“Meu
pai começou a comer lentamente; pouco tempo depois colocou os
palitinhos na mesa, empurrou a tigela para o lado e parou. Passados
alguns minutos, ele disse:
___
Antigamente, os Xu só tinham um frango; ele cresceu e se tornou um
ganso; o ganso cresceu e se transformou numa cabra; eles cuidaram da
cabra, e ela se tornou um búfalo. Foi dessa forma que a nossa família
prosperou.
A voz de meu pai era apenas um sussurro. Depois de uma pausa, ele disse:
___
Quando chegaram às minhas mãos, os búfalos da família Xu se
transformaram em cabras e as cabras, em gansos. Na sua geração, os
gansos se transformaram em galinhas, e agora nem aquele frango temos
mais!” (Yu Hua, trecho de Viver)
(resenha publicada originalmente, sem notas de rodapé ou anexo, em A TRIBUNA de Santos, em 16 de outubro de 2012)
O Nobel de literatura 2012, Mo Yan, e Yu Hua,
além de pertencerem mais ou menos à mesma geração (faixa dos 50 anos),
têm em comum o fato de que ambos foram adaptados para o cinema por um
mesmo diretor, o celebrado Zhang Yimou, de Lanternas Vermelhas[1].
O
que eles não têm em comum é uma tradução brasileira. Ao contrário de
seu compatriota, Yu Hua já teve três de seus romances lançados por aqui,
e Viver, de 1993 (aquele que foi filmado por Yimou) teve a
especial sorte de ser vertido do original, escapando da sina habitual
das versões indiretas, traduzidas do inglês (caso de seus outros livros
até agora) ou do francês, o que por vezes gera um texto estranhíssimo
(caso da grande obra A montanha da alma, do outro autor chinês nobelizado, Gao Xingjian[2]).
É algo totalmente diferente da experiência de ler, por exemplo, Ha Jin
(outro da mesma geração), que emigrou para o Ocidente e escreve seus
romances em inglês (A espera, O ensandecido).
Portanto, Viveré avis rara
em todos os sentidos, mesmo porque, por todos os indícios, a tradutora
Márcia Schmaltz encontrou o tom preciso para o texto brasileiro.
O
relato brinca com a oralidade, com a narrativa proverbial do camponês
experiente e sua sabedoria de vida: Fugui, já bem idoso e ainda
trabalhando duramente, uma “formiga”, conta a história de sua família
para o narrador inicial, um misto de artista mambembe e vagabundo, uma
“cigarra”.
A
história de Fugui é terrível, ao mesmo tempo sujeita às fatalidades do
destino e às monstruosas experiências a que certos regimes submetem
populações inteiras, desfazendo suas referências, impondo códigos
arbitrários e conduta, disciplina e produtividade, como aconteceu nas
contrafações institucionalizadas do comunismo.
Começa
nos anos 1940: ele é um herdeiro mimado e esbanjador, que não dá valor a
Jiazhen, a esposa grávida (já têm uma filha), e perde tudo no jogo
(entre os hábitos encantadores do jovem Fugui está o de montar pessoas
como cavalos, incluindo a sua favorita entre as prostitutas do bordel do
qual é freguês contumaz, que o leva montado pelas ruas da cidade,
afrontando inclusive o sogro, comerciante respeitável); a partir daí se
torna um camponês pobretão, sujeito ao tempo meteorológico e aos rumos
políticos, igualmente instáveis: é recrutado á força para uma guerra que
não entende (a que dará a vitória ao comunismo maoista), e aos poucos
vai perdendo tragicamente todos os membros da família (o filho, num
episódio particularmente grotesco; a filha; a esposa; o genro; o neto).
O
que me deixa pasmado no romance de Yu Hua é a sua capacidade de nos
dar uma ideia bem precisa da passagem do tempo: o velho Fugui recorda de
uma forma dolorosa, mas ao mesmo tempo ele é um homem espirituoso, cuja
maior força é não ter perdido o fio da meada da sua existência, ao
contrário da maioria dos camponeses (e daí decorre um jogo de
perspectivas que contrariam a suposta “simplicidade” do relato). Além
disso, o maior mistério do livro é como o talentoso autor chinês
conseguiu concentrar tantas décadas numa narrativa de 200 páginas?
Isso
acontece, em primeiro lugar, porque dá a voz a um participante da
história. Dessa vez, ao contrário do clichê de tantas histórias do
gênero, não é um descendente mais bem-informado e de fora que
reconstitui os fatos (mesmo com a presença do primeiro narrador, ela
serve mais como moldura e modo de transição para a grande fala de
Fugui). Além disso, todas as circunstâncias “históricas”, por assim
dizer, são dadas através das relações entre os personagens, sem
digressões ou explicações, o que torna Viver muito mais envolvente e dinâmico do que o usual nesse tipo de narrativa, com foco no universo rural, da “longa duração”.
Eu
também gostaria de destacar o final do romance (quando, tendo perdido
todos, Fugui consegue dinheiro para, finalmente, comprar um búfalo),
quando não a extraordinária maneira como ele vai desenhando
delicadamente o afeto conjugal e companheirismo que se tornam mais e
mais profundos entre o protagonista e Jiazhen. Toda a construção do
episódio derradeiro (a compra do búfalo) é tão comovente, que me levou,
eu que já me creio um leitor de coração empedernido, às lágrimas,
principalmente pelo que ele representa de compreensão de si mesmo, da
sua condição, por parte desse personagem tão maravilhoso. Como um autor
de 32 anos conseguiu essa sabedoria, esse fecho tão pouco piegas, mas ao
mesmo tempo tão “humano”, por isso mesmo tão incomum num panorama cada
vez mais dominado pelos autores blasés ou pelas fórmulas sentimentais do
mercado?
Que venham mais chineses.
ANEXO- Trecho de “Viver”:
“No
dia em que fui comprar o búfalo, guardei o dinheiro na camisa e fui até
Xinfeng, onde existe uma grande feira de bovinos. No caminho, ao passar
por uma aldeia próxima, vi pessoas em volta da eira e de curioso me
aproximei. Estavam todos olhando para este búfalo, que estava estendido
de bruços, com a cabeça inclinada para um lado e lágrimas saindo dos
olhos. A seu lado, um homem sem camisa, agachado, afiava a faca,
enquanto as pessoas ao redor discutiam onde ele devia enfiar o punhal.
Ao ver o búfalo chorando tão triste, fiquei com pena. Pensei em como era
trágica a vida daquele animal. Trabalhara a vida inteira pelo homem,
mas quando suas forças se esgotaram, seria abatido para servir de
alimento.
Não tive coragem de ver aquilo, então me afastei da eira e retomei meu
percurso para Xinfeng. Ia andando, mas não conseguia parar de pensar no
búfalo. Ele sabia que ia morrer—havia uma poça de lágrimas debaixo de
sua cabeça.
Quanto mais eu me afastava, mais aflito me sentia. Pensei melhor e
decidi comprar o búfalo. Voltei com passos apressados. Quando cheguei na
eira, já haviam amarrado as pernas do animal. Avancei rapidamente e
perguntei ao homem que afiava a faca:
___ Faça uma boa ação. Me venda esse búfalo.
O homem de torso nu testava o fio da faca com o dedo. Olhou para mim por um tempo, depois perguntou:
___ O que você disse?
___ Quero comprar esse búfalo—repeti.
Ele riu e foi acompanhado pelo pessoal que estava em volta. Eu sabia
que estavam rindo de mim; então tirei o dinheiro da camisa, pus na mão
dele e falei:
___ Confira.
O homem ficou espantado; me olhou de cima a baixo (...) soltei a soga
que amarrava o pé do búfalo. Me levantei e toquei a cabeça do animal. E o
bicho era realmente inteligente: percebendo que não ia mais morrer,
levantou-se rapidinho e as lágrimas deixaram de cair (...) Afastei-me,
arrastando o animal, e em seguida a multidão começou a gargalhar atrás
de mim (...) o bicho esfregava o corpo no meu para mostrar sua afeição.
Avisei para ele:
___ Por que você está tão feliz? Estou levando você embora para trabalhar comigo, e não para mimá-lo.
Levei o búfalo para a aldeia e lá todos se aproximaram para ver a
novidade. Diziam que eu era um velho tolo por ter comprado um búfalo
velho. Um dos aldeões chegou a comentar:
___ Fugui, pelo jeito o búfalo é mais velho do que o seu pai.
Outro aldeão, que entendia de búfalo, falou que aquele viveria no
máximo mais dois ou três anos. Era o suficiente para mim, talvez eu nem
vivesse tanto tempo. Quem poderia imaginar que nós dois estaríamos
vivos até hoje, lépidos e faceiros? Os aldeões quase não acreditam! Uns
dois dias atrás, alguém me disse que éramos ´dois imortais´.
O búfalo virou membro da minha família; como tal, deveria ter um nome.
Pensei a respeito e decidi que o melhor era chamá-lo de Fugui.
Chamando-o por meu próprio nome, sentia-me realizado—ele realmente é
muito parecido comigo. Até as pessoas da aldeia começaram a dizer que
éramos muito parecidos. Eu ria baixinho e pensava: já sei disso faz
tempo...”
[1]
Yimou divide opiniões: uns acham seus filmes “bonitos demais” e sua
produção em geral sem uma consistência mais convincente, mas ninguém
nega tratar-se de um grande estilista da imagem. Em todo o caso, o
primeiro filme de Yimou foi uma versão de Sorgo Vermelho do Nobel de literatura de 2012. E nunca esqueço do impacto que senti quando vi Amor e Sedução.
[2]
Trata-se de um trabalho excelente e virtuosístico de Marcos de Castro;
porém, parece que estamos lendo um texto de algum representante tardio
do “noveau roman”, com um travejamento de linguagem que se aproxima
muito dos autores daquele suposto movimento, como Michel Butor, Duras
etc. O elemento “chinês”, por assim dizer, fica estranho dentro do
próprio movimento do texto. Se A Montanha da Alma fosse uma
tradução direta, tudo bem; entretanto, ainda que Xingjian tenha aprovado
amplamente a versão francesa em que se baseia a brasileira, não há como
negar que todo um modo peculiar ao país de adoção do Nobel de 2000 se
interpõe entre o que lá é apresentado e dito sobre a China e nós,
leitores ocidentais, que dificilmente ficamos convencidos com a viagem
em tom de filme de Alain Resnais de um narrador (dividido entre um “eu” e
um “você” na alternância dos capítulos) pela China “profunda”.
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