Visão fransciscana da vida
S. Francisco é o homem espontaneamente cristão, é,
pois, o homem que reencontrará a Natureza paradisíaca, aquela que é o
tipo divino, que é a ideia-acto do pensamento criador. Um Platão depois
de Cristo. Um Platão cristão, ingénuo infante que tudo adivinhasse,
veria assim a Natureza. O resto de Caos, que é, em Platão, o mal, a
resistência, a transitividade e a morte, precisava o redentor que
tivesse incendiado um lume de tão alta temperatura, que, vencendo todas
as incombustibilidades, dada deixasse do Caos, da Guerra, da
resistência e da Morte. Francisco de Assis ardeu nessa fornalha, nela
purificou o coração e os olhos, e é com renovados olhos, olhos
verdadeiramente baptizados, que ele olha a água, o fogo, os cordeiros, o
lobo, a terra, a Lua, o Sol e as aves... Se algum coração de homem
verdadeiramente foi fraterno com os humildes seres álalos da Natureza,
foi o de Francisco de Assis. Ele foi Aquele que soube olhar com
inocência. Olhar com inocência!? Não pôr no olhar a cobiça da posse, o
desejo mal contido da propriedade! Quem jamais olhou assim? É sequer
esse o olhar do esteta, como queria Schopenhauer? É a ideia platónica
que o esteta visiona? Não será antes tantas vezes esta visão a ilusão da
posse fácil, dos sentimentos de potência e guerra satisfeitos sem
riscos? Quem jamais olhou para um ser sem a ideia de o fazer servir de
instrumento aos seus instintos, ás alegrias da sua vitória, á
comparação em que se anima a vaidade? o que seria o convívio do homem
com os irmãos inferiores, se este neles pousasse sempre verídicos olhos
de inocência? O que seria a brancura do lírio sem a implícita e mal
contida referência ao corpo da mulher amada? O que diria a fanfarra
gloriosa do crepúsculo em brasa viva sem a aproximação oculta com os
assaltos da nossa sensualidade ou do nosso barbarismo belicoso?
Francisco de Assis não via só a Natureza com olhos inocentes, via-a
suspensa do infinito Amor, que a gerou e a sustenta.
E assim a Natureza era a primeira expressão da
divindade: vestígios, sinais, anunciações de Deus é o que S. Boaventura
irá encontrar na face da Natureza.
O franciscanismo é uma fonte de ternura que vai
embeber o pincel de Giotto e pôr a surdina dum amor humilde no coração
dos poetas.
Não é por um inexplicável acaso que a natureza
começa a desocultar-se ao amor inquieto e lúcido dos sábios
franciscanos, como Rogério Bacon.
Francisco de Assis é o homem que vê com
inocência, é também o homem que vê na Origem os raios do seu olhar
seguirem das coisas suspensas ao coração que as segura, das águas
cantantes à Fonte que as cria e espalha.
Para isso tem Francisco de Assis de suprimir os
obstáculos que limitam e deformam a visão: os vestidos que escondem e
as riquezas que oprimem.
Pobre e nu, ele sentirá melhor a integral dependência que o liga ao Criador.
A criação é uma obra do Amor; só ao que obedece
às ordens desse Amor permitirá as visões inocentes e as acções leais e
verídicas.
A riqueza, se não é um agente do Amor, é, de
pronto, a mais pesada tampa, o cárcere mais tenebroso e segregador,
sepulcro do Evangelho, reluzente por fora e repleto de podridões e
ossos.
- Giotto
Num simples critério positivista de verdade
sociológica seria o franciscanismo o mais alto ensinamento, depois de
Cristo, do significado amoroso da riqueza e do satanismo que representa
o seu serviço dado aos egoísmos e às cobiças individuais.
Na pele multiforme da humanidade de hoje, pele de
remendos de ouro, lepra e chagas, pele requeimada das insónias de
tanto orgulho, cobiça, traição, desonra, angústia e cólera, é o
franciscanismo um sorriso de ternura, um bafo de amor refrescando numa
carícia as rugas que o sofrimento e a loucura aí apergaminharam.
Nu, numa inteira dependência do Pai Celestial
como a florita dos vales; pobre na perfeita confiança e humildade, no
perfeito exemplo de que a Vida é uma obra do Amor e que nos homens
expatriados do Amor vive sempre uma saudade, que se faz dádiva e
socorro.
O franciscanismo é uma renovada inocência, que
abrange todos os seres, as coisas e os homens. É a Escola do Amor, a
Fonte da Ternura.
Dar-se, dar-se mesmo ao sofrimento, é um prazer
real, uma alegria transcendente porque o homem só retomará a inocência,
vencendo os instintos, que o acossam.
Dar-se é sempre uma alegria, porque o Amor é
dádiva; e que pode dar a criatura que não tenha recebido já da
generosidade inexaurível do Criador?
Esta completa sinceridade quebra todas as medidas
artificiais, e o santo que a pratica, não hesitará em achar a
felicidade das aves digna da atenção do Imperador.
O bandido e a fera à luz inocente dos seus olhos aquietam-se e são vencidos.
O franciscanismo é um altíssimo tipo de vida, que domina os séculos com a chama da sua ternura.
A compaixão dum Buda levando os homens à
compreensão duma unidade para lá dos seus pluralismos díspares revela
um modo de pensamento ariano, que a Grécia também tocou, mas não
consegue salvar a vida na unidade convivente de almas reconciliadas
numa natureza purificada e boa.
A visão cristã é mais amável, e ao contrário do que pensava Nietzsche, é a grande visão optimista da Vida.
Não do optimismo panglóssico que Voltaire matou
sorrindo, mas daquele optimismo, que nasce em todo o paladar, que o
deserto queimou, ao ser beijado pelas águas vivas da fonte de Jacob.
Caminheiro do Infinito, o homem perde-se,
abrasa-se de sede, extingue-se de fome, seus pés sangram no deserto
calcinado, mas a palmeira verde anuncia a água que dessedenta e um lar
hospitaleiro fumega, no horizonte do fogo que é o pão, o calor e o
agasalho do pobre vagabundo fatigado.
Ondas de amor, orvalho de ternura, chuva de
astros de oiro cobrindo a imensidade, eis o coração de Francisco de
Assis entornado sobre os mundos!
A febre de sofrimento que o consome é a sua febre de Amor.
A lenha, que, tomada do amor dos homens que
aquece, se pusesse a arder, a queimar-se numa insaciável vontade de
dádiva do seu lume, seria como Ele.
Lenha que quer consumir-se sob o beijo de Deus,
ser fogo, labareda imensa levando, nos braços do seu amor, esta
humanidade transida da solidão e do frio que pesa sobre o smundos e
habita no segredo das almas!
Se a mais alta dádiva do Amor foi Cristo, a mais
pura expressão do amor cristão foi a do Pobrezinho de Assis, dando-se
ao sofrimento e à pobreza, dando-se á combustão do amor divino, e
saindo da chama a cantar louvor a Deus por todos os seres, subindo em
colunas de Fogo, hinos e bailados da Alegria originária, voltando a
viver no ninho das almas, a brilhar na firmeza dos astros, a murmurar
na voz das águas e das pombas, a voar no perfume dos lírios,
espinheiros e silvedos.
Antes da Renascença fez reviver a Natureza, mas
deitada tranquila no regaço, que a sustente e que é a única força, que a
mantém no brilho, esplendor, saúde e harmonia do seu inocente estado
originário.
Ele é, por isso, uma Nascente de bondade e
ternura, para as sedes insaciáveis dos homens, uma Fonte de poesia que
jamais nenhum porta esgotará até ao fundo da sua perfeita sinceridade.
E, milagre dos milagres, é a renovada paz com a
Natureza que, fazendo da experiência um convívio amigo, dará os
primeiros sábios, precursores da ciência moderna.
E isto duplamente; pela amizade da Natureza, que
dará a experiência com Rogério Bacon, e pela visão originária platónica
e augustiniana, vendo a informação idealista dos fenómenos, que
preparará, por Oxford, e com Duns Scot, a teorização cartesiana da
Ciência.
E assim o noivo da Pobreza, o ignorante do
«Poverello», pela sua imensa confiança, pela visão originária do seu
amor sem limites, deixa sob os seus passos o murmúrio duma das
nascentes donde partirá a Ciência e, com ela, o maior valor económico
que ao homem foi dado no planeta.
É mais uma revelação do Evangelho, que promete, em troco do amor, todo o resto dado em excesso e por acrescentamento.
É que o homem mal pode carregar com o peso das
suas penas de todos os dias, com a carga dos seus limitados deveres;
mas, se toma ás costas o sofrimento dos outros, as penas de todas as
almas, o passo como se faz voo e a mortal tristeza, que o esmagava,
fez-se hino triunfal, cântico, asa liberta, aurora dum outro dia, manhã
de uma outra luz.
E assim Francisco de Assis, arauto do Altíssimo,
levando em seu coração, feito ninho e berço, as mágoas dos seres, é
cântico, louvor, alegria vitoriosa, espalhando, em volta, a luz
primordial, a que beijou os mundos e os seres na madrugada da Origem.
E os astros não rolam desorbitados, e os sóis não
se extinguem exangues, e os cometas não espalham cabeleiras perdidas
no Espaço, e as águas não tombam sumindo-se e o céu dos astros não é
mais um imenso Lar vazio, onde o último Vento sopre as cinzas do luto
universal lançadas sobre os cadáveres dos mundos...
E as almas errantes, perdidas entre as cinzas dos mundos, não se perderão no caminho do Nada...
A Lareira é o Fogo Originário, eterna e amorável,
é berço e regaço, e os mundos, as coisas, os seres e as almas, como
andorinhas contentes, vogam e flutuam em ondas de Luz, direitas ao
beiral, à casa, ao Lar que as encerra e socorre no seguro e
indestrutível amplexo dum perfeito Amor vitorioso.
Francisco de Assis é a Fonte de ternura, Pão das
fomes de amor, companhia das solidões remotas e sem fim, lume dos frios
do Espaço, regaço dos abandonos, abrigo dos voos dispersos perdidos
pela amplidão, rumo das almas desencontradas, foco do Amor onde se
reencontram os amigos e as saudades que os milénios separaram...
Onda de ternura que toma o molde das almas e,
envoltas no afago das suas carícias, as desdobra ao sol de Deus nas
praias de além dos mundos.
-------------------
Leonardo Coimbra
Atualizado em 04.10.12
Atualizado em 04.10.12
Fonte:
Nenhum comentário:
Postar um comentário