NICOLAU SEVCENKO*
Depoimento
Professor brasileiro lembra de quando dividiu uma sala com o historiador inglês em Londres
Expondo críticas ele me acossava como um grande mestre diante de um calouro num tabuleiro de xadrez
Expondo críticas ele me acossava como um grande mestre diante de um calouro num tabuleiro de xadrez
Era um evento regular, perfeitamente previsível. Três horas da tarde, o
som de passos pesados começava a ecoar nos andares inferiores.
Aos poucos, à medida que avançavam, o assoalho todo começava a tremer.
Plóf..., plóf..., plóf..., o ruído aumentava, a trepidação crescente
fazia a xícara de chá tremular no pires.
De repente, num estrondo, a porta escancarava e aparecia a figura
ofegante do professor Eric Hobsbawm, morto anteontem aos 95 anos.
Cara vermelha, olhos injetados, à beira de uma apoplexia. Havia vencido
heroicamente os três andares através de uma escada estreita e íngreme,
ingressando afinal no seu escritório, sala 33 da Tavistock Square nº 35,
sede do Instituto de Estudos Latino Americanos da Universidade de
Londres.
A direção do IELA havia insistido várias vezes para que ele aceitasse se
alojar nos andares inferiores. Nunca aceitou. A sala 33 era uma das
maiores e nela ele dispunha sua miríade de livros, em estantes
horizontais, pilhas verticais, arcos, pirâmides e labirintos. Sempre
sabia encontrar o que precisava.
Vinha ao prédio de sapatos, mas trocava por um par de tênis
especialmente reservado para a grande escalada. Chegando, levava alguns
minutos para recuperar o fôlego, e logo se punha a trabalhar
concentrado. Nunca se queixou do esforço.
Tive o raro privilégio de dividir aquela sala com o mestre entre fins da
década de 80 e início de 90. Foram anos decisivos, o colapso dos
regimes da Europa Oriental desafiava suas convicções e o melhor de suas
energias intelectuais.
O telefone não parava: jornalistas, editores, intelectuais, ativistas,
revolucionários, alunos, artistas, autoridades, gentes anônimas que liam
seus artigos. Atendia a todos com a mesma atenção e paciência. Não
tinha secretária.
Acabada a sessão telefônica, desconectava discretamente o aparelho e se
dedicava a escolher dentre os livros recebidos aqueles que, como editor,
distribuiria dentre os colaboradores da revista do partido para serem
resenhados.
Depois, vinha o momento que eu mais ansiava: ele se punha a comentar os
tais livros comigo, um mero pretexto para organizar mentalmente suas
ideias, esboçando a edição da revista.
Gentilmente, me perguntava sobre o andamento das minhas pesquisas,
fornecendo indicações preciosas, rebuscando dentre seu enorme acervo
tudo o que considerava relevante para o desenvolvimento do trabalho. Não
raro, me trazia livros de sua biblioteca pessoal.
Sua generosidade era espontânea e genuína.
Ele conhecia muito bem o objeto da minha pesquisa, a transformação
cultural dramática de São Paulo nos anos 1920, tema do que seria o livro
Orfeu Extático na Metrópole. Havia ali uma crítica explícita a um
modelo de política de massas que dissentia abertamente de suas
concepções políticas.
Expondo suas críticas e discordâncias, ele me acossava como um grande
mestre diante de um calouro num tabuleiro de xadrez. Mas jamais me deu o
xeque-mate. Seu respeito pelos interlocutores era do tamanho da sua
generosidade.
Divergindo, ele me ajudou e fertilizou meu trabalho como se eu fora seu dileto discípulo. Não era só comigo.
Quem entrava naquela sala tinha acesso imediato ao melhor da sua
privilegiada inteligência crítica, sua erudição infinita e a inspiração
da sua sólida integridade intelectual.
Num mundo de moralidade dissolvente e corrosão sistemática do
conhecimento erudito, a ausência de Eric Hobsbawm soa como um colapso.
O mundo era maior e mais promissor na confusão criativa da sala 33,
Tavistock Square nº 35, do que será agora, para sempre fora dela.
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*NICOLAU SEVCENKO é professor titular de línguas e literaturas
neo-latinas da Universidade Harvard e professor aposentado de história
da cultura da Universidade de São Paulo
ESPECIAL PARA A FOLHA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Fonte: Folha on line, 03/10/2012
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