Ladislau Dowbor*
“The idea that in a democracy you should be able to trade your wealth
into more influence over what the government does is just wrong.”Lawrence Lessig [1]
“Les vices n’appartiennent pas tant à l’homme qu’à l’homme mal gouverné”
Rousseau [2]
Rousseau [2]
Transformar o exercício da justiça em espetáculo midiático não é
correto nem ético. Fazê-lo em nome da ética, menos ainda. Para muita
gente, parece tratar-se de uma catarse política, canalização de ódios
acumulados. Não se resolve grande coisa desta maneira. e gera-se sim
dinâmicas perigosas. E sobre tudo, canaliza-se toda a energia contra
pessoas, obscurecendo os vícios do sistema. O sistema agradece, e
permanece. A realidade, é que há um imenso desconhecimento, por parte de
não economistas, de como se dão os grandes vazamentos de recursos
públicos.
Bem, vamos por partes. Primeiro, a grande corrupção, a grande mesmo,
aquela que é tão grande que se torna legal. Trata-se do financiamento de
campanhas. A empresa que financia um candidato – um assento de deputado
federal tipicamente custa 2,5 milhões de reais – tem interesses.
Estes interesses se manifestam do lado das políticas que serão
aprovadas, por exemplo contratos de construção de viadutos e de pistas
para mais carros, ainda que se saiba que as cidades estão ficando
paralisadas. As empreiteiras e as montadoras agradecem. Do lado do
candidato, apenas assentado, já lhe aparece a preocupação com a dívida
de campanha que ficou pendurada, e a necessidade de pensar na reeleição.
Quatro anos passam rápido. Entre representar interesses legítimos do
povo – por exemplo, mais transporte coletivo, mais saúde preventiva – e
assegurar a próxima eleição, ele que estudou economia ou direito, e por
tanto sabe fazer as contas e sabe quem manda, está preso numa sinuca.
O próprio custo das campanhas, quando estas viram uma indústria de
marketing político, é cada vez mais descontrolado. Segundo The
Economist, no caso dos EUA, os gastos com a eleição de 2004 foram de 2,5
bilhões de dólares, em 2010 foram de 4,5 bilhões, e a estimativa para
2012 é de 5,2 bilhões. Isto está “baseado na decisão da corte suprema em
2010 que permite que empresas e sindicatos gastem somas ilimitadas em
marketing eleitoral”. Quanto mais cara a campanha, mais o processo é
dominado por grandes contribuintes, e mais a política se vê colonizada. O
resultado é a erosão da democracia. E resultam também custos muito mais
elevados para todos, já que são repassados para o público através dos
preços. [3]
Comentando os dados dos gastos corporativos na campanha eleitoral de
2010, Robert Chesney e John Nichols, da universidade de Illinois,
escrevem que os financiamentos corporativos “se traduziram numa virada
espetacular para a direita: a captura da vida política por uma casta
financeira e midiática mais poderosa do que qualquer partido ou
candidato.
Não se trata apenas de um novo capítulo no interminável romance entre
o dinheiro e o poder, mas de uma redefinição da própria política pela
conjunção de dois fatores: o fim dos limites de doações eleitorais por
parte das empresas e a renúncia por parte da imprensa ao exame dos
conteúdos das campanhas. Resulta um sistema no qual um pequeno círculo
de conselheiros mobiliza montantes surrealistas para orientar o voto
para os seus clientes. Este ‘complexo eleitoral dinheiro-mídia’
constitui presentemente uma força temível, subtraída a qualquer forma de
regulação, liberada de qualquer obrigação de prudência por uma imprensa
que capitulou. Esta máquina é permanentemente mediada por cadeias
comerciais de televisão que faturaram, em 2010, 3 bilhões de dólares
graças à publicidade política”. [4]
No Brasil este sistema foi legalizado em governos anteriores. A lei
que libera o financiamento das campanhas por interesses privados é de
1997. [5] Podem contribuir com até 2% do patrimônio, o que representa
muito dinheiro. Os professores Wagner Pralon Mancuso e Bruno Speck,
respectivamente da USP e da Unicamp, estudaram os impactos. “Os recursos
empresariais ocupam o primeiro lugar entre as fontes de financiamento
de campanhas eleitorais brasileiras. Em 2010, por exemplo,
corresponderam a 74,4%, mais de R$ 2 bilhões, de todo o dinheiro
aplicado nas eleições (dados do Tribunal Superior Eleitoral)”. [6]
E a deformação é sistêmica: além de amarrar os futuros eleitos,
quando uma empresa “contribui” e por tanto prepara o seu acesso
privilegiado aos contratos públicos, as outras se vêm obrigadas a seguir
o mesmo caminho, para não se verem alijadas. E o candidato que não
tiver acesso aos recursos, simplesmente não será eleito. Todos ficam
amarrados. Começa a girar a grande quantidade de dinheiro no sistema
eleitoral. Criminalizar as empresas, ou as pessoas, não vai resolver,
ainda mais se os criminalizados são apenas de um lado do espectro
político. É preciso corrigir o sistema.
Mas custos econômicos incomparavelmente maiores resultam do impacto
indireto, pela deformação do processo decisório na máquina pública,
apropriada por corporações. O resultado, no caso de São Paulo, por
exemplo, de eleições municipais apropriadas por empreiteiras e
montadoras, são duas horas e quarenta minutos que o cidadão médio perde
no trânsito por dia. Só o tempo perdido, multiplicando as horas pelo PIB
do cidadão paulistano e pelos 6,5 milhões que vão trabalhar
diariamente, são 50 milhões de reais perdidos por dia. Se reduzirmos em
uma hora o tempo perdido pelo trabalhador a cada dia, instalando por
exemplo corredores de ônibus e mais linhas de metrô. serão 20 milhões
economizados por dia, 6 bilhões por ano se contarmos os dias úteis. Sem
falar da gasolina, do seguro do carro, das multas, das doenças
respiratórias e cardíacas e assim por diante. E estamos falando de São
Paulo, mas temos Porto Alegre, Rio de Janeiro e tantos outros centros. É
muito dinheiro. Significa perda de produtividade sistêmica, aumento do
custo-Brasil.
Este tipo de corrupção leva a que se deformem radicalmente as
prioridades do país, que se construam elefantes brancos. A deformação
das prioridades mediante desvio dos recursos públicos daquilo que é útil
em termos de qualidade de vida para o que é mais interessante em termos
de contratos empresariais, gera um círculo vicioso, pois financia a sua
reprodução.
Uma dimensão importante deste círculo vicioso, e que resulta
diretamente do processo, é o sobre-faturamento. Quanto mais se eleva o
custo financeiro das campanhas, conforme vimos acima com os exemplos
americano e brasileiro, mais a pressão empresarial sobre os políticos se
concentra em grandes empresas. Quando são poucas, e poderosas, e com
muitos laços políticos, a tendência é a distribuição organizada dos
contratos, o que por sua vez reduz a concorrência pública a um
simulacro, e permite elevar radicalmente o custo dos grandes contratos.
Os lucros assim adquiridos permitirão financiar a campanha seguinte.
Se juntarmos o crescimento do custo das campanhas, os custos do
sobre-faturamento das obras, e sobre tudo o custo da deformação das
grandes opções de uso dos recursos públicos, estamos falando em muitas
dezenas de bilhões de reais. Pior: corrói o processo democrático, ao
gerar uma perda de confiança popular nos processos democráticos em
geral.
Não que não devam ser veiculados os interesses de diversos agentes
econômicos. Mas para a isto existem as associações de classe e diversas
formas de articulação. A FIESP, por exemplo, articula os interesses da
classe industrial do Estado de São Paulo, e é poderosa. É a forma
correta de exercer a sua função, de canalizar interesses privados. O
voto deve representar cidadãos. Quando se deforma o processo eleitoral
através de grandes somas de dinheiro, é o processo democrático que é
deformado.
A moral da história é simples. Comprar votos é ilegal. Vincular o
candidato com dinheiro não é ilegal. Já comprar o voto do candidato
eleito é de novo ilegal. A conclusão é óbvia: vincula-se os interesses
do candidato à empresa, o que é legal, e tem-se por atacado quatro anos
de votação do candidato já eleito, sem precisar seduzi-lo a cada mês
[7]. O absurdo não é inevitável. Na França, a totalidade dos gastos pelo
conjunto dos 10 candidatos à presidência em 2012 foi de 74,2 milhões de
euros. [8]
A grande corrupção gera a sua própria legalidade. Já escrevia
Rousseau, no seu Contrato Social, em 1762, texto que hoje cumpre 250
anos: “O mais forte nunca é suficientemente forte para ser sempre o
dono, se não transformar a sua força em direito e a obediência em dever”
[9]. Em 1997, transformou-se o poder financeiro em direito. O direito
de influenciar as leis, às quais seremos todos submetidos. Ético mesmo, é
reformular o sistema, e acompanhar os países que evoluíram para regras
do jogo mais inteligentes, e limitaram drasticamente o financiamento
corporativo das campanhas.
NOTAS
[1] “A ideia que numa democracia você deveria poder trocar a sua riqueza por maior influência sobre o que faz o governo é simplesmente errada” – Lawrence Lessig – Republic Lost: how money corrupts congress – and a plan to stop it – Twelve, New York, 2011, p. 313
[2] “Os vícios não pertencem tanto ao homem, quanto ao homem mal governado” – J.J. Rousseau, Narcisse
[3] Ver dados completos em The Economist, Of Mud and Money,
September 8th 2012, p. 61; Sobre esta decisão da corte suprema
americana, Hazel Henderson produziu uma excelente análise intitulada
“Temos o melhor congresso que o dinheiro pode comprar” (We have the best
congress money can buy).
[4] Robert W.McChesney e John Nichols – Et les spots politiques
ont envahi les écrans – Le Monde Diplomatique, Manière de Voir, n. 125,
Où va l’Amérique, Octobre-Novembre 2012, p. 62 – A liberação do
financiamento corporativo das campanhas eleitorais foi conseguida pelo
lobby conservador Citizens United, junto à Corte Suprema dos Estados
Unidos, em 21 de janeiro de 2010, em nome da “liberdade de expressão”.
[5] O financiamento está baseado na Lei 9504, de 1997 “As doações
podem ser provenientes de recursos próprios (do candidato); de pessoas
físicas, com limite de 10% do valor que declarou de patrimônio no ano
anterior no Imposto de Renda; e de pessoas jurídicas, com limite de 2%,
correspondente [à declaração] ao ano anterior”, explicou o juiz Marco
Antonio Martin Vargas, assessor da Presidência do Tribunal Regional
Eleitoral (TRE) de São Paulo.” – Revista Exame, 08/06/2010, Elaine
Patricia da Cruz, Entenda o financiamento de campanha no Brasil.
[6] “Pouquíssimos candidatos conseguem se eleger com pouco ou nenhum dinheiro”, comenta Mancuso, que coordena o projeto de pesquisa Poder econômico na política: a influência de financiadores eleitorais sobre a atuação parlamentar. Ver em Bruna Romão, Agência USP.
[7] No plano propositivo, há um excelente trabalho de Lawrence Lessig, professor de direito da Universidade de Harvard, Republic Lost: how money corrupts Congress and a plan to stop it, Twelve, New York 2011, em particular p. 266 e seguintes.
[8] Le Monde Diplomatique, Manière de Voir, Où va l’Amérique, Octobre-Novembre 2012, p.11
[6] “Pouquíssimos candidatos conseguem se eleger com pouco ou nenhum dinheiro”, comenta Mancuso, que coordena o projeto de pesquisa Poder econômico na política: a influência de financiadores eleitorais sobre a atuação parlamentar. Ver em Bruna Romão, Agência USP.
[7] No plano propositivo, há um excelente trabalho de Lawrence Lessig, professor de direito da Universidade de Harvard, Republic Lost: how money corrupts Congress and a plan to stop it, Twelve, New York 2011, em particular p. 266 e seguintes.
[8] Le Monde Diplomatique, Manière de Voir, Où va l’Amérique, Octobre-Novembre 2012, p.11
[9] “Le plus fort n’est jamais assez fort pour être toujours le
maître, s’il ne transforme sa force en droit et l’obéissance en devoir”.
Du Contrat Social, 1762. “Maître” em francês é muito mais forte do que
“mestre” em português, implica força, controle.
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* Ladislau Dowbor, é doutor em Ciências Econômicas pela Escola Central
de Planejamento e Estatística de Varsóvia, professor titular da PUC de
São Paulo e da UMESP, e consultor de diversas agências das Nações
Unidas. É autor de “Democracia Econômica”, “A Reprodução Social”, “O
Mosaico Partido”, pela editora Vozes, além de “O que Acontece com o
Trabalho?” (Ed. Senac) e co-organizador da coletânea “Economia Social
no Brasil“ (ed. Senac) Seus numerosos trabalhos sobre planejamento
econômico e social estão disponíveis no site http://dowbor.org'
Fonte: http://mercadoetico.terra.com.br/arquivo/os-descaminhos-do-dinheiro-a-compra-das-eleicoes/?utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=mercado-etico-hoje
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