Paulo Ghiraldelli Jr.*
Há
dois ultrajadores de Deus que não são nada amigos entre si, mas que às
vezes a consciência popular os articula: Nietzsche e Darwin.
Darwin guiou-se pela idéia de evolução
pela aleatoriedade das chances dos que viessem a ser diferentes. Assim,
em princípio, não haveria nenhum fim teleológico no processo evolutivo.
Mas, é claro, isso não é verdade. Pois, no limite, o fio da
sobrevivência aponta para o êxito da vida melhor adaptada. Nietzsche,
por sua vez, ao falar em vontade de potência, cita o exemplo de seres
unicelulares que, na busca de apanhar uma gotícula de água que os
ampliaria em tamanho, acabam estourando e perecendo. Em Nietzsche, o
princípio de autoconservação, se é que cumpre alguma função, é a de
engodo. Na verdade, ele não exite.
A vida darwiniana ou, melhor, um tipo de
“impulso vital”, está prenhe de autoconservação. Pensando nessa linha, a
vida requebra aqui e eli, passa por todo tipo de transformação, mas
tenta se preservar. Diferentemente, a vida nietzschiana está prenhe da
busca do êxtase dionisíaco e, portanto, chuta a autoconservação para o
lado a todo instante. Se há alguma luta pela autopreservação, ela é
apenas um mecanismo de funcionamento não da vida, mas dos cansados da
vida – os fracos. A mamãe Natureza de Darwin pode não conseguir
preservar os indivíduos, mas pela mutabilidade das espécies preserva a
vida. A madrasta Natureza de Nietzsche joga o bebê junto com a água do
banho se lhe oferecerem uma taça de vinho.
Talvez Nietsche tenha sido um dos únicos
filósofos que efetivamente, ao montar uma cosmologia, livrou-se do tal
princípio de autoconservação, pelo qual ainda hoje julgamos se alguém
está louco de fato ou não, para ficar ininputável. Só quem atenta contra
a própria vida ou contra a vida de filhos é posto, realmente, por voto
unânime, na porta do manicômio. Perdeu a razão – dizem. Nietzsche nunca
ligou para essa conversa de perda da razão ou ganho da razão. Ele não
quis montar uma metafísica da razão ou da desrazão. Ele brincou
livremente, por meio de dados da ciência e da história que ele catou ali
e aqui sem qualquer preocupação com “rigor científico”, na construção
de uma cosmologia. Ele imitou os pré-socráticos, mas com humor e com o
espírito muito mais infantil do que qualquer outro filósofo.
A ligação de Nietzsche com Darwin, que
às vezes aparece na literatura mais ou menos popular, é um erro crasso.
Perpetuou-se por conta de agrupamentos de jargões díspares que jamais
poderiam ser postos juntos caso se quisesse preservar o espírito de um
ou do outro pensador, segundo um mínimo de seriedade filosófica. Mas,
enfim, à medida que surgiu o darwinismo social como um aglomerado de
frases que foram resumidas pelo “tudo é feito pelo caminho de uma luta
onde vence o mais apto” (Darwin mal lido), alguns puderam acoplar a isso
uma sentença que atribuíram a Nietzsche, efetivamente por falta de
educação: “o homem será superado pelo super-homem”. Foi por esse duplo
erro, alimentado por um terceiro, o de traduzir Übermensch por super
homem e não por além-do-homem, que certos militantes políticos ou
intelectuais autodidatas acrditaram poder falar mais bobagens do que
deveria ser permitido no mundo sublunar.
O problema é que até gente considerada
competente acabou caindo nisso. Ao descrever o século XIX, Hobsbawm
confundiu esse tipo de ideologia, o darwinismo social misturado a um
Nietzsche mal lido, não como uma forma ignorante vinda de grupos
populares, mas como uma doutrina corretamente construída. Para Hobsbawum
esse amontoado estaria errado não por má cognição, mas sim por ser uma
construção ideológica – errada porque não era o marxismo! (Artigo Hobsbawm tropeça em Darwin e Nietzsche)
Por que Hobsbawm fez isso? Não só por
ignorância própria no âmbito da filosofia, mas, também, por uma problema
de viés metodológico: para o marxista do tipo de Hobsbawm não há erro
cognitivo, intelectual, todo erro vem da ilusão do mercado capitalista
que atinge toda a sociedade. O erro psicológico e intelectual é
desprezado. Ninguém erra. Ninguém é estúpido. As pessoas erram porque o
tal capitalismo, com o mercado, inverte as relações entre sujeito e
objeto e cria a ideologia. Ela sim é o que faz com que certas doutrinas
apareçam e outras não apareçam. No limite, por meio de seus próprios
neurônios, o povo nunca erra. O erro é uma capa exterior ao homem, posto
socialmente. Tirado o homem desse poço de ideologia, ele voltará a
funcionar do modo que ele deveria mesmo funcionar, ele irá
“reencontrar-se consigo mesmo” (Marx). O comunismo, sendo sem mercado e,
portanto, sem ideologia, será o local em que os erros irão desaparecer.
Ninguém mais será iludido.
Essa idéia essencialista (de homem),
apesar de Marx ter tentado se livrar dela, pegou ele próprio em alguns
momentos e permanece forte no âmbito dos grupos marxistas. Deveria ter
sobrevivido mais entre filósofos que historiadores. Mas, por uma ironia
do destino, está mais presente em colegas de Hobsbawm do que nos meus
colegas filósofos, isso sem falar nos novos metafísicos do momento, uma
boa parte, ainda, dos que fazem ciências sociais.
Ainda há os que estão buscando uma
sociedade em que o homem possa se tornar humano, sendo que esse humano
é, sim, uma palavra sinônima de “natureza humana”. No limite, há mesmo
os que, em ciências humanas, ainda hoje, querem responder a pergunta “o
que é o homem?” para, então, construirem uma sociedade em que esse homem
possa ser homem. Duvido que Hobsbawm não compartilhe com alguns
calouros de Ciências Sociais e, às vezes, veteranos do Curso de
História, esse pensamento que só um filósofo em coma pode manter.
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* Filósofo, escritor e professor da UFRRJ
Fonte: http://ghiraldelli.pro.br/2012/10/01/erros-e-acertos-de-hobsbawm/
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