quarta-feira, 17 de outubro de 2012

(活着) VIVER, de Yu Hua, ou QUE VENHAM MAIS CHINESES!



“Meu pai começou a comer lentamente; pouco tempo depois colocou os palitinhos na mesa, empurrou a tigela para o lado e parou. Passados alguns minutos, ele disse:
___ Antigamente, os Xu só tinham um frango; ele cresceu e se tornou um ganso; o ganso cresceu e se transformou numa cabra; eles cuidaram da cabra, e ela se tornou um búfalo. Foi dessa forma que a nossa família prosperou.
   A voz de meu pai era apenas um sussurro. Depois de uma pausa, ele disse:
___ Quando chegaram às minhas mãos, os búfalos da família Xu se transformaram em cabras e as cabras, em gansos. Na sua geração, os gansos se transformaram em galinhas, e agora nem aquele frango temos mais!” (Yu Hua, trecho de Viver)
(resenha publicada originalmente, sem notas de rodapé ou anexo, em A TRIBUNA de Santos, em 16 de outubro de 2012)
O Nobel de literatura 2012, Mo Yan, e Yu Hua, além de pertencerem mais ou menos à mesma geração (faixa dos 50 anos), têm em comum o fato de que ambos foram adaptados para o cinema por um mesmo diretor, o celebrado Zhang Yimou, de Lanternas Vermelhas[1].
O que eles não têm em comum é uma tradução brasileira. Ao contrário de seu compatriota, Yu Hua já teve três de seus romances lançados por aqui, e Viver, de 1993 (aquele que foi filmado por Yimou) teve a especial sorte de ser vertido do original, escapando da sina habitual das versões indiretas, traduzidas do inglês (caso de seus outros livros até agora) ou do francês, o que por vezes gera um texto estranhíssimo  (caso da grande obra A montanha da alma, do outro autor chinês nobelizado, Gao Xingjian[2]). É algo totalmente diferente da experiência de ler, por exemplo, Ha Jin (outro da mesma geração), que emigrou para o Ocidente e escreve seus romances em inglês (A espera, O ensandecido).
Portanto, Viveré avis rara em todos os sentidos, mesmo porque, por todos os indícios, a tradutora  Márcia Schmaltz encontrou o tom preciso para o texto brasileiro.
O relato brinca com a oralidade, com a narrativa proverbial do camponês experiente e sua sabedoria de vida: Fugui, já bem idoso e ainda trabalhando duramente, uma “formiga”, conta a história de sua família para o narrador inicial, um misto de artista mambembe e vagabundo, uma “cigarra”.
A história de Fugui é terrível, ao mesmo tempo sujeita às fatalidades do destino e às monstruosas experiências  a que certos regimes submetem populações inteiras, desfazendo suas referências, impondo códigos arbitrários e conduta, disciplina e produtividade, como aconteceu nas contrafações institucionalizadas do comunismo.
Começa nos anos 1940: ele é um herdeiro mimado e esbanjador, que não dá valor a Jiazhen, a esposa grávida (já têm uma filha), e perde tudo no jogo (entre os hábitos encantadores do jovem Fugui está o de montar pessoas como cavalos, incluindo a sua favorita entre as prostitutas do bordel do qual é freguês contumaz, que o leva montado pelas ruas da cidade, afrontando inclusive o sogro, comerciante respeitável); a partir daí se torna um camponês pobretão, sujeito ao tempo meteorológico e aos rumos políticos, igualmente instáveis: é recrutado á força para uma guerra que não entende (a que dará a vitória ao comunismo maoista), e aos poucos vai perdendo tragicamente todos os membros da família (o filho, num episódio particularmente grotesco; a filha; a esposa; o genro; o neto).
O que me deixa pasmado no romance de Yu Hua é a sua capacidade de  nos dar uma ideia bem precisa da passagem do tempo: o velho Fugui recorda de uma forma dolorosa, mas ao mesmo tempo ele é um homem espirituoso, cuja maior força é não ter perdido o fio da meada da sua existência, ao contrário da maioria dos camponeses (e daí decorre um jogo de perspectivas que contrariam a suposta “simplicidade” do relato). Além disso, o maior mistério do livro é como o talentoso autor chinês conseguiu concentrar tantas décadas numa narrativa de 200 páginas?
Isso acontece, em primeiro lugar, porque dá a voz a um participante da história. Dessa vez, ao contrário do clichê de tantas histórias do gênero, não é um descendente mais bem-informado e de fora que reconstitui os fatos (mesmo com a presença do primeiro narrador, ela serve mais como moldura e modo de transição para a grande fala de Fugui). Além disso, todas as circunstâncias “históricas”, por assim dizer, são dadas através das relações entre os personagens, sem digressões ou explicações, o que torna Viver muito mais envolvente e dinâmico do que o usual nesse tipo de narrativa, com foco no universo rural, da “longa duração”.
Eu também gostaria de destacar o final do romance (quando, tendo perdido todos, Fugui consegue dinheiro para, finalmente, comprar um búfalo), quando não a extraordinária maneira como ele vai desenhando delicadamente o afeto conjugal e companheirismo que se tornam mais e mais profundos entre  o protagonista e Jiazhen. Toda a construção do episódio derradeiro (a compra do búfalo) é tão comovente, que me levou, eu que já me creio um leitor de coração empedernido, às lágrimas, principalmente pelo que ele representa de compreensão de si mesmo, da sua condição, por parte desse personagem tão maravilhoso. Como um autor de 32 anos conseguiu essa sabedoria, esse fecho tão pouco piegas, mas ao mesmo tempo tão “humano”, por isso mesmo tão incomum num panorama cada vez mais dominado pelos autores blasés ou pelas fórmulas sentimentais do mercado?
Que venham mais chineses.
ANEXO- Trecho de “Viver”:
“No dia em que fui comprar o búfalo, guardei o dinheiro na camisa e fui até Xinfeng, onde existe uma grande feira de bovinos. No caminho, ao passar por uma aldeia próxima, vi pessoas em volta da eira e de curioso me aproximei. Estavam todos olhando para este búfalo, que estava estendido de bruços, com a cabeça inclinada para um lado e lágrimas saindo dos olhos. A seu lado, um homem sem camisa, agachado, afiava a faca, enquanto as pessoas ao redor discutiam onde ele devia enfiar o punhal. Ao ver o búfalo chorando tão triste, fiquei com pena. Pensei em como era trágica a vida daquele animal. Trabalhara a vida inteira pelo homem, mas quando suas forças se esgotaram, seria abatido para servir de alimento.
   Não tive coragem de ver aquilo, então me afastei da eira e retomei meu percurso para Xinfeng. Ia andando, mas não conseguia parar de pensar no búfalo. Ele sabia que ia morrer—havia uma poça de lágrimas debaixo de sua cabeça.
   Quanto mais eu me afastava, mais aflito me sentia. Pensei melhor e decidi comprar o búfalo. Voltei com passos apressados. Quando cheguei na eira, já haviam amarrado as pernas do animal. Avancei rapidamente e perguntei ao homem que afiava a faca:
___ Faça uma boa ação. Me venda esse búfalo.
   O homem de torso nu testava o fio da faca com o dedo. Olhou para mim por um tempo, depois perguntou:
___ O que você disse?
___ Quero comprar esse búfalo—repeti.
   Ele riu e foi acompanhado pelo pessoal que estava em volta. Eu sabia que estavam rindo de mim; então tirei o dinheiro da camisa, pus na mão dele e falei:
___ Confira.
   O homem ficou espantado; me olhou de cima a baixo (...) soltei a soga que amarrava o pé do búfalo. Me levantei e toquei a cabeça do animal. E o bicho era realmente inteligente: percebendo que não ia mais morrer, levantou-se rapidinho e as lágrimas deixaram de cair (...) Afastei-me, arrastando o animal, e em seguida a multidão começou a gargalhar atrás de mim (...) o bicho esfregava o corpo no meu para mostrar sua afeição. Avisei para ele:
___ Por que você está tão feliz? Estou levando você embora para trabalhar comigo, e não para mimá-lo.
   Levei o búfalo para a aldeia e lá todos se aproximaram para ver a novidade.  Diziam que eu era um velho tolo por ter comprado um búfalo velho. Um dos aldeões chegou a comentar:
___ Fugui, pelo jeito o búfalo é mais velho do que o seu pai.
   Outro aldeão, que entendia de búfalo, falou que aquele viveria no máximo mais dois ou três anos. Era o suficiente para mim, talvez eu nem vivesse tanto tempo. Quem poderia imaginar que  nós dois estaríamos vivos até hoje, lépidos e faceiros? Os aldeões quase não acreditam! Uns dois dias atrás, alguém me disse que éramos ´dois imortais´.
   O búfalo virou membro da minha família; como tal, deveria ter um nome. Pensei a respeito e decidi que o melhor era chamá-lo de Fugui. Chamando-o por meu próprio nome, sentia-me realizado—ele realmente é muito parecido comigo. Até as pessoas da aldeia começaram a dizer que éramos muito parecidos. Eu ria baixinho e pensava: já sei disso faz tempo...”

[1] Yimou divide opiniões: uns acham seus filmes “bonitos demais” e sua produção em geral sem uma consistência mais convincente, mas ninguém nega tratar-se de um grande estilista da imagem. Em todo o caso, o primeiro filme de Yimou foi uma versão de Sorgo Vermelho do Nobel de literatura de 2012. E nunca esqueço do impacto que senti quando vi Amor e Sedução.

[2] Trata-se de um trabalho excelente e virtuosístico de Marcos de Castro; porém, parece que estamos lendo um texto de algum representante tardio do “noveau roman”, com um travejamento de linguagem que se aproxima muito dos autores daquele suposto movimento, como Michel Butor, Duras etc. O elemento “chinês”, por assim dizer, fica estranho dentro do próprio movimento do texto. Se A Montanha da Alma fosse uma tradução direta, tudo bem; entretanto, ainda que Xingjian tenha aprovado amplamente a versão francesa em que se baseia a brasileira, não há como negar que todo um modo peculiar ao país de adoção do Nobel de 2000 se interpõe entre o que lá é apresentado e dito sobre a China e nós, leitores ocidentais, que dificilmente ficamos convencidos com a viagem em tom de filme de Alain Resnais de um narrador (dividido entre um “eu” e um “você” na alternância dos capítulos) pela China “profunda”.
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