quinta-feira, 4 de outubro de 2012

S. Francisco de Assis: a escola do amor, a fonte da ternura

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Visão fransciscana da vida
S. Francisco é o homem espontaneamente cristão, é, pois, o homem que reencontrará a Natureza paradisíaca, aquela que é o tipo divino, que é a ideia-acto do pensamento criador. Um Platão depois de Cristo. Um Platão cristão, ingénuo infante que tudo adivinhasse, veria assim a Natureza. O resto de Caos, que é, em Platão, o mal, a resistência, a transitividade e a morte, precisava o redentor que tivesse incendiado um lume de tão alta temperatura, que, vencendo todas as incombustibilidades, dada deixasse do Caos, da Guerra, da resistência e da Morte. Francisco de Assis ardeu nessa fornalha, nela purificou o coração e os olhos, e é com renovados olhos, olhos verdadeiramente baptizados, que ele olha a água, o fogo, os cordeiros, o lobo, a terra, a Lua, o Sol e as aves... Se algum coração de homem verdadeiramente foi fraterno com os humildes seres álalos da Natureza, foi o de Francisco de Assis. Ele foi Aquele que soube olhar com inocência. Olhar com inocência!? Não pôr no olhar a cobiça da posse, o desejo mal contido da propriedade! Quem jamais olhou assim? É sequer esse o olhar do esteta, como queria Schopenhauer? É a ideia platónica que o esteta visiona? Não será antes tantas vezes esta visão a ilusão da posse fácil, dos sentimentos de potência e guerra satisfeitos sem riscos? Quem jamais olhou para um ser sem a ideia de o fazer servir de instrumento aos seus instintos, ás alegrias da sua vitória, á comparação em que se anima a vaidade? o que seria o convívio do homem com os irmãos inferiores, se este neles pousasse sempre verídicos olhos de inocência? O que seria a brancura do lírio sem a implícita e mal contida referência ao corpo da mulher amada? O que diria a fanfarra gloriosa do crepúsculo em brasa viva sem a aproximação oculta com os assaltos da nossa sensualidade ou do nosso barbarismo belicoso? Francisco de Assis não via só a Natureza com olhos inocentes, via-a suspensa do infinito Amor, que a gerou e a sustenta.
E assim a Natureza era a primeira expressão da divindade: vestígios, sinais, anunciações de Deus é o que S. Boaventura irá encontrar na face da Natureza.
O franciscanismo é uma fonte de ternura que vai embeber o pincel de Giotto e pôr a surdina dum amor humilde no coração dos poetas.
Não é por um inexplicável acaso que a natureza começa a desocultar-se ao amor inquieto e lúcido dos sábios franciscanos, como Rogério Bacon.
Francisco de Assis é o homem que vê com inocência, é também o homem que vê na Origem os raios do seu olhar seguirem das coisas suspensas ao coração que as segura, das águas cantantes à Fonte que as cria e espalha.
Para isso tem Francisco de Assis de suprimir os obstáculos que limitam e deformam a visão: os vestidos que escondem e as riquezas que oprimem.
Pobre e nu, ele sentirá melhor a integral dependência que o liga ao Criador.
A criação é uma obra do Amor; só ao que obedece às ordens desse Amor permitirá as visões inocentes e as acções leais e verídicas.
A riqueza, se não é um agente do Amor, é, de pronto, a mais pesada tampa, o cárcere mais tenebroso e segregador, sepulcro do Evangelho, reluzente por fora e repleto de podridões e ossos.
- Giotto  

Num simples critério positivista de verdade sociológica seria o franciscanismo o mais alto ensinamento, depois de Cristo, do significado amoroso da riqueza e do satanismo que representa o seu serviço dado aos egoísmos e às cobiças individuais.
Na pele multiforme da humanidade de hoje, pele de remendos de ouro, lepra e chagas, pele requeimada das insónias de tanto orgulho, cobiça, traição, desonra, angústia e cólera, é o franciscanismo um sorriso de ternura, um bafo de amor refrescando numa carícia as rugas que o sofrimento e a loucura aí apergaminharam.
Nu, numa inteira dependência do Pai Celestial como a florita dos vales; pobre na perfeita confiança e humildade, no perfeito exemplo de que a Vida é uma obra do Amor e que nos homens expatriados do Amor vive sempre uma saudade, que se faz dádiva e socorro.
O franciscanismo é uma renovada inocência, que abrange todos os seres, as coisas e os homens. É a Escola do Amor, a Fonte da Ternura.
Dar-se, dar-se mesmo ao sofrimento, é um prazer real, uma alegria transcendente porque o homem só retomará a inocência, vencendo os instintos, que o acossam.
Dar-se é sempre uma alegria, porque o Amor é dádiva; e que pode dar a criatura que não tenha recebido já da generosidade inexaurível do Criador?
Esta completa sinceridade quebra todas as medidas artificiais, e o santo que a pratica, não hesitará em achar a felicidade das aves digna da atenção do Imperador.
O bandido e a fera à luz inocente dos seus olhos aquietam-se e são vencidos.
O franciscanismo é um altíssimo tipo de vida, que domina os séculos com a chama da sua ternura.
A compaixão dum Buda levando os homens à compreensão duma unidade para lá dos seus pluralismos díspares revela um modo de pensamento ariano, que a Grécia também tocou, mas não consegue salvar a vida na unidade convivente de almas reconciliadas numa natureza purificada e boa.
A visão cristã é mais amável, e ao contrário do que pensava Nietzsche, é a grande visão optimista da Vida.
Não do optimismo panglóssico que Voltaire matou sorrindo, mas daquele optimismo, que nasce em todo o paladar, que o deserto queimou, ao ser beijado pelas águas vivas da fonte de Jacob.
Caminheiro do Infinito, o homem perde-se, abrasa-se de sede, extingue-se de fome, seus pés sangram no deserto calcinado, mas a palmeira verde anuncia a água que dessedenta e um lar hospitaleiro fumega, no horizonte do fogo que é o pão, o calor e o agasalho do pobre vagabundo fatigado.
Ondas de amor, orvalho de ternura, chuva de astros de oiro cobrindo a imensidade, eis o coração de Francisco de Assis entornado sobre os mundos!
A febre de sofrimento que o consome é a sua febre de Amor.
A lenha, que, tomada do amor dos homens que aquece, se pusesse a arder, a queimar-se numa insaciável vontade de dádiva do seu lume, seria como Ele.
Lenha que quer consumir-se sob o beijo de Deus, ser fogo, labareda imensa levando, nos braços do seu amor, esta humanidade transida da solidão e do frio que pesa sobre o smundos e habita no segredo das almas!
Se a mais alta dádiva do Amor foi Cristo, a mais pura expressão do amor cristão foi a do Pobrezinho de Assis, dando-se ao sofrimento e à pobreza, dando-se á combustão do amor divino, e saindo da chama a cantar louvor a Deus por todos os seres, subindo em colunas de Fogo, hinos e bailados da Alegria originária, voltando a viver no ninho das almas, a brilhar na firmeza dos astros, a murmurar na voz das águas e das pombas, a voar no perfume dos lírios, espinheiros e silvedos.

 
Antes da Renascença fez reviver a Natureza, mas deitada tranquila no regaço, que a sustente e que é a única força, que a mantém no brilho, esplendor, saúde e harmonia do seu inocente estado originário.
Ele é, por isso, uma Nascente de bondade e ternura, para as sedes insaciáveis dos homens, uma Fonte de poesia que jamais nenhum porta esgotará até ao fundo da sua perfeita sinceridade.
E, milagre dos milagres, é a renovada paz com a Natureza que, fazendo da experiência um convívio amigo, dará os primeiros sábios, precursores da ciência moderna.
E isto duplamente; pela amizade da Natureza, que dará a experiência com Rogério Bacon, e pela visão originária platónica e augustiniana, vendo a informação idealista dos fenómenos, que preparará, por Oxford, e com Duns Scot, a teorização cartesiana da Ciência.
E assim o noivo da Pobreza, o ignorante do «Poverello», pela sua imensa confiança, pela visão originária do seu amor sem limites, deixa sob os seus passos o murmúrio duma das nascentes donde partirá a Ciência e, com ela, o maior valor económico que ao homem foi dado no planeta.
É mais uma revelação do Evangelho, que promete, em troco do amor, todo o resto dado em excesso e por acrescentamento.
É que o homem mal pode carregar com o peso das suas penas de todos os dias, com a carga dos seus limitados deveres; mas, se toma ás costas o sofrimento dos outros, as penas de todas as almas, o passo como se faz voo e a mortal tristeza, que o esmagava, fez-se hino triunfal, cântico, asa liberta, aurora dum outro dia, manhã de uma outra luz.
E assim Francisco de Assis, arauto do Altíssimo, levando em seu coração, feito ninho e berço, as mágoas dos seres, é cântico, louvor, alegria vitoriosa, espalhando, em volta, a luz primordial, a que beijou os mundos e os seres na madrugada da Origem.
E os astros não rolam desorbitados, e os sóis não se extinguem exangues, e os cometas não espalham cabeleiras perdidas no Espaço, e as águas não tombam sumindo-se e o céu dos astros não é mais um imenso Lar vazio, onde o último Vento sopre as cinzas do luto universal lançadas sobre os cadáveres dos mundos...
E as almas errantes, perdidas entre as cinzas dos mundos, não se perderão no caminho do Nada...
A Lareira é o Fogo Originário, eterna e amorável, é berço e regaço, e os mundos, as coisas, os seres e as almas, como andorinhas contentes, vogam e flutuam em ondas de Luz, direitas ao beiral, à casa, ao Lar que as encerra e socorre no seguro e indestrutível amplexo dum perfeito Amor vitorioso.
Francisco de Assis é a Fonte de ternura, Pão das fomes de amor, companhia das solidões remotas e sem fim, lume dos frios do Espaço, regaço dos abandonos, abrigo dos voos dispersos perdidos pela amplidão, rumo das almas desencontradas, foco do Amor onde se reencontram os amigos e as saudades que os milénios separaram...
Onda de ternura que toma o molde das almas e, envoltas no afago das suas carícias, as desdobra ao sol de Deus nas praias de além dos mundos.
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Leonardo Coimbra
Atualizado em 04.10.12
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