quinta-feira, 31 de março de 2022

Mindfulness e coaching executivo: quando a empresa se torna a nova comunidade de fé.

Carolyn Chen*

 A socióloga estadunidense Carolyn Chen e seu novo livro (Foto: Divulgação)

As empresas de tecnologia estão oferecendo cuidados espirituais para tornar seus empregados mais produtivos, e provavelmente isso é um sinal do que está por vir em outros setores.

O comentário é da socióloga estadunidense Carolyn Chen, professora de Estudos Étnicos na Universidade da Califórnia em Berkeley e codiretora do Berkeley Center for the Study of Religion.

O artigo foi publicado em The Atlantic, 22-03-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Ultimamente, temos visto uma proliferação de debates sobre o fim do trabalho do modo como o conhecemos. Neste terceiro ano da pandemia do coronavírus, os estadunidenses estão esgotados, abandonando seus empregos em números recordes e reavaliando o local de trabalho nas suas vidas.

De acordo com especialistas, a Grande Demissão sinaliza uma nova era: o fim da ambição, o aumento do sentimento antitrabalho e a possibilidade de estarmos entrando em um momento em que um emprego pode ser apenas um emprego. Mas eu duvido que isso irá mudar o culto coletivo do trabalho por parte dos estadunidenses.

O que essas conversas não levam em conta é a religião invisível do trabalho, que se tornou uma parte inquestionável da nossa cultura. Em um momento em que as taxas de afiliação religiosa são as mais baixas dos últimos 73 anos, nós cultuamos o trabalho – o que significa que nos sacrificamos e nos rendemos a ele – porque ele nos dá identidade, pertencimento e significado, sem falar que ele põe comida nas nossas mesas.

Se a teocracia estadunidense do trabalho for desmantelada, isso não ocorrerá apenas mudando de emprego ou de atitude. Exigirá uma transformação fundamental no sistema social que dita de quais instituições obtemos a nossa realização.

Ao contrário da nova sabedoria, o trabalho nos ama de volta, sim. Foi o que eu descobri enquanto fazia a pesquisa para o meu novo livro – “Work Pray Code: When Work Becomes Religion In Silicon Valley” [Trabalhar, rezar, programar: quando o trabalho se torna religião no Vale do Silício] (Princeton University Press, 2022) – um estudo sobre trabalho e espiritualidade em empresas de tecnologia do Vale do Silício, que às vezes são vistas como modelos para a cultura do trabalho estadunidense.

Apesar de os profissionais se beneficiarem de várias formas com seus empregos, muitos de nós falamos sobre o trabalho como extrativista: dizemos que vendemos a nossa alma ao trabalho; descrevemo-lo como algo que nos suga. Mas, no Vale do Silício, o trabalho é onde muitas pessoas encontram as suas almas.

Ao longo de cinco anos, eu entrevistei mais de 100 profissionais da indústria de tecnologia que ecoaram esse sentimento. Um jovem engenheiro, um ex-cristão evangélico que se mudou da Geórgia para se juntar a uma startup de San Francisco, me disse que havia transferido seu fervor pela religião para o trabalho.

Sua empresa tornou-se a sua nova comunidade de fé, proporcionando-lhe o pertencimento, o sentido e a missão que antes ele havia encontrado em sua Igreja em sua terra natal. Na fraternidade da sua startup, ele desenvolveu a fé de que o seu aplicativo de rede social empresarial iria “mudar o mundo”.

O engenheiro foi um dos muitos entrevistados que se descreveram como pessoas que haviam se tornado mais “íntegras”, “espirituais” ou “conectadas” por causa do trabalho.

Isso não é coincidência. Os profissionais têm dedicado mais tempo ao trabalho nas últimas décadas. Ao mesmo tempo, muitos deles também têm se afastado de sua observância religiosa, das organizações cívicas e dos grupos comunitários, segundo o cientista político Robert D. Putnam. A afiliação religiosa, em particular, é notavelmente menor em centros da indústria do conhecimento como San Francisco, Seattle e Boston. Agora, muitas empresas de tecnologia assumiram a tarefa do cuidado espiritual para tornar seus trabalhadores mais produtivos.

As empresas projetam a experiência de trabalho para que seus empregados possam “ser uma pessoa realizada”, como me disse um profissional de recursos humanos. Outro profissional de RH me disse que o trabalho de um “grande RH” é “alimentar a alma das pessoas quando elas estão trabalhando tanto”.

É por isso que lugares como o Google e o Salesforce, por exemplo, trazem mestres budistas e têm salas de meditação específicas para dar aos empregados o tempo e o espaço para eles se conectarem com seus “eus” autênticos. Essas empresas oferecem coaches executivos a seus líderes seniores, que um gerente descreveu como “conselheiros espirituais”. Todas essas ofertas ajudam os profissionais de tecnologia a alinharem as partes mais profundas deles mesmos com o seu trabalho.

Mas essas vantagens não são oferecidas a fim de melhorar os empregados pelo seu próprio bem, e muitas empresas de tecnologia têm sido criticadas por valorizar a produtividade e o lucro em detrimento do bem-estar de seus trabalhadores.

Mesmo assim, as empresas de hoje percebem o benefício de atender às necessidades espirituais de seus empregados ocupados, e fornecer esses serviços lhes dá uma vantagem competitiva. Por exemplo, valeu a pena quando uma startup investiu em um de seus talentosos jovens engenheiros, pagando para que ele participasse de um programa de meditação mindfulness e de um retiro espiritual, e trabalhasse com um coach executivo. O jovem engenheiro, agora reforçado com um senso de missão e propósito dirigido ao trabalho, rapidamente se tornou engenheiro-chefe, disse-me o CEO da empresa. O trabalho tornou-se mais gratificante para ele, e a empresa lucrou com o seu crescimento.

Na realidade, os trabalhadores de tecnologia no meu estudo são um exemplo extremo do sentido de realização no trabalho nos Estados Unidos. Os empregos de muitos estadunidenses, especialmente aqueles sem diploma universitário, foram expatriados e automatizados. Para eles, junto com tantos trabalhadores temporários de hoje, o trabalho traz menos benefícios e tornou-se menos disponível, menos seguro e menos significativo.

No entanto, em suas atitudes em relação ao trabalho, muitos estadunidenses não são tão diferentes dos trabalhadores de tecnologia. De acordo com uma pesquisa recente da McKinsey, 70% dos profissionais disseram que seu senso de propósito é definido por seu trabalho. A maioria dos estadunidenses diz ter feito amigos íntimos no trabalho. E muitos profissionais descrevem um bom trabalho com palavras como “vocação”, “missão” e “propósito” – termos que antes eram reservados à religião.

A maioria das empresas não oferece consultas com monges budistas, mas mesmo corporações tradicionais como a Aetna e a General Mills trouxeram práticas espirituais como meditação e mindfulness para o escritório. As empresas estão gradualmente se posicionando como nossos novos locais de culto, alimentando as pessoas com um evangelho de propósito divino no local de trabalho. O Vale do Silício não é uma exceção, mas um prenúncio para os profissionais estadunidenses.

Mesmo para aqueles de nós que começaram a procurar a sua realização em outros lugares, começando um novo hobby, tirando um ano sabático ou garantindo um emprego melhor e mais significativo, todas essas soluções deixam intacta a teocracia do trabalho.

Essas ações individuais não fazem nada para mudar um sistema que concentra todas as suas recompensas materiais, sociais e espirituais na instituição do trabalho. A única forma de reorientar isso é revitalizar e construir “locais de culto” compartilhados fora do trabalho, mudando as estruturas que organizam a nossa realização.

Esses locais de culto teriam que reivindicar o nosso tempo, energia e devoção, assim como o trabalho faz. Teríamos que nos sacrificar e nos submeter às suas demandas, assim como fazemos pelo trabalho. Teríamos que construir comunidades de pertencimento, buscando juntos o sentido e o propósito fora de nosso trabalho produtivo.

Esses locais de culto não precisam ser apenas religiosos. Também podem ser nossas cooperativas, bairros, sindicatos, grupos de leitura ou clubes políticos – qualquer coisa na panóplia de organizações civis que possa nos ajudar a visualizar o florescimento humano que se eleva acima dos resultados financeiros de uma empresa.

*David Foster Wallace escreveu: “Nas trincheiras do dia a dia da vida adulta, não existe isso de ateísmo (...) Todo mundo presta culto. A única escolha que temos é a que prestar culto”. À medida que as restrições da pandemia diminuem, estamos voltando aos nossos escritórios, às nossas escolas e aos nossos locais de trabalho. Este momento nos convida a escolher novamente a que vamos prestar culto, a quem vamos pertencer e o que vamos preencher de sentido.

A questão é coletiva: o que vamos tornar sagrado? Se não fizermos essa pergunta e não mudarmos, continuaremos apenas marchando por um caminho desgastado que nos deixará com o trabalho como a última instituição significativa ainda em pé.

Fonte:  https://www.ihu.unisinos.br/617375-mindfulness-e-coaching-executivo-quando-a-empresa-se-torna-a-nova-comunidade-de-fe-artigo-de-carolyn-chen

Notas sobre o caso Will Smith, a palavra podre e os cyber-gladiadores

 Por Enio Vieira*

Notas sobre o caso Will Smith, a palavra podre e os cyber-gladiadores
 
Nas cerimônias da premiação do Oscar, até as piadas são ensaiadas. O apresentador faz elogios à indústria de cinema e brinca com colegas de profissão. Uma apoteose do nada, ao estilo das comédias de stand-up. Mas podem surgir surpresas. Neste ano, o comediante e mestre de cerimônias Chris Rock decidiu fazer ou interpretar um texto que zombava da esposa do ator Will Smith (Jada Pinkett), portadora de uma condição física que leva à perda de cabelos. A reação de Will é conhecida e inundou a internet.

A bofetada em Rock foi, sem dúvida, um revide inesperado. Chamou um pouco menos a atenção a fala de Will: “Mantenha o nome da minha esposa fora da sua boca!”. Bem ao gosto dos tempos atuais, Chris Rock ganhou a vida por ter uma boca que emite jatos de barbaridades. Trata-se do humor que se diz “politicamente incorreto”. Problema: esse verbo se coloca a serviço de ataques violentíssimos, sob o pretexto de piadas, como a dita por um homem para rir de uma mulher e monetizar com a doença dela.

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O que Chris Rock disse na festa do Oscar, se enquadra bem numa definição recentemente dada por Renato Lessa. O pensador brasileiro notou a recorrência da “palavra podre” no espaço público. A linguagem é destruída e usada para a destruição. Como o ser humano é um animal que fala e constrói realidades a partir do que sai de sua boca, a “palavra podre” pode ser considerada uma arma de extermínio. Esse fenômeno da podridão está presente sobretudo na mídia do entretenimento e das redes sociais. Diz Lessa: “Embora se mova no interior da dimensão tácita, ou seja, dentro dos limites compartilhados por todos, a linguagem pode dar passagem e abrigo a um ato de fala que destrói esses limites e todo o ambiente semântico sobre o qual incide: a palavra podre. Esta se faz protótipo de novos hábitos, quando não do hábito de destruir hábitos. É pela palavra que a coisa — a destruição — vem. O sujeito que emite a palavra podre, mais do que algoz da gramática, é inimigo da semântica e da forma de vida a ela associada”.

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A ideia da “palavra podre” é esclarecedora para o Brasil — caso olhemos para situações concretas ao nosso lado. Interessante que o vômito verbal virou um instrumento de luta, disputas, numa sociedade (a brasileira) que se tornou justamente referência global de outro fenômeno: lutas esportivas do tipo MMA e UFC. Violência em cima de violência.

Uma luta que mistura várias lutas é um esporte bem adequado à situação do país que perdeu sua forma nas últimas décadas. A barbárie acaba sendo transmitida pela televisão, com direito a imagens de fraturas expostas e rostos disformes. Nada da grande arte do boxe norte-americano e cubano ou do balé dos orientais que disseminam pitadas de filosofia em meios aos estrangulamentos e chutes. Tão afeito ao vale-tudo cotidiano, o Brasil virou celeiro da luta sem regras.

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A novidade: o padrão MMA transbordou para fora dos ginásios onde ocorrem as lutas em palcos no formato de octógono. Um polígono de oito lados delimita o espaço que aceita tudo, até o momento que um dos participantes não suporte mais os ferimentos ou frature uma perna. Marcos Nobre tem usado a imagem do octógono para interpretar a situação brasileira, uma vez que se percebe o estilo “ultimate fighting” indo para o debate público e para diversas áreas da indústria da cultura.

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Para verificar a hipótese, basta pegar um dia qualquer e abrir as redes sociais. É possível ver, por exemplo, que um podcaster da moda defendeu a existência de um partido nazista no Brasil e o direito de ser antissemita. No mesmo programa, o jovem político avaliou que foi um erro a Alemanha criminalizar o nazismo após a Segunda Guerra Mundial. A intenção dos dois era o nocaute da interlocutora (uma jovem deputada). No estúdio do podcast, o octógono é a mesa para a luta verbal, à base de palavras apodrecidas.

Dias antes, as redes sociais se mobilizaram para mais uma luta pela morte simbólica de uma pessoa. Chico Buarque estava novamente no alvo. O tímido e recluso músico não pode abrir a boca para se manifestar. A última declaração dele foi a de que não cantaria mais uma música por considerá-la ultrapassada. E quando Chico se manifesta para além das canções (dando entrevistas ou escrevendo ficção), surgem os “cyber-gladiadores” para provar que o Brasil é uma terra sem açúcar e sem afeto.

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A expressão “cyber-gladiadores” vem bem a calhar. Foi criada pela crítica argentina Beatriz Sarlo, que analisou a entrada da política partidária do seu país para as redes sociais. Perfis masculinos, na grande maioria, passam a usar a internet como uma arena de lutas de morte e sem regras definidas. Aparece de novo a imagem do espaço da hiper-violência onde, ao contrário, deveríamos ter a discussão racional. Na verdade, a nova praça pública, a ágora ateniense moderna, é um octógono com a palavra podre.

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Como se chegou ao Brasil-octógono e da palavra podre? O país nasceu da violência — isso é conhecido, bastando abrir qualquer livro de História. Mas uma hipótese razoável é que a degradação do debate público partiu do ultraconservadorismo nos anos 1990. Esse grupo não queria mais usar a língua comum da conversa. Era necessário levar tudo para uma discussão com palavrões (a palavra podre) e ataques pessoais. A morte recente de um dos seus líderes, uma espécie de Minotauro das ideias, exibiu o show de linchamento virtual, tantas vezes praticado por ele mesmo.

Na indústria da cultura, outra fonte da degradação são, sem dúvida, os reality shows. A cada semana, o público define uma eliminação e pratica a morte simbólica de alguém. Um “ritual de sofrimento”, como definiu Sílvia Vianna. Num desses programas atuais, a reclamação é a falta de brigas entre os participantes na mais recente edição. É como se espectadores quisessem toda noite, ou a cada minuto, ver a imagem da perna quebrada do lutador Anderson Silva — a cena horrível da fratura na luta de 2013.

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Parece que hoje a palavra deve ser orientada para o vale-tudo diário. Só assim é permitida a entrada no debate público. Prevalece a violência crua e em tempo real, sobretudo pelas redes sociais. Cria-se a regra: apenas vale a pena debater e conversar se um dos lados puder quebrar a perna, desfigurar o rosto do oponente e soltar um bafo apodrecido em meio a discursos. Por essas e outras, o “espírito do tempo” do Brasil se materializa no octógono de MMA e nas palavras podres.

* Nascido na Áustria em 1938, ele é um dos mestres do pensamento social no Brasil, com uma escrita que apenas os grandes autores conseguem alcançar.

Fonte: https://www.revistabula.com/49514-notas-sobre-o-caso-will-smith-a-palavra-podre-e-os-cyber-gladiadores/


Da indiferença em primeiro lugar

por Renato Lessa*

 https://artepensamento.ims.com.br/wp-content/uploads/2018/07/item_000326_da_indiferenca_em_primeiro_lugar_.jpg

Resumo

Um ponto de partida possível para pensar a indiferença pode ser a proposição do antropólogo Michael Herzfeld, em seu livro The social production of indifference, formulada nos seguintes termos: a indiferença é a rejeição da humanidade compartilhada. Com efeito, o princípio da indiferença exige como condição de consistência a rejeição de qualquer inclinação igualitarista e universalizante, que extraia consequências morais positivas da hipótese de uma humanidade comum.

Por outro lado, a hipótese de um experimento humano no qual a indiferença seja banida aparece como quimérica. Se nada, em princípio, nos aparece como indiferente ou, ao menos, como passível de ênfases e atenções distintas, como estabelecer escolhas e prioridades? Como sustentar juízos de natureza moral e ética? Claro está que em tal cenário as configurações do mundo humano nos seriam impostas com idêntica capacidade de interpelação e como que imunizadas à indiferença. Um mundo dotado de tal configuração, por indistintamente relevante, ensejaria tão-somente o “sentimento oceânico”, ironizado por Freud, a sensação de um vínculo com o mundo inteiro. No limite, qualquer distinção soa como arbitrária. E, sendo assim, o amor exaustivo ao comum nos tornaria indiferentes aos acidentes e aos pormenores. Está posta a aporia: o horror à indiferença exige atos de indiferença.

Como combinar a proposição conceitual que vê na indiferença uma negação do comum com a sensação existencial de que nossa experiência no mundo, mesmo quando em busca do comum, mobiliza distintas esferas de indiferença?

O propósito dessa reflexão é o de desenvolver o mote empregado por Michael Walzer — esferas da justiça —, em seu belo livro Spheres of justice, para pensar o tema da indiferença. Neste sentido, trata-se de esferas de indiferença.

À partida, pode-se estabelecer que o princípio da indiferença — na perspectiva de Herzfeld confere aos humanos uma dupla capacidade: considerar o mundo como constitutivamente indiferente e instituir em seu domínio marcas específicas e humanas de diferenciação e, por extensão, de indiferença.

O tema dos modos da indiferença exige a consideração de formas práticas ou, em outros termos, uma chave histórica. Trata-se, portanto, de refletir sobre experimentos de “desuniversalização” do humano, de negação das possibilidades de um compartilhamento básico. Em tal direção, o tema da indiferença atrai o vício da crueldade e põe sob foco modos do estranhamento e da dissipação do humano, com farta e fértil evidência durante o século XX.

Há que pensar, ainda, na naturalização da indiferença, em sua fixação como atributo humano inalterável. Tal movimento se manifesta de forma explícita na erosão da vida pública e na extensiva comodificação da vida social. A cultura da diferença parece ser um poderoso coadjuvante desse processo: éticas vetustas que clamam por um pertencimento universal devem ceder lugar a uma paisagem povoada por identidades mais nítidas, internamente densas e indiferentes ao que mais não seja.

 


Perece, se queres; quanto a mim, estou seguro.[1]

Jean-Jacques Rousseau

Da indiferença como vício passivo e como suporte para vícios ativos (ou do lugar da indiferença na economia dos nossos vícios)

A indiferença parece ser tão antiga quanto o vento. É o que sugerem mitos ancestrais que falam de deuses indiferentes às agruras humanas e, também, algumas das primeiras formas da filosofia, portadoras de preocupações de natureza ética e moral, atentas aos efeitos deletérios desse vício. Mesmo em um pensador como Demócrito de Abdera, que percebia a natureza como efeito do movimento imparável e invisível de partículas ínfimas, sem nenhuma ordem ou propósito a fixar finalidades e direções, é possível encontrar marcas ancestrais de uma concepção de moralidade associada a preceitos de contenção pessoal e ao reconhecimento da presença de outros sujeitos humanos no mundo.[2] Sua física anárquica e pluralista não foi acompanhada de uma ética que, da ausência de ordem imanente ao mundo, deduzisse uma espécie de elogio da indeterminação moral e do relativismo. Ao contrário, se ordem houver no mundo, somos nós os que a introduzimos, pela autolimitação das paixões e pela perspectiva da não-indiferença.[3]

Mais do que meramente antiga, a indiferença parece ser coextensiva à experiência histórica da humanidade, já que presente em todos os seus momentos. À percepção de sua antiguidade, soma-se, por exemplo, a detecção de sinais da sua presença na cultura burocrática contemporânea, cujo fundamento normativo parece ser tratar mal a todos, sem distinções ou exceções. É o que podemos depreender do que disse Max Weber, um dos mais agudos observadores do fenômeno burocrático, para quem uma de suas características seria:

A predominância de um espírito de impessoalidade formalista, sine ira et studio, sem ódios ou paixões e, portanto, sem afeição ou entusiasmo. As normas dominantes são conceitos de dever estrito sem atenção para as considerações pessoais. Todos estão sujeitos a tratamento formalmente igual, isto é, todos na mesma situação de fato. Este é o espírito dentro do qual o funcionário ideal conduz o seu cargo.[4]

A sensibilidade weberiana para com o fenômeno é bem conhecida. Ao mesmo tempo em que associa a emergência do ethos burocrático à modernização, como um complemento indispensável e inevitável da própria ideia de igualdade perante a lei, Weber deixa entrever seu desencanto e lamento, por meio da célebre imagem da jaula de ferro.[5] A aporia está a indicar que são os próprios requisitos organizacionais da liberdade que exigem, no limite, sua supressão. No núcleo da lógica burocrática, opera um princípio de indistinção, senão de indiferença, que, por não reconhecer indivíduos particulares, com suas histórias de vida específicas, trata-nos a todos como um contingente amorfo e indiferenciado, ao qual se aplicaria de modo igualitário o ethos da impessoalidade.

Mas não pretendo, aqui, tratar do tema — o vício da indiferença — por meio de uma reflexão a respeito do fenômeno burocrático contemporâneo. Faço a menção por razões um tanto pragmáticas: é que penso ter encontrado, em um estudioso da burocracia ocidental, uma definição que pode ser útil como sinalização inicial do trajeto a seguir. Com efeito, um ponto de partida possível para pensar a indiferença pode ser a proposição sagaz do antropólogo Michael Herzfeld, em seu livro The Social Production of Indifference,[6] formulada nos seguintes e sucintos termos: “a indiferença é a rejeição da humanidade compartilhada”.[7]

Posta a definição, abandonemos o fenômeno burocrático e consideremos os termos estritos do conceito proposto por Herzfeld: a indiferença é a rejeição da humanidade compartilhada. Proponho que o tomemos como o enunciado (P) de um princípio da indiferença, a exigir, como condição de consistência, a rejeição de qualquer inclinação igualitarista e universalizante que extraia consequências morais positivas da sensação de pertencimento a uma humanidade comum. Tomo aqui a expressão consequências morais positivas como denotadora da presença de um operador — ou agente — moral ativo, que faz, da crença no pertencimento a uma humanidade compartilhada, um princípio de ação no mundo.

Os termos de Herzfeld vinculam a indiferença a uma dimensão negativa. Trata-se, afinal, de uma rejeição. A natureza de tal rejeição, por sua vez, só poderá ser minimamente compreendida se indagarmos a respeito daquilo que está a ser rejeitado. Daí a necessidade de buscar os significados possíveis da indiferença não apenas naqueles por ela vitimados — o que parece ser um marcador primário básico mas nos esforços empreendidos para sua refutação, naquilo que se lhe opõe. Enquanto vícios ativos podem ser direta e positivamente atestados em sua ação legionária pelo mundo; a indiferença exige um tratamento cujo eixo se constitui pela detecção de esforços de configuração imaginária e prática — de formas de mundo sustentadas em um princípio de não-indiferença (1/P).

Para dizê-lo de outro modo: ao contrário de outros vícios, cujos contornos básicos podem ser detectados de modo intransitivo ou seja, neles mesmos, a indiferença impõe a consideração daquilo que está a ser indiferenciado; o mesmo é dizer: a atenção a seu objeto. Dizer de alguém que é cruel, por exemplo, acaba por fornecer indicações significativas a respeito de seu modo de agir e razões mais do que suficientes para evitar a interação. Dizer de alguém que é indiferente, ao contrário, deflagra a pergunta complementar e necessária: indiferente com relação a que (ou a quem)?

Convém determo-nos no termo indiferença. A exploração, neste ponto, abandona o trajeto original de Herzfeld. Nosso desvio tomará a forma de uma incursão, um tanto errática, pelos meandros da filosofia moral e política. A mão amiga de Michel de Montaigne, entre outros, cuidará do trajeto.

Baseado nos ensaios montaignianos, Bernard Sève autor do verbete “Indifference”, no Dictionnaire de Montaigne sugere a distinção entre dois modos básicos da indiferença, dos quais decorrem manifestações variadas: “distinguir-se-á a indiferença nas coisas da indiferença na alma”.[8]
A primeira delas pode ser designada como indiferença ontológica, e encontrará em Leibiniz, por meio do  princípio dos indiscerniveis, forte refutação: todo ser real é diferente de todos os outros seres reais; o real é irredutivelmente singular. Antes de Leibiniz, Montaigne: “poder-se-ia dizer… que nenhuma coisa se apresenta a nós que não possua alguma diferença, por mais leve que seja”.[9] O princípio da não-indiferença ontológica pode ainda ser encontrado na afirmação montaigniana da variedade das opiniões: “E nunca houve no mundo duas opiniões iguais, não mais do que dois pelos e dois grãos. Sua mais universal qualidade é a diversidade”.[10] Nesse registro, a ideia de indiferença aproxima-se da de diferenciação ou indistinção; ou seja, uma incapacidade e/ou não-disposição de reconhecer no mundo distinções entre as coisas. Daí a expressão indiferença ontológica.

Por oposição à indiferença ontológica, que sugere uma crença no caráter indistinto das coisas, Montaigne sustenta que a alma humana é apta a, ela mesma, desenvolver indiferença, uma espécie de cancelamento de tudo que provém do mundo exterior. Montaigne, nesse ponto, aproxima-se de um eco helenístico na apresentação da indiferença como virtude. A indiferença assemelha-se, aqui, à ataraxia cética, derivada da percepção de que a disputa dogmática pela verdade constitui um cenário de equipolência; isto é, de empate entre as diferentes pretensões à verdade. Nossa indiferença a respeito dessa pugna é uma condição necessária para a tranquilidade.

O tema em Montaigne não sugere uma opção pelo quietismo. Ao contrário, tem como endereço a pugna dogmática no campo da religião. Com efeito, na França do século XVI, a indiferença para com a obsessão pela verdade em religião é condição necessária para a tolerância: se a convivência entre as crenças exigir que seja demonstrado qual delas detém a verdade, é provável que os termos da disputa envolvam práticas produtoras de efeitos letais.

O tratamento peculiar da indiferença por Montaigne ajuda-nos a esclarecer os termos da relação entre ceticismo filosófico e moral, e o próprio tema da indiferença. Os objetos do mundo e seus observadores não são indistintos ou indiferenciados. Ao contrário, são constituídos por um inabarcável princípio de variedade e de diferenciação continuada. É o que indica um velho argumento dos céticos antigos: tudo que parece existir existe em circunstâncias particulares. Um princípio de diferenciação institui-se tanto no modo pelo qual as coisas aparecem a seus observadores, quanto nos modos pelos quais estes percebem os objetos do mundo.[11]

Ao mesmo tempo, diante dos assuntos da vida ordinária, a indiferença, como atitude diante do mundo, é algo de impossível: devemos seguir as regras ordinárias da vida, sob pena de não ter vida. Para os céticos, e para Montaigne em particular, o mundo da vida é um atrator irresistível: não há solipsismo — ou fabricação da verdade em privado e em segredo —, mas envolvimento, ainda que contido e crítico, com a vida comum. A indiferença cética diz respei­to apenas aos esforços de demonstração dogmática a respeito das verdadeiras finalidades de todas as coisas (incluindo nós mesmos).

Abre-se, com a distinção de Montaigne, uma passagem para um terceiro modo de consideração da indiferença. A indiferença como vício — e não como falha epistemológica ou como via para a tranquilidade — e como desmoralização — esvaziamento da moralidade e do nexo com outros seres humanos —, como desistência do humano comum. Chamemo-la de indiferença moral. Em notação humiana, poderíamos falar que se trata de uma refutação do princípio da simpatia e da afirmação de uma antipatia universal. Tal indiferença aparece como condição de invisibilidade dos alvos sobre os quais incide, indivíduos ou coletividades. Como tal, apresenta-se como suporte para a operação de vícios mais ativos, tais como o da crueldade.

Parece-me um nexo interessante e a explorar, o da relação entre indiferença e crueldade. Suspeito que a não inclusão da indiferença moral, em Montaigne, como um elemento de complexificação do esquema binário indiferença ontológica-indiferença psicológica, diz respeito ao fato de que, para ele, o lugar de inscrição da indiferença moral é o campo da crueldade, o pior de todos os vícios.

Judith Shklar fornece-nos uma reflexão ímpar a respeito do que Montaigne, no ensaio “Os canibais”, definiu como “vícios ordinários”.[12] A listagem originária inclui: traição, deslealdade, crueldade e tirania. Shklar reúne-os na série crueldade, hipocrisia, esnobismo e traição, e sugere que vícios ordinários são tais, que deles não esperamos consequências espetaculares ou não usuais. Em outros termos, estão inscritos na marcha ordinária das coisas. Um cenário nelsonrodriguiano — a vida como ela é — não revelaria coisa outra a não ser a extrema familiaridade desses vícios.

Judith Shklar chama a atenção para o fato de a listagem montaigniana não ser linear: não se trata de uma apresentação dos vícios ordinários por sim­ples enumeração, como uma espécie de adição aos pecados capitais. Ainda que Santo Agostinho, por exemplo, tenha sustentado a precedência do orgulho no conjunto dos pecados capitais, sua listagem não é acompanhada da apresenta­ção óbvia de sua escala de relevância. De modo distinto, Montaigne faz-nos sa­ber que a “crueldade é o extremo de todos os vícios”.[13] E não porque seja o mais grave, ou o mais letal. A crueldade é o sobrevício, é o acréscimo cruel — não há como evitar o pleonasmo — que conferimos a outros vícios. Desse modo, pode ser tomada como vício originário que potencializa a malignidade dos demais. É esse o sentido da proposição de Shklar: putting cruelty first.[14]

Minha intenção, ao concluir a primeira parte deste texto, é a de sugerir a seguinte proposição: é necessário pôr a indiferença em primeiro lugar. Entre as razões para tal, penso poder recorrer, mais uma vez, a Michel de Montaigne.[15]

A crueldade, para Montaigne, é refratária a qualquer explicação: o homem cruel faz correr mais sangue do que o necessário; a crueldade, portanto, é prazer gratuito que faz causar o sofrimento. Por essa via, a crueldade torna-se a figura do mal enquanto tal, de um mal ao qual razão alguma pode ser atribuída. O homem cruel ama o mal pelo prazer do mal, sem outro fim senão o de contemplá-lo ou de simplesmente praticá-lo.

O caráter inexplicável da crueldade retira-a da ordem das causalidades ordinárias. Crueldade é excesso e mergulho ilimitado no extraordinário. Como tal, ela exige a presença de um operador de desumanização, fundado na rejeição de uma humanidade comum. Os termos da definição de Herzfeld para a indiferença retornam, portanto, como sinalizadores desta exigência lógica: a crueldade, como vício excessivo e superabundante em seus efeitos e atos, exige a presença, silenciosa e a montante, de um operador silencioso — a indiferença.

A aproximação entre os dois vícios pode ser ainda sustentada no argumento de Montaigne que enumera as virtudes que se opõem à crueldade: compaixão, simpatia e piedade.[16] É quase imperativo concluir que tais virtudes podem ser consideradas também como antídotos à indiferença. Nesse sentido, indiferença e crueldade aproximam-se pelo compartilhamento de antônimos. O horror de Montaigne à crueldade — em uma clara antecipação do argumento de Rousseau — revela, ainda, um sentimento de pertencimento, de comunalidade, que incide sobre o humano e o excede, uma vez que incorpora os animais e os seres vivos em geral. Tal sentimento inscreve-se de modo forte na lógica dos antípodas da indiferença.

Seriam idênticos, então, os vícios da indiferença e da crueldade? Não creio. A relação parece não ser de identidade, mas sim de nexo e, sobretudo, de precedência axiológica. São os valores da indiferença que, por meio de uma passagem ao ato, podem deflagrar a crueldade. Sustento, pois, que atos de crueldade são como que arqueologicamente precedidos e constituídos por atos de indiferença. Nesse trajeto, que procede das camadas fundas da indiferença, as formas ativas e invasivas da crueldade retiram sua consistência e fúria.[17]

Indiferença é um vício silencioso, e passagem e suporte para vícios ativos. Seu caráter de suporte para a crueldade sustenta-se, ainda, no argumento de que não há limites morais e éticos razoavelmente postos para definir o que pode ser feito com aqueles que nos são indiferentes. O movimento de recusa de uma humanidade comum parece incidir primariamente sobre suas vítimas, mas, como condição de possibilidade, tem a autorretração, do próprio sujeito, do âmbito que ele se dispõe a desconsiderar. A desumanização das vítimas da indiferença é, portanto, a simetria da autodesumanização dos sujeitos da indiferença.

Estabelecido o lugar da indiferença na economia dos nossos vícios, importa, agora, explorar as implicações de uma proposição apresentada no início deste ensaio: é necessário buscar os significados possíveis da indiferença — e não apenas assinalar-lhe o seu lugar na constituição da condição humana — nos esforços empreendidos para sua refutação. É essa a condição para que visualizemos que mundos são refutados pela afirmação do princípio da indiferença. Mais uma vez, são os ecos de Montaigne que indicam o trajeto: “levamos a sério o que odiamos”. É necessário, pois, escutar os que se horrorizaram com a indiferença.

Do princípio da não-indiferença: duas versões

A hipótese maior que orientará a escuta, apresentada como necessária, é a de que o campo da filosofia política e moral abriga diversos esforços de refutação do princípio da indiferença (i. e., a rejeição da humanidade comum). A principal razão é de natureza lógica: por serem versões a respeito da forma do social e da interação entre os humanos, diferentes tradições da filosofia política e moral são obrigadas a enfrentar o tema dos nexos sociais ou, em outros termos, da necessidade de um padrão de não-indiferença, como condição necessária para a própria sociabilidade. O caráter alucinatório e visionário obrigatoriamente inscrito nos esforços de constituir argumentos e princípios de não-indiferença faz com que, em cada um deles, encontremos a ostenção do que se lhe opõe. Em outros termos, o espectro da indiferença excessiva e generalizada — assim como etiologia — apresenta-se, à partida, como parte do trajeto que o refuta. Ao falar daquilo que não nos deve ser indiferente, a filosofia política e moral indica o que nos torna — de fato — indiferentes.

Duas versões do princípio da não-indiferença serão aqui consideradas, de forma breve, como marcadores possíveis de ambos os esforços: mostrar o que produz indiferença e dizer o que deve nos proteger desse espectro. Vários pensadores poderiam ser mobilizados, mas pretendo considerar a tríade iniciada por Protágoras de Abdera (490 a.C. – 420 a.C.) e completada, no século XVIII, por Jean-Jacques Rousseau. Especial ênfase será dada à versão apresentada por Protágoras, por pioneira e pela força de seu argumento, que faz da não-indiferença uma condição necessária para a justiça.[18] Os argumentos de Rousseau — em torno do tema da piedade — dão sequência aos termos da solução protagoriana — ao mesmo tempo em que os redirecionam — e serão aqui considerados como complementares.

PROTÁGORAS, AS ORIGENS E AS VIRTUDES DO PUDOR (AIDÓS) E DA JUSTIÇA (DIKÉ)

Protágoras discorreu sobre as origens da sociabilidade humana em longo discurso, registrado no diálogo “Protágoras”, de Platão.[19] A narrativa platônica, simulada ou não, teria tido por base uma das obras de Protágoras, intitulada Ferités en arché katastáseos. Há, como de hábito, diferentes traduções do título. Dois dos principais estudiosos modernos da sofistica, por exemplo, dão ao título versões convergentes. Para Eugène Dupréel, ele poderia ser traduzido como A organização primitiva; William Guthrie prefere algo como Sobre o estado originário do homem.[20] Qualquer que tenha sido sua origem e sua tradução precisa, é possível, no relato de Protágoras — narração de um mito a respeito da origem da justiça —, identificar uma preocupação em estabelecer as origens da vida social, assim como os modos de aquisição das virtudes necessárias à associação humana. Ambas — as origens e as bases da associação — exprimem, de modo pioneiro e inequívoco, um princípio de não-indiferença.

Na sequência que passo a apresentar, os pontos essenciais do argumento/ mito protagórico podem ser (muito) resumidos:

  • Os primeiros humanos são personagens de uma vida desordenada e vivem em um estado de mundo fragmentado e disperso. Suas necessidades básicas — alimento, roupa e abrigo — são satisfeitas pela posse de uma entechnos sophia — technical sagacity, na tradução de Guthrie,[21] concedida graças à ação reparadora de Prometeu, que lhes conferiu as artes e o fogo, por ele roubados de Hefesto e de Atena. (Seu irmão Epimeteu havia distribuído qualidades adequadas a cada um dos seres mortais, tendo esquecido, por “carecer de reflexão”, de atribuí-las aos humanos. Nesse sentido, a ação de Prometeu é reparadora.)

Duas observações, antes de prosseguir com a sequência:

  1. A palavra grega que define a situação dos humanos pré-associação é sporadén, traduzida nos mencionados textos de Guthrie e Kerferd por scattered (fragmentados/espalhados) ou dispersed (dispersos). Segundo o léxico de Liddel & Scott, a palavra está associada a spora e spermaton, expressões usadas pelos atomistas Demócrito de Abdera e Leucipo de Mileto, cujo significado é análogo à ideia de semente ou de semeadura.[22] A utilização da ideia pelos atomistas, antes de sua mobilização por Protágoras, colocara em ação a bela palavra panspérmia, portadora da imagem da generalização, por todo o universo, de incontáveis partículas dotadas da propriedade de configurar uma pluralidade incontável de mundos.[23] A imagem suscitada pela palavra sporadén aparecerá, ainda, em Aristóteles, em sua referência a homens sporadikós, isto é, que não vivem em comunidades.[24]
  2. O que poderíamos designar como um estado de natureza protagoriano revela um cenário que exibe radical fragmentação humana. Não há ali conteúdos morais, mas tão somente um comportamento que mescla instinto e necessidade. Apesar de dotados de um “conhecimento necessário para a vide, os homens permaneceram “sem possuir a sabedoria política”, pois esta “se encontrava com Zeus”, cuja morada era inexpugnável.[25] Se for possível falar de uma teoria social protagoriana, suas bases são constituídas por explícita aversão a estados de mundo habitados por seres esporádicos e mutuamente indiferentes.

A sequência procede do seguinte modo:

  • Os humanos gradualmente desenvolvem mecanismos de cognição, a respeito do mundo e com relação a si mesmos; estabelecem, ainda, modos mais permanentes de sociabilidade através da linguagem — sustentada por meio de acordos a respeito dos significados dos sons que emitem —, do aperfeiçoamento das artes e dos objetos úteis.
  • Vivem ainda dispersos: “não havia cidades; por isso, eram dizimados pelos animais selvagens, dada sua inferioridade em relação a estes; as artes mecânicas chegavam para assegurar-lhes os meios de subsistência, porém cram inoperantes na luta contra os animais, visto carecerem eles da arte política, da qual faz parte a arte militar”.[26]
  • Nesse estado primário de associação, os humanos praticam continua­mente atos de injustiça, já que desconhecem a arte de viver juntos; no limite, sua ignorância põe em risco a mínima solidariedade estabele­cida, permitindo, pois, a reemergência de situações governadas pelo atributo sporadén: “por carecerem da arte política, causavam-se danos recíprocos, com o que voltavam a dispersar-se e a serem destruídos como antes”.[27]
  • Zeus, por intermédio de Hermes, envia aos humanos duas virtudes: aidós e diké, com a finalidade de tornar possível o estabelecimento de uma ordem política, com a consequente criação de laços de amizade e cooperação.

Aqui, nesse último passo, o momento crucial da narrativa e de fixação do princípio da não-indiferença.

Sua inteligibilidade exige a consideração de três observações:

  1. Enquanto diké pode ser entendida como a designar as ideias de ordem, justiça, direito e imagens afins, aidós é uma palavra mais enigmática.[28] Guthrie, por exemplo, ao defini-la, admite sua imprecisão. Aidós seria portadora de “uma qualidade mais complicada que combina, grosso modo, o sentido de vergonha, modéstia e respeito pelos outros”.[29] Ainda segundo Guthrie, no contexto do mesmo comentário, a ideia grega “não está muito distante de consciência”. Eugène Dupréel preferiu associar o termo grego à palavra pudeur.[30] O providencial léxico de Liddel & Scott acrescenta outros significados: sentimento moral, reverência, temor, respeito pelos sentimentos ou opiniões de outros e por sua própria consciência, vergonha, respeito próprio, senso de honra, sobriedade, mo­deração, consideração por outros, demência, dignidade, grandiosidade.[31] Aidós pode, então, ser dotada de dupla dimensão: (a) uma espécie de ancestral do man in the breast smithiano, aqui tomado como conjunto de virtudes que garante a internalização das normas, definidas por diké, (b) uma disposição à solidariedade e à cooperação, movida não por impulsos naturais, mas por uma espécie de sensibilidade pública, anterior à definição substantiva dos valores que compõem o próprio mundo público.
  2. A introdução de aidós e diké demonstra que, para Protágoras, a necessidade não é requisito suficiente para a gênese da ordem social. O que se impõe, para tal, como compulsório é a aceitação de um princípio de justiça, assim como de mecanismos de internalização das normas. Daí em diante, os humanos estarão equipados para agir como animais sociais e políticos, e não mais como bestas esporádicas. Desse ponto em diante, os humanos incorporam virtudes capazes de garantir seu afastamento com relação ao primado absoluto da necessidade. Diké e aidós são, assim, apresentadas como virtudes necessárias à sobrevivência dos homens e à manutenção do laço social. Tal atribuição coincide com a análise fina de Eugène Dupréel: diké e aidós configuram uma técnica social, condição decisiva para a vigência da ordem social. É possível mesmo imaginá-las como constituindo uma natureza de segunda ordem, que acaba por se impor aos humanos, tais como os próprios fenômenos da physis. O fato de podermos remeter sua origem a artifícios, ou imaginar cenários que modifiquem suas manifestações contingentes, não oblitera a vigência necessária dessas virtudes em qualquer ordem social minimamente consistente. Em outras palavras, é da natureza da ordem social — constituída por artifícios — ser dotada de diké e aidós.
  3. O critério de distribuição das artes — o “conhecimento necessário para a vida” — aos humanos havia sido errático e desigual: “um só homem com o conhecimento da medicina basta para muitos que a ignoram, verificando o mesmo com todas as outras artes”.[32] Quando Zeus decide complementar tal distribuição originária com a concessão de diké e aidós, ele convoca Hermes para a tarefa. Este, por sua vez, indaga a respeito do modo pelo qual deveria distribuí-las, se para poucos ou entre todos os humanos, na mesma medida. A indicação divina ordena a segunda alternativa: “pois as cidades não poderão subsistir, se o pudor (aidós) e a justiça (diké) forem privilégio de poucos, como se dá com as demais artes”.[33] As cidades, na chave de Protágoras, são os lugares nos quais a medida humana é exercida. Com efeito, se associarmos o mito do Protágoras à famosa tese do sofista, reportada por Sócrates no Teeteto e no Cratilo —[34] o homem é a medida de todas as coisas —, temos um corolário preciso: são seres portadores de diké e aidós que exercem a medida das coisas, por meio da linguagem e de um exercício cívico que exclui o predomínio do princípio da indiferença. Ainda que não se trate de uma adesão a uma ideia universal e abstrata de uma humanidade comum e compartilhada, o avesso da indiferença acaba por impor suas exigências. A obra de diké, que dita os termos legais e institucionais da cooperação, exige a copresença de aidós, como, a um só tempo, requisito necessário e condição de fixação no mundo da vida. Em outros termos, a ordem humana exige a presença de um horizonte no qual se fundem obrigações políticas e obrigações morais. O que resulta de tal fusão pode ser declinado no idioma do princípio da não-indiferença. O laço social, portanto, ao mesmo tempo que exige a presença de operadores de não-indiferença, é, ele mesmo, a própria condição de existência desses operadores.

Em Protágoras, diké e aidós aparecem como condições necessárias para a presença e efetividade de um princípio de não-indiferença. Em outros termos, há aqui uma dissociação entre as normas originárias da natureza — que indicavam dispersão e incerteza — e a obra do artifício social. Mais uma vez, Eugene Dupréel parece ter razão quando chamou nossa atenção para o caráter eminentemente sociológico da observação de Protágoras a respeito dos humanos.[35] Há, aqui, algum otimismo: a vida social, e seus artifícios, é o único domínio no qual a disposição para a não-indiferença — uma das traduções possíveis para aidós — traduz-se em não-indiferença ativa — pela presença das obrigações postas por diké.

ROUSSEAU: A NÃO-INDIFERENÇA COMO ORIGEM E COMO FUNDAMENTO

O tema da indiferença inscreve-se no coração da filosofia política e moral de Jean-Jacques Rousseau, um homem que se referiu a seu próprio nascimento como a “primeira das minhas infelicidades”. Nascido “enfermiço e doente”, Rousseau custou a vida à sua mãe e, ao fazer do nascimento o primeiro evento de uma série de infortúnios, mais do que pessimismo ou amargura, sua evocação sugere a presença de um operador de não-indiferença, em registro autobiográfico.[36]

A esperança sociológica presente em Protágoras dificilmente poderá ser encontrada em Rousseau, para quem “com facilidade se faria a história das doenças humanas seguindo a das sociedades civis”?[37] Ao contrário do sofista, para ele trata-se de indicar o império do princípio da indiferença como con­dição mesma da vida social dos humanos civilizados, e não como um acidente da interação social, a ser mitigado e regulado pela combinação entre pudor e justiça. Se o princípio contrário — o da não-indiferença — puder ser detectado e bem fundado, isso exigirá que nos afastemos de todos os fatos, tal como ensina a célebre cláusula metodológica do segundo Discours a respeito das fontes da desigualdade.

Quero sustentar que, na verdade, trata-se de um duplo afastamento de to­dos os fatos. Antes de tudo, importa retroceder às origens, a um domínio ante­rior a toda narrativa histórica que, por definição, tem parte com a experiência de uma espécie já socializada e descaracterizada pelo processo civilizatório. O mundo dos fatos é, de modo imperativo, o mundo da espécie socializada e já reflexiva: o homem que medita já é um “animal depravado”, e não será a partir da descrição do que ele pensa e faz que algo de sua natureza originária poder-nos-á ser revelado. Uma etnografia de seus hábitos civilizados exibirá tão somente sua degradação. É a busca da condição primordial dos humanos — o que de mais verdadeiro há em sua espécie — que exige a suspensão dos fatos. Tal é o movimento do segundo Discours, já insinuado no primeiro, a respeito das ciências e das artes.[38]

Mas importa, ainda, a Rousseau promover uma segunda ordem de afas­tamento dos fatos e, com igual ênfase, retroceder ao âmago de cada um dos sujeitos humanos para, ali, encontrar a sede da maior de todas as evidências. Uma evidência — isto é, uma certeza que é a condição mesma de existência do sujeito — que não pode advir nem da razão nem da experiência (ao contrário do que sustentavam, pela ordem, racionalistas e empiristas), pois ambas têm parte com a história e com o abismo da imperfeição progressiva dos humanos. Tal evidência é constituída por uma sensibilidade moral, antes que pela razão ou pelo trabalho dos sentidos e da experiência. São esses dois movimentos hipotéticos — um arqueológico, outro introspectivo — que devem ser considerados para que o poderoso argumento rousseauniano da não-indiferença ganhe pleno sentido. O primeiro movimento, sustentado em um afastamento da imediaticidade da história, foi exercitado no Discurso sobre as origens e os fundamentos da desigualdade entre os homens, de 1753. O segundo, vamos encontrá-lo no Emilio, de 1762, em particular no livro IV, no segmento denominado “Profissão de fé do vigário de Saboia”.[39] Ambos serão aqui considerados segundo a ordem indicada.

O mergulho na rota da regressão arqueológica é o que resulta da meditação a respeito das “primeiras e mais simples operações da alma humana”. Aí, Rousseau encontrou a presença de dois princípios, ambos “anteriores à razão”. O primeiro deles “interessa profundamente ao nosso bem estar e à nossa conservação”. O segundo “nos inspira uma repugnância natural por ver perecer ou sofrer qualquer ser sensível e principalmente nossos semelhantes”.[40] A fusão dos dois princípios é poderosa: eles são suficientes para deles fazer decorrer nada menos do que “todas as regras do direito natural”.[41]

O cuidado com nossa conservação “é o menos prejudicial” aos demais e inscreve-se em um estado mais propício à paz, sendo ainda “o mais conveniente ao gênero humano”. Não há nada nesse exercício de conservação que possa ser aproximado à ferocidade natural, implicada na ideia hobbesiana de “direito de natureza” — o conatus que nos compromete, antes de qualquer coisa, com a autopreservação. Em Rousseau, tal ferocidade será adquirida no processo que transforma o homem natural em um ser da cultura e da civilização. Nessa passagem, o cuidado com a conservação faz-se amor próprio — e não mais amor-de-si — à medida que avança o processo civilizatório.

Mas, é bem o outro princípio anterior à razão que importa destacar. Trata-se de um princípio que Hobbes “não percebeu”: é possível aos humanos suavizar a ferocidade do “amor-próprio” ou seu “desejo de conservação” pelo tempero proporcionado por uma “repugnância inata de ver sofrer o seu semelhante”.[42] Tratar-se-ia de uma “virtude natural” que até mesmo “o detrator mais acirra­do das virtudes humanas teria de reconhecer”. Isto para Rousseau constitui-se como uma evidência. O próprio autor da Fábula das abelhas — o “frio e sutil” Bernard Mandeville — teria sido obrigado a reconhecer “o homem como um ser compassivo e sensível”.[43]

Vejamos como Rousseau define tal princípio, por ele designado como “piedade”:

[A piedade é uma] disposição conveniente a seres tão fracos e sujeitos a tantos males como o somos; virtude tanto mais universal e tanto mais útil ao homem quando nele precede o uso de qualquer reflexão, e tão natural que as próprias bestas às vezes dão dela alguns sinais perceptíveis.[44]

É certo, pois, que a piedade representa um sentimento natural que, moderando em cada indivíduo a ação do amor de si mesmo, concorre para a conservação de toda a espécie. Ela nos faz, sem reflexão, socorrer aqueles que vemos sofrer; ela, no estado de natureza, ocupa o lugar das leis, dos costumes e da virtude, com a vantagem de ninguém sentir-se tentado a desobedecer à sua doce voz…[45]
Victor Goldschmidt, com inteira pertinência, nota que a piedade, ou compaixão, é um sentimento cuja essência releva da biologia, pois pertence aos humanos enquanto seres dos sentidos, e não como seres racionais.[46] Esse ponto parece-me central, pois Rousseau recusa-se a atribuir à razão qualquer papel de fundamento: ela é, na verdade, uma figura inscrita na história e assalta os humanos quando já vão estes distantes de sua condição originária. É esse o sentido da provocativa proposição, já aqui mencionada, que sustenta que “o homem que medita é um animal depravado”.[47] A piedade/compaixão, ao contrário, está posta em um plano de imanência ao homem natural, fixada em seus sentidos. Aqui, Rousseau promove uma aproximação entre os homens e os demais animais. Mas, mais do que se limitar à afirmação de um laço biológico comum — nessa altura argumento já nada original —, o que Rousseau está a fazer é incluir os demais animais na esfera de ação da piedade humana. Em outros termos, há aqui uma passagem da biologia para a moralidade, ou, com mais força, uma ideia de biologia que incorpora a moralidade.

Na tensão entre razão e piedade, esta última aparece como apoio para a primeira. Se for possível pensar em “virtudes sociais” — ainda que a expressão saiba um tanto a oxímoro —, todas elas decorrerão dessa qualidade que recebe de Rousseau uma legião de heterônomos: generosidade, clemência, humanidade, comiseração. O núcleo da virtude natural da piedade — e de toda sua vasta sinonímia — reside em uma dinâmica básica: a força da comiseração será maior tanto quanto o for a identidade entre o “animal espectador” e o “animal sofredor”. A maior identidade possível é a que se verifica no estado de natureza. O contrário se dá no “estado de raciocínio”: “É a razão que engendra o amor-próprio e a reflexão o fortifica; faz o homem voltar-se sobre si mesmo; separa-o de quanto o perturba e aflige”.[48]

O “estado de raciocínio” é o abrigo por excelência do princípio da indiferença. Com efeito, o homem socializado é aquele que assiste impávido à visão da degola de um “seu semelhante sob a sua janela”. Basta que pondere um pouco consigo mesmo para que o impulso natural da comiseração ceda lugar à identidade “com aquele que assassina”. Trata-se, para Rousseau, de um “talento admirável”: a indiferença não decorre de relaxamento do espírito ou de mera e preguiçosa desatenção. Há nela, ao contrário, um longo e sistemático esforço civilizatório, cujo efeito é o apagamento da sensibilidade originária: a indiferença é algo que se adquire e que requer reiterações sucessivas para que se afirme como o enunciado da segunda natureza dos humanos. Ao “homem selvagem” falta esse “talento admirável”: “por falta de sabedoria, vêmo-lo cada dia entregar-se temerariamente ao primeiro sentimento de humanidade”.[49]

É esse o princípio, segundo Rousseau, desconsiderado por Hobbes. O animal natural que este pinta é o ser já depravado em algum momento do abismo civilizatório. Goldschmidt tem razão quando apresenta o argumento da piedade como um exercício anti-hobbesiano:

É necessário recordar que esse segundo “princípio” é estabelecido contra Hobbes. A piedade, no estado de natureza, não é outra coisa senão um limite imposto ao instinto de conservação: ela o impede de tornar-se exorbitante, o mantém em seus limites naturais e não permite que se extenda até os confins do universo. Ela garante que “a espécie humana não seja formada unicamente para se destruir”.[50]

Se o segundo Discurso contém a revelação da origem da espécie e a narrativa do processo que a perdeu, o Livro IV do Emílio trata de uma questão filosófica central: como se configura a certeza? A questão é tratada na Profissão de fé do vigário de Saboia — que ocupa a maior parte do Livro IV —, segundo Luiz Roberto Salinas Fortes, uma espécie de Discurso do método de Rousseau.[51]
Com efeito, a profissão de fé do vigário saboiano pode ser percebida como um discurso sobre a certeza, movido pelo amor à verdade. Narrada na primeira pessoa, ela descreve tal busca, precedida por uma vida, e uma formação, avessa a qualquer princípio de autonomia: “aprendi o que quiseram que aprendesse, disse o que quiseram que dissesse, prometi o que quiseram e fui feito padre”. Com a “idade madura” sobreveio a incredulidade e as “disposições de incerteza e da dúvida”[52]. A passagem seguinte é reveladora da incerteza que assaltou o pobre vigário, em sua fase madura:

Meditei pois sobre a triste sorte dos mortais flutuando nesse mar de opiniões humanas, sem bússola, e entregues a suas paixões borrascosas, sem outro guia senão um piloto inexperiente que desconhece a rota, que não sabe de onde vem nem de onde vai. Eu me dizia: amo a verdade, procuro-a e não a posso reconhe­cer, que me mostrem e ficarei apegado a ela: por que deverá fugir à ânsia de um coração feito para adorá-la?[53]

O mergulho nos filósofos foi de nenhuma valia: são “todos orgulhosos, afirmativos, dogmáticos, mesmo em seu pretenso ceticismo; nada ignorando, nada provando, zombando uns dos outros”. Aversão aos dogmáticos, mas não menor desgosto para com os céticos: “esses filósofos não existem, ou são os mais desgraçados dos homens”.[54] Dogmáticos ou céticos, todos eles são prota­gonistas de um “conflito das filosofias” para empregar a expressão seminal de Oswaldo Porchat Pereira,[55] que, para além de seu aspecto de diaphonía — isto é, de desacordo indecidível, manifesta má-fé por parte dos contendores: “cada um deles sabe que seu sistema não é mais bem alicerçado que o dos outros, mas o sustenta porque é seu”.[56]

Dessa visão pessimista a respeito das possibilidades filosóficas de esclarecimento do tema da verdade e da certeza, emerge uma questão idêntica a que já havia sido proposta por Descartes: sobre o que apoiar nossas certezas e nossas ideias a respeito do mundo e de nós mesmos? Na notação introduzida por Fernando Gil, trata-se de buscar condições consistentes para estabelecer um fundamento, algo que confere ao sujeito uma certeza epistêmica anterior mesmo aos juízos que formula a respeito das coisas que estão fora de si.[57] Para tal, Rousseau apresenta o que parece ser a sua versão para a navalha de Ockham: é necessário “limitar minhas pesquisas” às “coisas que me importava saber”. O movimento, assim apresentado, o orienta na direção de sua “luz interior”.[58]

Se o problema é idêntico ao de Descartes, o tratamento será distinto: o que Rousseau toma como evidência é algo diverso do que havia sido posto por Descartes. Neste, as bases da evidência são puramente intelectuais e racionais: a certeza de uma ideia é dada ao sujeito se ela corresponde aos critérios epistêmicos de clareza e distinção. Em Rousseau, ao contrário, a evidência da certeza é indissociável do trabalho dos sentidos e da experiência. Há, pois, uma teoria da experiência que exige a mobilização dos sentidos.

Mas, antes que se apresentem suspeitas empiristas, o trabalho dos sentidos está diretamente associado à sensibilidade moral. Em outros termos, não mais estamos sujeitos ao pêndulo que opõe racionalistas — em busca de evidências intelectuais — a empiristas — que recusam à evidência um estatuto distinto do da prova material. No confronto entre a razão e os sentidos, é a sensibilidade moral que aparece como marcador de certeza. Para que ela opere, é bem outro o órgão humano convocado para a tarefa: Rousseau só admite como evidentes os conhecimentos “aos quais na sinceridade de meu coração eu não poderia recusar o meu consentimento”.[59] Desse fundamento, decorre a ordem das razões de Rousseau: se eu não posso deixar de dar assentimento ao que é evidente para a “sinceridade do meu coração”, será verdadeiro tudo que a mim parece “ter uma ligação necessária com estas primeiras”.[60] O mais permanece na incerteza. Por outro lado, tudo aquilo que é “útil para a prática” é digno de inspeção.

O que o livro IV do Emílio sugere é que a atividade de conhecer o mundo mobiliza um sujeito a um só tempo moral e passional. É possível conhecer de modo seguro tudo aquilo que possui pregnância com as paixões e a moralidade, um domínio que contém o que diz respeito à sobrevivência e à felicidade dos humanos, assim como à conduta diante dos outros. Essas são as questões que interessam, e sobre elas há possível conhecimento seguro. Um conhecimento que se quer não-metafísico, uma vez que movido por imperativos de ordem prática.[61]

Ainda na analogia com Descartes, o equivalente do cogito para Rousseau é um domínio preenchido por um operador moral que encerra a própria ideia de identidade pessoal. Não se trata de uma identidade que possa ser definida por critérios puramente racionais ou fundados nos sentidos, mas de um sentimento que faz com que a certeza de que eu existo inclua, como condição necessária, a existência dos outros.

Uma certeza fundada em sentimentos morais, com implicações práticas. No exercício dessa certeza, o que Rousseau deseja ver é um animal que age por suas paixões, pelo que o emociona. Quanto mais envolvido, maior o seu esclarecimento, maior a sua empatia para com os que sofrem, pois apenas a ima­ginação movida pelos sentimentos morais pode produzir solidariedade para com a dor alheia. Que o contrato rousseauniano — descrito na obra Do contrato social –[62] seja um pacto de associação e não de submissão, isso diz respeito à necessária interposição do que é comum e geral para a definição do que deve ser uma existência individual consistente.

Tanto o argumento arqueológico — do segundo Discurso — como o introspectivo — da Profissão de fé — adotam a não-indiferença como fundamento da experiência humana. Detectado por meio de um artificio teórico que afasta todos os fatos, o fundamento da não-indiferença deve a eles retornar para aí exercer sua capacidade regenerativa. Rousseau é claro a respeito do fundo alu­cinatório de seu fundamento: trata-se de buscar um princípio que talvez nunca tenha existido, mas “sobre o qual se tem, contudo, a necessidade de alcançar noções exatas para bem julgar de nosso estado presente”.[63] E não seria tal fundo alucinatório inerente a todo movimento no campo da filosofia política?

O princípio encontrado — o da piedade/compaixão e seus heterônomos — é base para a refutação da ideia de que a associação humana se funda na expectativa de vantagens recíprocas. Nessa perspectiva — presente em uma linhagem que inclui Hobbes e Locke —,  indivíduos racionais podem ultrapassar o interesse individual estrito — o amor-próprio rousseauniano — em prol de uma modalidade mais esclarecida de exercício do próprio interesse. À combinação entre essa forma de promoção do interesse individual e o estabelecimento de uma rede de dependências mútuas entre os indivíduos, como base da sua asso­ciação, Rousseau designou como “a obra-prima da política do nosso tempo”.[64] Aviso: trata-se de ironia pura; a “obra-prima” representa uma obra pérfida, responsável pelo estabelecimento de uma prosperidade e de uma urbanidade aparentes, que encobrem os fatores reais de constituição da sociedade: inveja, suspeita, ambição, exploração. Rousseau, dessa forma, rejeita com clarividên­cia o que mais tarde viria ser a combinação que, da ciência política, fez a mais conservadora forma de conhecimento social: o amálgama entre institucionalismo — como teoria do mundo público voltada para desenhar “obras-primas” institucionais — e utilitarismo — como psicologia e fundamento para a ação humana e marcas das teorias da escolha racional que, vindas da Economia, foram acolhidas pelo núcleo duro e conservador da Ciência Política contemporânea.

Por maior que seja o pessimismo de Rousseau, duas certezas parecem derivar de sua reflexão: a primeira, a respeito das origens dos tempos humanos, revela a piedade como parte fundamental da condição humana originária; a segunda, indica a sede epistêmica de nossas certezas, o “coração” — e não os sentidos e a razão —, preenchido pela moralidade. Por ambos os caminhos, Rousseau opera um veto à indiferença e uma recusa do que poderia ser designado como uma posição solipsista em filosofia política. Tal posição poderia ser representada pelos que — como Thomas Hobbes e John Locke — pensam a ordem social e política como um artifício que deve decorrer de direitos individuais naturais. Neste caso, a operação de um princípio de não-indiferença é menos relevante do que a busca racional das melhores condições jurídicas e institucionais de proteção de direitos naturais individuais.

Marcas finais

Em Protágoras e em Rousseau — ambos referências incontornáveis para a refutação do princípio da indiferença —, encontram-se dois argumentos distintos. Para o primeiro, o fato social é revelador, por si mesmo, da presença de aidós (pudor) — por definição a virtude na não-indiferença — e de seu complemento diké (justiça). Mais do que revelar supostas vantagens da associação, Protágoras argumentou que a posse de tais virtudes capacitava os humanos a constituir uma forma superior de vida, aquela que se materializa nas cidades e constitui-se a partir do exercício da política do discurso. Em Rousseau, são as certezas da filosofia da história, e de uma teoria do conhecimento não dissociada de sentimentos morais, que dão a pista da infalibilidade dos fundamentos. Ainda que pessimista e amargo diante do que vê, Rousse­au não admite a falibilidade ou obsolescência de seus fundamentos. É a vida como ela é que, antes, deve ser reparada, e para tal são inestimáveis os argumentos da não-indiferença.

David Hume, o adorável cético do século XVIII, ainda que convencido das virtudes da simpatia — para ele uma paixão original e universal nos humanos —, não estava seguro a respeito de sua infalibilidade. Avesso às pretensões de de­monstração da filosofia política de base solipsista — crença em direitos individuais axiomáticos postos ex ante a qualquer interação —, para Hume, assim como em Protágoras, o próprio fato da vida social exige a presença ativa de uma virtude com implicações fortes de não-indiferença. É nelas que se ins­creve a fonte de nossos juízos morais. O que em Rousseau aparece como uma virtude originária, dissipada pelo tempo e pela civilização, para Hume é uma “virtude natural”, coextensiva — e necessária — à própria experiência social dos humanos.

A simpatia é uma emoção moral, que envolve motivações altruístas, aberta, ainda, a aperfeiçoamento, pela educação moral e pela razão. Sua dimensão moral está presente pelo fato de que é um mecanismo mental pelo qual compartilhamos dos sentimentos dos outros. É, ainda, uma virtude, que se expressa pelo pensamento, pelos sentimentos e pela ação. O travo cético humiano se expressa na advertência de que não há passagem automática do plano da virtude natural da simpatia para qualquer ideal isonômico de imparcialidade.

Ao que tudo indica — para estabelecer um nexo comparativo em Rousseau a piedade contém, em si mesma, como exercício irrefletido do sujeito, um operador de isonomia: trata-se de uma mobilização diante de qualquer sofrimento percebido; uma disposição sem reservas, sem métrica e, por extensão, indistinta. Trata-se, pois, de um exercício da não-indiferença, indiferente a seus alvos particulares. O homem genérico de Rousseau pratica uma solidariedade igualmente genérica.

David Hume considera sujeitos por definição, socializados e inscritos na história. Em outros termos, personagens de circunstâncias particulares, sem a experiência natural da generalidade ou de qualquer substância. É no exercício das interações postas pelas circunstâncias que a virtude da simpatia opera, por pensamentos, palavras e ações. É esse o sentido do travo prudente de Hume: é possível atribuir à virtude da simpatia imparcialidade e aplicação isonômica, ou ela, inevitavelmente, encerra modos erráticos de manifestação? Se for esse o caso, o que pode/deve ser feito?

Com efeito, a simpatia é uma virtude caprichosa: “Simpatizamos mais com as pessoas que nos estão próximas do que com as que estão distantes; simpatizamos mais com nossos conhecidos do que com estranhos; mais com nossos conterrâneos do que com estrangeiros”.[65] “Nossa situação, tanto no que se refere a pessoas como a coisas, sofre uma flutuação contínua…”[66] A simpatia abriga uma parcialidade que se afasta de qualquer perspectiva de imparcialidade. A teoria moral humana revela aqui uma séria complexidade: a simpatia como princípio de indiferenciação — como deflação do “enunciado Herzfeld” — se faz acompanhar por alguma indiferença.

Atento à questão, Hume sugere que é necessário corrigir a simpatia, pela adoção de um “ponto de vista firme e geral”, capaz de ajustar nossos juízos morais: ” […] para impedir essas contínuas contradições, e para chegarmos a um julgamento mais estável das coisas, fixamo-nos em algum ponto de vista firme e geral; e, em nossos pensamentos, sempre nos situamos nesse ponto de vista, qualquer que seja nossa situação presente”.[67]

A correção dos sentimentos através da adoção de um ponto de vista geral é o que permite alguma proteção diante do capricho das circunstâncias particulares. Hume está a revelar um agente moral marcado pela falibilidade e pela necessária particularidade de sua inserção no mundo da vida. Mas, não há antagonismo existencial entre a capacidade da simpatia e seu exercício errático e imperfeito. Somos capazes de corrigir — de modo imperfeito, é claro — as inclinações caprichosas da simpatia, pela adoção moral e cognitiva de princípios de natureza mais geral.

Hume fornece-nos, ainda, uma analogia entre as operações dos sentimentos morais e as dos sentidos corporais: assim como é necessário corrigir as sensações corporais, o mesmo se dá com os sentimentos morais. O princípio da correção da aparência momentânea das coisas — mencionado em Investigação acerca do entendimento humano — é que permite nos livrarmos do erro perceptual de julgar que o remo semissubmerso na água está partido, ou da sensação de duplicidade de imagens ao pressionarmos os olhos.[68] É um princípio análogo que pode corrigir os juízos morais. Ainda que não disposto a abrir mão do postulado da falibilidade, Hume parece não abrir mão da ideia de que corrigir a simpatia implica um esforço no sentido de sua extensão e maior consistência.

A hipótese de um experimento humano no qual a indiferença seja banida aparece como quimérica. Se, em princípio, nada nos for indiferente ou, ao menos, passível de ênfases e atenções distintas, como estabelecer escolhas e prioridades? Como sustentar juízos de natureza moral e ética e, por essa via, definir obrigações?

Claro está que em tal cenário, as configurações do mundo humano nos seriam impostas com idêntica capacidade de interpelação; e como que imunes à indiferença. Um mundo dotado de tal atributo, por indistintamente relevante, ensejaria tão somente o “sentimento oceânico”, troçado por Freud e portador de uma sensação de vínculo com o mundo inteiro. Nessa reedição estoica da experiência existencial no mundo, qualquer distinção ou escolha soa como arbitrária e como inadaptada à ordem indistinta das coisas. Nesse mundo, o amor exaustivo ao comum nos tornaria indiferentes aos acidentes e aos pormenores. E como nós, enquanto seres individuais, habitamos o acidente e o pormenor, fica posta a aporia: o horror à indiferença exige atos de diferenciação que, por sua vez, gerarão esferas de indiferença.

A indiferença é um fator instalado na condição humana. O grau de pregnância é tal, que os esforços de refutação prática e teórica da indiferença acabam por deslocar seus alvos, nunca por erradicá-los. Tudo indica que a capacidade lógica e cognitiva de estabelecer distinções esteja associada a movimentos de consideração e de desconsideração de coisas e seres no mundo. O filósofo Nelson Goodman resumiu bem o ponto: somos fazedores de mundos, mas nossa capacidade de não ver as coisas é infinita.

Sendo assim, os esforços genuínos de aplicação de princípios de não-indiferenciação acabam por definir esferas de indiferença. Toda a atenção deve inci­dir, portanto, nos elos mais fracos e distantes da longa cadeia de indiferenças. Quanto mais densas nossas obrigações para com os que ali se situam, maior será a consistência dos demais círculos concêntricos da moralidade. Essa parece ser uma consequência necessária de um aggiornamento da posição humiana, a respeito das possibilidades de correção dos nossos juízos morais. Em outros termos, por um efeito um tanto dialético, o princípio da não-indiferença exige a consideração do que fazemos com aqueles sobre os quais incide nossa indiferença máxima como marcador privilegiado da qualidade e da extensão de nossa sensibilidade moral.

Notas

[1] Cf. Jean-Jacques Rousseau, Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, Coleção Os Pensadores (São Paulo: Abril, 1978), p. 254.

[2] Ver Léon Robin, La morale antique (Paris: Presses Universitaires de France, 1947), pp. 21-22.

[3] As inclinações morais de Demócrito podem ser inferidas de uma série de fragmentos como:[…]”uma plenitude razoável é coisa mais segura do que uma superplenitude” (Plutarco, Da tranquilidade da alma, frag. 3); “Não por medo, mas por dever, evitai os erros” (Demócrito de Abdera, frag. 41); “Aqueles cujo caráter é bem ordenado vivem na boa ordem” (ibid., frag. 61); “Desejar algo violentamente cega a alma para o restante” (ibid., frag. 72). Cf. José Cavalcante de Souza (org.), Os pré-socráticos, Coleção Os Pensadores (São Paulo: Abril, 1978), pp. 315-326.

[4] Cf. Max Weber, “O conceito de burocracia: uma contribuição empírica”, em Edmundo Campos (org.), Sociologia da burocracia (Rio de Janeiro: Zahar, 1976), p. 28.

[5] Em edição para o inglês, de 1958, da Ética protestante e o espírito do capitalismo, Talcott Parsons traduziu stahlhartes Geháuse (a expressão original de Weber) como iron cage.

[6] Cf. Michael Herzfeld, The Social Production of Indifference: Exploring the Roots of Western Bureaucracy (Chicago: The University of Chicago Press, 1992), p. 1.

[7] O livro de Herzfeld é mesmo excelente. Ainda que não prossiga com ele neste texto, é reconfortante ler um antropólogo que emprega de modo aberto, sem estar entre aspas, a expressão humanidade comparti­lhada. Antropólogos, de forma usual, põem aspas em todas as palavras, como que a dizer quanto somos parvos, os que vivemos em mundos não aspeados.

[8] Cf. Bernard Sève, “Indifference”, Philippe Desan (org.), Dictionnaire de Michel de Montaigne (Paris: Honoré Champion, 2004) pp.503-504

[9] Montaigne, Essais, livro II, ensaio 14 (Paris Flammarion, 1934), p. 611.

[10] Montaigne, Essais, livro II, ensaio 37 (Paris: Flammarion, 1934), p. 786.

[11] Ambas as possibilidades — o caráter relativo da posição dos objetos no mundo e do lugar ocupado pelos seus observadores — foram postas como imperativos a qualquer percepção do mundo pelos antigos cé­ticos. Ver, a esse respeito, Sexto Empírico, “Outlines of Pyrrhonism, I”, 100-117, em Sextus Empiricus, I, trad. R. G. Bury (Cambridge/London: Harvard University Press/William Heinemann, 1976), pp. 61-69.

[12] Cf. Judith Shklar, Ordinary Vices (Cambridge: The Belknap Press of Harvard University Press, 1984).

[13] Cf. Montaigne, Essais, livro II, ensaio 11 (Paris: Flammarion, 1934), p. 429.

[14] Cf. Judith Shklar, Ordinary Vices, cit., especialmente o capítulo 1, “Put Cruelty First”, pp. 7-44.

[15] A referência obrigatória é o ensaio “Da crueldade”. Ver Montaigne, Essais,cit. Ver ainda o excelente verbete “Cruauté”, de autoria de Fréderic Brahami, em Philippe Desan (org.), Dictionnaire de Michel de Montaigne, cit., pp. 236-238.

[16] Montaigne, Essais, cit., p. 430.

[17] A crueldade nazista, por exemplo, envolveu a participação de diversas camadas de perpetradores, mas foi viabilizada por imenso contingente de observadores indiferentes. Esse ponto foi notavelmente explorado por Raul Hillberg. Cf. Raul Hillberg, Perpetrators Victims Bystanders: the Jewish Catastrophe, 1933-1945 (Nova York: Harper Perennial, 1993).

[18] Para apresentar a solução protagoriana, tomo como base meu ensaio “Relativismo e Universais: um argumento não-gelneriano”, em Antonio Cícero & Wally Salomão (orgs.), Relativismo como visão de mundo (Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1994), pp. 39-62.

[19] Cf. Platão, “Protágoras”, 320c, passim, Platão: Diálogos. Protágoras, Górgias,      Fedão, trad. Carlos Alberto Nunes (2 ed. rev. Belém: Editora Universitária da UFPA, 2002).

[20] Cf. Eugène Dupréel, Les sophistes (Neuchatel: Éditions du Griffon, 1948); William Guthrie, The Sophists

[21] Cf. William Guthrie, The Sophists, cit., p. 65. Carlos Alberto Nunes traduziu a expressão como “conhecimento necessário para a vide. Ver Platão, “Protágoras”, 321d, cit., p. 65.

[22] Cf. Henry George Liddel & Robert Scott, A Greek-English Lexicon (1′ ed.,1843. Oxford: Oxford University Press, 1977).

[23] O termo aparece em Léon Robin, no contexto de uma discussão sabre a imagem atomista do universo: natureza é a reserva universal dessas sementes — panspermia impassíveis, permanentes, em quantidade infinita, que, por meio de seus diversos movimentos e agregação, produzem todas as coisas e todo o devir. Mas o movimento não pode acontecer sem o não-ser do vazio, correlativo do ser sem vazio’ Cf. Léon Robin, La pensée grecque (Paris: Albin Michel, 1948), p. 140.

[24] Cf. Aristóteles, Política 1256a23, apud Henry George Liddel & Robert Scott, A Greek-English Lexicon, cit., p. 1313.

[25] Cf. Platão, “Protágoras”, 321d, cit., p. 65.

[26] Ibid., 322 a-b, p. 66.

[27] Ibid., 322c, p. 66.

[28] O léxico de Liddel & Scott nota, ainda, que diké, a partir de Homero, passa a estar associada a “procee­dings instituted to determine legal rights” e à ideia de fazer justiça e ministrar punições. Cf. Henry George Liddel & Robert Scott, A Greek-English Lexicon, cit., p. 430.

[29] Cf. William Guthrie, The Sophists, cit. p. 66.

[30] Cf. Dupréel, Les sophistes, cit., p. 32.

[31] Cf Henry George Liddel 8( Robert Scott, A Greek-English Lexicon, cit., p. 36.

[32] Cf. Platão, “Protágoras”, 322c, cit., p. 66.

[33] Cf. Platão, “Protágoras”, 322d, cit., pp. 66-67.

[34] Há duas menções socráticas à sentença de Protágoras. Ver “Teeteto”, 152a, e “Cratilo”, 396a. A do “Teete-to” é mais extensa: segundo Sócrates, Protágoras “afirmava que o homem é a medida de todas as coisas, da existência das que existem e da não existência das que não existem”. Cf. Platão, Diálogos: Teeteto e Cratilo, trad. Carlos Alberto Nunes (3. ed. Belém: Editora Universitária da UFPA, 2001). Fora do con­texto socrático, há ainda a referência clássica feita por Sexto Empírico, nos Hipotiposeon (Esboços do Pirronismo). Ver Sexto Empírico, Outlines of Pyhrronism, 1,216-219, cit.

[35] É de notar a observação de Dupréel: ” (…) a doutrina de Protágoras é, no fundamental, um convencionalismo sociológico”. Cf. Eugène Dupréel, Les sophistes…, cit., p.25.

[36] “(…) nasci enfermo e doente; custei a vida à minha mãe e o meu nascimento foi a primeira das minhas infelicidades.” Cf. Jean-Jacques Rousseau, “Les confessions”, em auvres completes, 1 (Paris: Bibliothèque du Pléiade, 1959), p. 7.

[37] Cf. Jean-Jacques Rousseau, Discurso sobre a origem, cit., p. 241.

[38] Cf. Jean-Jacques Rousseau, Discurso sobre as ciências e as artes, Coleção Os Pensadores, cit.

[39] Cf. Jean-Jacques Rousseau, Emílio, ou da Educação, trad. Sergio Milliet (São Paulo: Difel, 1973).

[40] Para todas as referências do parágrafo, cf. Jean-Jacques Rousseau, Discurso sobre a origem, cit., p. 230.

[41] Ibid., p. 231.

[42] Ibid., pp. 252-253.

[43] Ibid., p. 253.

[44] Ibidem.

[45] Ibid., p. 254.

[46] Cf. Victor Goldschmidt, Anthropologie et politique: les principes du système de Rousseau (Paris: J. Vrin, 1983), p. 340.

[47] Cf. Jean-Jacques Rousseau, Discurso sobre a origem, cit., p. 241.

[48] Ibid., p. 254.

[49] Ibidem, para todas as passagens do parágrafo. Há aqui uma curiosa passagem, na qual a virtude natural do “homem selvagem” encontra paralelo na “populaça”: “Nos motins, nas arruaças, a populaça se reúne, o homem prudente se distancia: a canalha, as mulheres do mercado, é que separam os contendores e impedem as pessoas de bem de se degolarem mutuamente”.

[50] Cf. Victor Goldschmidt, Anthropologie et politique, cit., p. 340.

[51] Cf. Luiz Roberto Salinas Fortes, Rousseau: o bom selvagem (São Paulo: Humanitas/Discurso, 2007), p. 39.

[52] Cf. Jean-Jacques Rousseau, Emílio, Livro IV, cit., p. 300, para todas as referências do parágrafo.

[53] Ibid., p. 301.

[54] Ibidem, para todas as referências do parágrafo.

[55] Cf. Oswaldo Porchat Pereira, “O conflito das filosofias”, em Bento Prado Jr.; Oswaldo    Porchat Pereira; Tércio Sampaio Ferraz, A filosofia e a visão comum do mundo (São Paulo: Brasiliense, 1981), pp. 9-21.

[56] Ibid., p. 302.

[57] Cf. Fernando Gil, A convicção (Porto: Campo das Letras, 2003).

[58] Cf. Jean-Jacques Rousseau, Emílio, cit., p. 304.

[59] Ibidem.

[60] Ibidem.

[61] Para essa aproximação entre certeza epistêmica e moralidade, sigo a sugestão de Luiz Roberto Salinas Fortes em Rousseau: o bom selvagem, cit., P. 41.

[62] Cf. Jean-Jacques Rousseu, Do contrato social, Coleção Os Pensadores (São Paulo: Abril, 1973).

[63] Cf. Jean-Jacques Rousseau, Discurso sobre a origem, cit., pp. 228-229.

[64] Cf. Jean-Jacques Rousseau, “Preface du Narcisse”, auvres completes, 2 (Paris: Bibliothèque du Pléiade,1959), pp. 959-974.

[65] Cf. David Hume, Tratado da natureza humana (São Paulo: Editora Unesp, 2000), p. 620.

[66] Ibid., p. 621.

[67] Ibidem.

[68] Cf. David Hume, Investigação acerca do entendimento humano (São Paulo: Nacional, 1972),pp. 136-137.

*Renato Lessa é professor associado de filosofia política da PUC-RJ, professor titular (aposentado) de filosofia política da UFF e pesquisador associado do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Pesquisador 1A do CNPq e membro da Ordem Nacional do Mérito Científico (Brasil) e da Ordem da Instrução Pública (Portugal). Presidiu a Biblioteca Nacional.

Fonte:  https://artepensamento.ims.com.br/item/da-indiferenca-em-primeiro-lugar/