosso
nome, sabe o seu significado até ao fim, está apto a nomear o nosso
mundo na sua complexa e enigmática inteireza. Só quem nos ama é capaz
de ver-nos como realmente somos: esta mistura apaixonada e
contraditória, esta aventura conseguida e, ainda assim, inacabada, esta
pulsão de nervos e de alma, de opacidade e vislumbre.
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A confiança não vive de uma imagem estática ou
aprisionada do outro. Ter confiança é admitir a possibilidade de
mudança, de viragem, de deslocação e, num certo sentido, também de
“traição”. É claro que cada vez que a traição se desenha, ela
surpreende e fere, precisamente porque ocorre dentro de um espaço de
confiança.
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A verdadeira amizade transfigura e amplia a nossa
humanidade, dá-nos competências afetivas, estimula-nos a abrir o
círculo, a fazer mais, a ser melhor. A amizade inspira-nos a
desmontarmos, inclusive, a lógica da inimizade, como nos desafia Jesus:
«Ouvistes o que foi dito: Amarás o teu próximo e odiarás o teu
inimigo. Eu, porém, digo-vos: Amai os vossos inimigos e orai pelos que
vos perseguem.»
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Uma coisa é entender, na amizade, a confiança
como um abandono mágico à benevolência ou à proteção do outro. Esse é
um estádio insuficiente, que somos chamados a transcender. Outra, mais
adulta espiritualmente, é compreender que a vulnerabilidade integra o
dinamismo da própria confiança. A vida é polifónica, é um horizonte de
múltiplos trânsitos, muitos deles inacabados e imperfeitos, é um
trânsito de encontros e reencontros, de feridas e de reconstruções. As
amizades mais fortes são as que aceitam os seus caminhos frágeis, as
suas costuras humildes.
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A solidão tem um sentido ambivalente. Tanto pode
nomear uma experiência de labirinto, de humilhação e ausência extrema
como constituir o habitat buscado para um encontro mais profundo
consigo mesmo, com os outros, com Deus. A solidão não é ela também uma
porta? Não se revela, às vezes, no mais silencioso isolamento, uma
visão inesperada?
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A despedida talvez seja a parte mais difícil da
amizade. Não se pode dizer muita coisa. Acho que aprendemos devagar,
por vezes com muito custo, por vezes mais serenamente, e ambas as
coisas estão certas. Aprendi alguma coisa sobre a arte da despedida com
o poeta italiano Tonino Guerra e a sua mulher. Parece que é uma
tradição russa (ou pelo menos, eles explicavam-na assim). Antes de
partir, ficávamos junto uns dos outros, por uns instantes, em puro
silêncio. E, depois, despedíamo-nos de um modo leve, quase alegre, como
se não nos fôssemos realmente ausentar. Aqueles instantes de silêncio,
porém, tinham atado os nossos corações com uma força que raras palavras
teriam. Quando, nas despedidas da vida, nos parece que ficou,
inevitavelmente, alguma coisa ou quase tudo por dizer, é bom pensar
naquilo que o silêncio disse, ao longo do tempo, de coração a coração.
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Alguns amigos tornam-nos herdeiros de um lugar,
outros de uma morada, outros de uma razão pela qual viver. Certos
amigos deixam-nos o mapa depois da viagem, ou o barco em qualquer
enseada, oculto ainda na folhagem, ou o azul desamparado e irresistível
que lhes serviu de motivo para a demanda. Há amigos que iniciam-nos na
decifração do fogo, na escuta dos silêncios da terra, no entendimento
de nós próprios. Há amigos que nos conduzem ao centro de bosques, à
geografia de cidades, ao segredo que ilumina a penumbra do templo, à
bondade de Deus.
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José Tolentino Mendonça. Teólogo. Escritor. Poeta.
In Nenhum caminho será longo - Para uma teologia da amizade, ed. Paulinas
30.09.12
In Nenhum caminho será longo - Para uma teologia da amizade, ed. Paulinas
30.09.12
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