sexta-feira, 31 de maio de 2019

O grande naufrágio brasileiro, em olhar estrangeiro

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Um economista francês com olhar arguto sobre a América Latina analisa: país paga caro pelos erros de Lula e Dilma, mas a manipulação das instituições e o ultracapitalismo de Temer e Bolsonaro são golpes fatais em nosso futuro. 

O artigo é de Pierre Salama, professor da Universidade Paris 13 e pesquisador das economias latino-americanas, publicado por Outras Palavras, 29-05-2019.

Eis o artigo.

Prever um ou mais futuros possíveis para o Brasil é hoje particularmente difícil por duas razões: uma delas se deve ao contexto internacional que se encontra atualmente em deslocamento; a outra se deve ao choque político que o país atravessa desde a eleição de um presidente que deseja romper com o passado de uma forma particularmente brutal e muitas vezes incoerente.

O contexto internacional é cada vez mais instável, com a ascensão da China e o declínio relativo dos Estados Unidos; as mudanças brutais nas “regras do jogo” que governaram a globalização do comércio até recentemente; o abrandamento do crescimento do comércio internacional e a adoção de medidas protecionistas; a transformação da tecnologia e o surgimento da inteligência artificial e das automações; a probabilidade significativa de uma crise financeira internacional.

À medida que os meses passam, a política econômica proposta pelo novo governo está cada vez mais sendo rejeitada, seja pelo Congresso ou pelo povo. Às vezes, afigura-se incoerente devido às declarações intempestivas, quer dos parentes do Presidente (família, conselheiros) quer de ministros incompetentes em oposição ao ministro da economia ou ao vice-presidente. Assim, ela sofre de um déficit de racionalidade (Habermas, 1978), isto é, de uma incapacidade de implementar um programa econômico controverso, politicamente liberal, embora coxo. De fato, as linhas gerais até agora conhecidas mostram os germes de múltiplos dilemas entre soberania, liberalismo e intervencionismo. Ambos são capazes tanto de reviver oposições entre aqueles que apoiaram a chegada de Bolsonaro à Presidência quanto de promover os movimentos sociais.

O Brasil é uma economia predominantemente rentista

Assim enunciado, este subtítulo pode surpreender ou mesmo chocar. Não faz muito tempo (2007), o Brasil era apresentado não apenas como uma das economias mais poderosas do mundo, mas como um eldorado para investidores estrangeiros. Contrariamente ao que se possa ter escrito no passado, o Brasil não é uma economia emergente. Seu PIB per capita no longo prazo não está se aproximando daqueles dos países avançados; cresceu ligeiramente no período entre 2004 e 2013 sob as presidências de Lula I, II e Rousseff I. O PIB per capita em relação ao dos Estados Unidos é aproximadamente o mesmo em 1960 e em 2016; enquanto a Coreia do Sul, que parte de um nível inferior, cruza o PIB per capital do Brasil em 1990 e atinge 50% dos Estados Unidos em 2016, de acordo com o Banco Mundial.

1. É de salientar que o comportamento dos empresários é fundamentalmente rentista, com algumas exceções. Os empresários preferem, por princípio, consumir, investir em produtos financeiros ou mesmo na produção de matérias-primas, em vez de fazê-lo na indústria, na inovação e nos chamados serviços dinâmicos.
As consequências são:

1. Uma taxa de investimento muito baixa.

2. Um nível de produtividade do trabalho na indústria brasileira também baixo.

3. Uma tendência para a estagnação econômica do PIB per capita desde os anos 1990.

4.
2. Com um crescimento tão baixo, a mobilidade social se mostra reduzida: a probabilidade de que o filho de uma pessoa pobre seja pobre quando atingir a idade adulta é muito alta, a menos que uma política voluntária de redistribuição da renda seja posta em prática pelo governo, tal como: aumento do salário mínimo maior do que o crescimento da produtividade do trabalho, políticas diversas de assistência aos mais pobres como o Bolsa Família, o pagamento de pensões indexadas aos camponeses pobres e aos deficientes, mesmo quando não tenham contribuído.

Graças às políticas sociais em grande parte, ocorreu uma ligeira queda nas desigualdades na esfera dos ganhos da força de trabalho, até 2014. Com a crise econômica, a política de austeridade decidida por Rousseff II, seguida pela de Temer a partir de 2016, as desigualdades entre os rendimentos do trabalho passaram a subir novamente.

O declínio da desigualdade de renda do trabalho durante as presidências Lula II e Dilma I foi acompanhado por um aumento na desigualdade de renda pessoal, ao contrário do que afirmaram os discursos oficiais; e isto foi demonstrado por economistas que usaram não só os dados fornecidos pela PNAD (Pesquisa nacional por amostra de domicílios), mas também as informações do imposto da renda das pessoas (IRPF) para os 10% mais ricos. Assim, de acordo com os cálculos de Morgan, o coeficiente de Gini não declinou como foi anunciado.
3) A diminuição da pobreza entre 2002 e 2014 foi considerável. Entre 2002 e 2013, a razão entre famílias pobres sobre o número de famílias na população diminuiu por V, aquela de agregados familiares indigentes reduziu-se de 10% para 5,3%. A metodologia para medir a pobreza mudou em novembro em 2015. De acordo com as estimativas de Sonia Rocha (2018), a pobreza aumentou de 13,8% em 2014 para 16% em 2015 e a indigência de 3,4% para 4,2%. Esse aumento continuou em 2016 e em 2017 segundo o IBGE.

A desindustrialização produz uma crise latente

1. Da desindustrialização à…

A desindustrialização do Brasil é prematura. Na América Latina, esse fenômeno tendeu a chegar muito mais cedo do que nos países avançados; daí, o uso do adjetivo “precoce”. Ele é utilizado quando o rendimento per capita corresponde à metade daquele dos países avançados ao se iniciar o processo de desindustrialização.
O PIB real per capita da indústria no Brasil não atingiu o nível de 1980, mas nos Estados Unidos ele aumentou em mais de 60% nos Estados Unidos no mesmo período. O peso relativo da indústria de transformação no PIB vai de 24% em 1980 para 13% em 2014 e 10% em 2017 (IEDI, 2018, p. 22). A parcela da indústria de transformação brasileira na indústria de transformação mundial (em valor adicionado) foi de 2,7% em 1980, 3,1% em 2005 e 1,8% em 2005 e 1,8% em 2016 de acordo com o IEDI (idem, p. 25). Na China, esta parcela foi de 11,7% em 2005 para 24,4% em 2016. Portanto, enquanto declina relativamente no Brasil, sobe acentuadamente na China.

As exportações de manufatura estão declinando em termos relativos no Brasil, de 53% do valor das exportações em 2005 para 35% em 2012, em favor das exportações de matérias-primas agrícolas e mineradoras. Apenas a partir de fevereiro de 2016 puderam crescer devido a uma forte desvalorização do real em 2015 e a queda nos preços dos produtos. O seu peso, em valor, nas exportações mundiais dos produtos industriais passou de 0,8% para 0,61% entre 2005 e 2017.

2… à crise

A desindustrialização precoce deve-se à falta de uma política cambial destinada a contrariar a valorização da moeda, à elevação dos salários acima da produtividade do trabalho, a qual, aliás, tem sido muito fraca, assim como devido à relativa ausência de uma política industrial que se oponha a certos efeitos deletérios sobre a competitividade.

O aumento dos preços das commodities nos últimos quinze anos, a elevação significativa do volume de tais exportações e a entrada de capital estrangeiro no Brasil tiveram como efeito apreciar a moeda brasileira em termos reais em comparação com o dólar. Esta apreciação foi mais ou menos combatida na Presidência de Dilma I; ademais, ocorreu uma depreciação acentuada em 2015. A valorização da moeda nacional tem efeitos perversos, os quais os economistas geralmente denominam de “doença holandesa” ou “dutch desease”. As políticas de esterilização de liquidez causadas por este tipo de “bonanza” podem combatê-la, mas elas não foram aplicadas sistematicamente, exceto de forma irregular na presidência de Rousseff I.
A valorização da taxa de câmbio a médio prazo, intercalada com desvalorizações mais ou menos significativas, não foi compensada por esforços para aumentar a produtividade laboral. Não só o aumento da produtividade do trabalho na indústria de transformação foi muito modesto (e desigual, dependendo dos setores, da dimensão das empresas e de sua nacionalidade), mas foi acompanhado por fortes aumentos salariais pelo menos para as escalas mais baixas. Por causa da grande, muito grande, desigualdade de renda, esses aumentos salariais são justificados de um ponto de vista ético. Entretanto, se não forem acompanhados por uma política industrial destinada a aumentar a produtividade e se ocorrem junto com uma apreciação da moeda nacional, uma queda da competitividade do tecido industrial certamente sobrevêm. A abundância de divisas provenientes da venda de matérias-primas permitiu, assim, que parte da procura fosse satisfeita pelo crescimento das importações.

A competitividade da indústria de transformação, o setor mais exposto à concorrência internacional, deteriorou-se no período. Apesar do menor custo em moeda local das importações de bens de capital importados e dos produtos intermediários, o aumento do custo unitário do trabalho amputou a rentabilidade. E assim é porque o impacto total sobre os preços os torna mais rígidos para cima devido ao aumento da concorrência internacional nos setores expostos. O impacto na rentabilidade das empresas (ver tabela abaixo), em consequência, anunciou a crise do ano de 2014 e, especialmente, dos anos de 2015 e 2016.

Em resumo, a valorização da moeda nacional enfraquece o tecido industrial, reduz a rentabilidade das empresas na indústria de transformação, promove o investimento em atividades rentistas, o que explica assim o baixo nível de investimento em atividades produtivas no médio prazo, especialmente quando comparados aos dos países asiáticos. Foi isto que fermentou a crise.

Crescimento sem fôlego e déficit de racionalidade

1. A nova presidência herda uma situação econômica contrastada: bons fundamentos, por um lado, mas, por outro, uma situação social muito deteriorada, uma inserção internacional problemática, assim como certa incapacidade de recuperação após a crise de 2015-2016.

Ao final de 2018 alguns fundamentos pareciam positivos: havia um pequeno déficit no saldo da conta corrente: – 0,7 do PIB; um saldo primário do orçamento (ou seja, sem o serviço da dívida pública) de – 2,3% do PIB declinante; eis que a crise mascara no entanto um déficit nominal ainda muito elevado: -7,3% do PIB devido ao peso do serviço da dívida; uma taxa moderada de inflação (3,75% ao ano para IPCA, o índice de preços ao consumidor); elevadas reservas internacionais (375 bilhões de dólares); as quais se formaram principalmente devido às entradas de capital, especialmente de investimento direto estrangeiro (79 bilhões em 2018).

Anteriormente, a restrição externa foi levantada graças à bonança proporcionada pela venda de matérias-primas e a entrada de investimento estrangeiro direto. O aumento do poder de compra foi satisfeito pelas importações, mas em detrimento da produção doméstica. Esta se mostrou incapaz de superar as restrições competitivas impostas pela globalização comercial, estando ainda sujeita a uma deterioração dos seus custos unitários de trabalho. A reprimarização da economia com a ascensão das atividades rentistas contém um triplo aspecto: positivo, pois tornou possível um aumento no poder de compra; negativo, porque esgarçou o tecido industrial em seus ramos mais dinâmicos e preparou, assim, uma crise no futuro. Negativo, finalmente, porque a riqueza capitalista passou a vir da renda e não da exploração da força de trabalho. A reprimarização, uma miragem de riqueza, cria um tipo de capitalismo, qual seja ele, um capitalismo cada vez mais dependente do preço das matérias-primas, um capitalismo incapaz de revolucionar as práticas de produção.

Conclusão

A América Latina nunca conheceu um milagre econômico. A reprimarização de suas economias, assim como a consequente desindustrialização precoce, trouxe consigo maior vulnerabilidade. A pobreza diminuiu, mas as rendas relativas dos estratos médio-baixo e médio se reduziram, eventualmente gerando frustração. Após ter declinado no Sul e no centro do país, com Lula I, II e Dilma I, a violência aumentou de novo acentuadamente. As categorias mais ricas se enriqueceram e, quando a crise veio, os partidos progressistas foram todos facilmente tomados como bodes expiatórios. Foi dito, então, que eles haviam impedido o enriquecimento dos mais ricos e permitido o empobrecimento relativo de uma grande parte das camadas médias. Ademais, eles foram acusados, tal como os outros partidos, de terem permitido e participado da gangrena da corrupção.

É possível que as reformas planejadas não possam ser implementadas e que os conflitos de interesses conduzam a reformas profundamente edulcoradas. “Gritos de alarme” já pontilham nas revistas financeiras. O crescimento só poderia vir dessas reformas – dizem – sem as quais o país vai afundar na crise. O problema é que muitas dessas reformas liberalizantes já foram empreendidas, tal como a do mercado de trabalho. E, mesmo assim, a taxa de crescimento continua muito baixa e, a cada dia que passa, faz-se uma previsão mais baixa de crescimento futuro.

Na verdade, o Brasil paga a um preço alto pelos erros de política econômica de Lula e Dilma Rousseff, pelo liberalismo sem conteúdo social de Temer e agora de Bolsonaro. O peso deste, entretanto, é de ordem completamente diferente em relação aos erros anteriores apontados. O Brasil paga um preço alto devido à manipulação das instituições, enfraquecidas por anos de ditadura, por expulsar Rousseff da Presidência e devido à imposição atual de uma política mais dura de liberalização econômica. Subsiste uma esperança de evitar os efeitos deletérios dos escândalos de corrupção, mas este último ponto está longe de ser alcançado.

O déficit de racionalidade está aumentando. Até onde ele vai? O que vem aí? Um impeachment do vice-presidente apoiado pelos militares? A saída do Presidente apoiado pelas seitas religiosas? O retorno da esquerda?

Referências:

Carta IEDI (Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial), vários números.

CNI (Confederação Nacional da Indústria), 2018, Relatório: Competitividade Brasil, 2018-2019.

Habermas J., 2018, Raison et légitimité, édition Payot

IEDI, 2018, Industria e o Brasil no futuro.

Morgan M., 2018, Falling Inequality beneath Extreme and persistent Concentration: new evidence for Brazil Combining National Account, Survey and Fiscal Data. WID, Working paper n°12 , 1-78.

O valor e Folha de São Paulo, vários números.

OCDE et Cepal, 2012, Latin American Economic Outlook.

OCDE, 2018, Economic Survey, Brazil.

Salama, P., 2006, « Pourquoi une telle incapacité d’atteindre une croissance élevée et régulière en Amérique latine ? », Revue Tiers Monde, n° 185, 129-154, em castellano in Foro Internacional 186, XLVI, 2006 (4), 630-662

Salama, P., 2014, Des pays toujours émergents ? Edition La documentation française.

Salama, P., 2015: “Se redujo la desigualdad en America Latina? Notas sobre una ilusion”, Nueva Sociedad, n°257.

UNIDO (United Nations Industrial Development Organization), 2016 et 2018, Competitive Industrial and Performance Report, Brazil.
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Fonte:  http://www.ihu.unisinos.br/589644-o-grande-naufragio-brasileiro-em-olhar-estrangeiro 31/05/2019

quinta-feira, 30 de maio de 2019

Deep Fake, a mais recente ameaça distópica

Estas pessoas não existem: são “criadas” por Inteligência Artificial. Fotos, vídeos e textos muito verossímeis multiplicam os riscos de manipulação total. Emerge imenso problema: como regular a ciência, em meio à crise civilizatória?


Em 2019, vivemos em um mundo no qual vídeos e imagens deepfake de pessoas, totalmente fabricadas, podem ser criadas por inteligência artificial
Enquanto isso, uma tecnologia chamada GPT-2 da OpenAI está ficando famosa por sua habilidade de escrever convincentemente e enganosamente [reproduzindo o estilo de autores como George Orwell, ou o seu (N.T.)].
Nesse novo mundo, a IA é capaz de mimetizar conteúdo humano, e tem o potencial de ser usada por maus atores, e campanhas financiadas por Estados, para influenciar os sentimentos da população de várias formas.
Estamos testemunhando uma explosão de fraude online. Em uma era na qual até o Facebook recusa o título de empresa de mídia, o que exatamente são os deepfakes?

A invasão dos deepfakes

Deepfakes são, essencialmente, identidades falsas criadas com o deep learning [aprendizagem profunda, por meio de uso maciço de dados], por meio de uma técnica de síntese de imagem humana baseada na inteligência artificial. É usada para combinar e sobrepor imagens e vídeos preexistentes e transformá-los em imagens ou vídeos “originais”, utilizando a tecnologia de GAN (Generative Adversarial Network, ou rede geradora antagônica). Veja uma primeira explicação neste vídeo: https://www.youtube.com/watch?v=DFrJv-eJb64
Essa combinação de vídeos existentes e “originais” resulta em vídeos falsos, que mostram uma ou algumas pessoas realizando ações ou fazendo coisas que nunca aconteceram na realidade. Em 2019, também estamos vendo uma explosão de faces fake, através das quais a IA é capaz de conjurar pessoas que não existem na realidade, e que têm um certo fator de fluência.

De maneira fascinante, o engenheiro de software da Nvidia, Philip Wang, criou um website demonstrando a potência da técnica GAN para gerar imagens de pessoas falsas. Você pode conferir neste endereço:.

O site gera imagens baseado em um novo método de StyleGAN, desenvolvido pela Nvidia, que torna possível treinar o sistema para construir imagens artificiais de alta qualidade, com resolução de até 1024×1024 pixels.

Se você atualizar o site continuamente, verá um exemplo dessas “faces fake”, através do qual humanos digitais e personas falsas poderiam se tornar robôs (bots) de internet, capazes de nos influenciar em diversas maneiras. Aqui está uma amostra desses rostos: thispernondoesnotexist (essas pessoas não existem na vida real).

Como você pode observar, não há nenhuma maneira de dizer que essas não são pessoas reais. Personagens e textos fake são os próximos fronts do debate em torno do deepfake, que está só começando e é ainda outra maneira com a qual a inteligência artificial pode ser aproveitada como máscara e alterar o sentimento coletivo através de truques digitais.

Tecnologias como o GPT-2 e os GANs vão se tornar cada vez mais inteligentes. A suposta interferência russa no ciclo eleitoral norte americano de 2016 é um despertar para muitos, mas provavelmente apenas o início. Humanos digitais, âncoras de jornais de inteligência artificial, personas virtuais — tudo é possível na nova internet. O mercado de farsa online já está maduro.

Meio caminho rumo à Matriz

Criar uma realidade deepfake é meio caminho andado à Matrix. Pense só no potencial de uso indevido da combinação de vídeos e identidades deepfake com as fake news.

O crescimento dos deepfakes poderia abrir um novo front na guerra desinformacional.

A infiltração deepfake seria relativamente barata e fácil de transformar em arma.

Se as imagens, notícias e vídeos gerados por AI alcançaram um nível no qual estão frequentemente indistinguíveis de fotografias e vídeos reais, e conteúdo humano, estamos no limiar de uma nova era de guerras de inteligência artificial.

Não ser capaz de dizer o que é real na internet já é fortemente problemático em uma era de redes sociais e Facebook, mas nas condições atuais só vai piorar. Considerando que os jovens gastam mais tempo online do que nunca, eles provavelmente se tornarão mais acostumados à AI a cada ano, o que pode gerar consequências inesperadas na sociedade.

Por que o deep learning aumenta as fake news

O perigo dos deepfakes representa um novo tipo de ameaça à cybersegurança, na qual o que pode ser feito está muito à frente de como combatê-lo. Essas redes geradoras antagônicas (GANs), desenvolvidas pelo Nvidia, poderiam ser facilmente classificadas como uma má utilização do deep learning, se tais corpos regulatórios existissem.

Pode ser que você tenha visto o vídeo deepfake abaixo no YouTube. Obama poderia ter dito isso, mas ele não disse: https://www.youtube.com/watch?v=cQ54GDm1eL0
Em 2019, não apenas sua identidade pode ser roubada, você pode ser enquadrado, difamado e ser vítima de farsantes com os vídeos deepfake, que podem ser difíceis de se provar falsos. Você pode sofrer golpes, fraudes e ficar vulnerável online, e o inimigo seria a inteligência artificial.
A facilidade de usar os deepfakes implica que um novo tipo de hipocrisia e de conteúdo ilusório online está chegando. Não se trata mais de fake news, mas de memes, spam e conteúdo feito cada vez menos por humanos, para o bem e para o mal.

Geradores de texto falso. Imagens falsas. Vídeos falsos. Clonagem de voz. Clonagem de personas. A combinação de tecnologia mais inteligente vai criar problemas humanos muito reais, que vão muito além das fake news e dos discursos de ódio, que o facebook será incapaz de conter.
Antes de morrer, serei capaz de clonar a mim mesmo em uma persona feita por inteligência artificial que retenha não apenas alguns de meus pensamentos mais profundos, mas meus padrões comportamentais. Poderei deixar essa persona para meus descendentes.

Entrando na toca do coelho virtual

Enquanto isso, a internet continuará a evoluir na interseção da IA, de uma maneira na qual o modo como os humanos fazem versões de si mesmos pode ser irreconhecível até para nós. Caminhamos rapidamente em direção a um mundo de implantes neuro e no qual estaremos cercados não apenas de robôs, mas de identidades de IA (chame-os como quiser).
A geração Z, grupo das pessoas que nasceram na última década do século XX e nos primeiros anos do século XXI, está passando tanto tempo na internet que sua realidade é mais repleta de eventos online do que face a face.

A desinformação vai aumentar de tal maneira que o facebook e os deepfakes vão gerar um mundo de eventos míticos de imersão, entretenimento e um capitalismo de vigilância que será profundamente perturbador para nossa saúde mental e estabilidade política.

Se regulação da IA atrasar, muitos perigos surgirão, devido aos desenvolvimentos tecnológicos e os usos de novas ferramentas.
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Reportagem Por Michael K. Spencer | Tradução: Gabriela Leite
Fonte:  https://outraspalavras.net/internetemdisputa/deep-fake-a-ultima-distopia/?utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=30_5_deep_fake_a_ultima_distopia_por_um_karl_marx_devorado_tragedia_ambiental_a_um_passo_ada_colau_expoe_a_proposta_municipalista&utm_term=2019-05-30

quarta-feira, 29 de maio de 2019

A fábula pouco fabulosa da bala perdida


Jurandir Renovato*
 
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para Evaldo Piolli

Era uma vez uma bala perdida, mas tão perdida que vivia triste de dar pena. Sentia-se perdida não só na acepção comum atribuída a qualquer projétil desgarrado que, ao desviar-se do seu alvo, vai ao encontro do que não devia nem estava previsto. Eis aí justamente o seu dilema e a sua perdição. Pois até mesmo uma bala perdida sempre acaba encontrando alguma coisa pela frente. Um braço, uma cabeça, até uma bunda serve. É o seu destino e o seu objetivo no mundo, ainda que tortos.

Nossa bala perdida, porém, não encontrara nada, por isso achava-se perdida também no sentido existencial da palavra. E assim, indiferente a toda essa confusão semântica, vagava pelo mundo remoendo dia e noite o momento fatídico no qual havia se extraviado do tiroteio e pelo qual se perdera de si mesma.

Lembrava como se fosse ontem. Havia uma rua larga que dava, de um lado, para uma biblioteca de pé direito tão alto quanto o preço dos produtos do supermercado rutilante do outro lado dela. Os primeiros tiros, claro, partiram do supermercado, contra uma viatura estacionada no sentido oposto. Disparada logo no início do confronto, a bala (que ainda não estava perdida) sentiu um arrepio agradável quando seu corpo, enfim despido do cartucho, foi arremessado na direção de um guarda franzino agachado perto da viatura. De repente algo deu errado. Sua pele de chumbo fundido raspou contra o asfalto quente e, após ricochetear sobre uma superfície macia, aparentemente de lata, tomou o rumo do prédio atrás do policial.

Como um raio, entrou por um vão da ampla janela e atravessou a sala cheia de mesas e cadeiras e estantes. Passou rente à orelha esquerda de um rapaz que lia atentamente (quer dizer, tentava ler) os Prolegômenos a toda metafísica futura, de Immanuel Kant. Era um livro indicado por sua professora do cursinho como uma introdução ao pensamento do filósofo alemão, e que ele imaginou ser algo como um daqueles volumes pequenos da coleção Primeiros Passos, pois ele sabia que ela sabia que ele só lia livros de bolso, melhor ainda se fossem do Olavo de Carvalho, esse, sim, um crânio, do qual ele entendia quase tudo, principalmente os palavrões, mas – faça-me o favor – aquele tijolo tinha mais de oitocentas páginas e ele não conseguia entender nem o título! Quando a bibliotecária de lindos olhos azuis colocou o livro sobre sua mesa, só aí o rapaz se deu conta de que: 1) a professora tinha zoado com a cara dele; e 2) agora era tarde demais.

A bala perdida zuniu na sua orelha no momento em que tentava decifrar pela vigésima vez o primeiro parágrafo do prefácio – e ele nem percebeu ter se safado por um triz. Ela passou tão perto a ponto de levantar algumas mechas de seu cabelo, e invadiu o estreito corredor repleto de estantes abarrotadas de livros de todos os tipos e cores e formatos e títulos e temas.

A bala perdida sentiu-se levemente enjoada diante do peso de tanta informação e conhecimento e, traindo a natureza invariavelmente retilínea de seu trajeto, passou a dar voltas por entre as inúmeras prateleiras feito um inseto. (A bibliotecária de olhos azuis pensaria exatamente isso anos depois, que nunca tinha visto uma mosca tão rápida e estranha quanto aquela do dia do assalto ao supermercado.)
Tudo começou ali. Como se aos poucos fosse esgotando o seu impulso vital de bala perdida, aquele elã explosivo que a motivava a seguir no encalço de uma vítima aleatória; e assim, aninhada entre os livros daquela biblioteca, mergulhou numa tristeza profunda.

Se houvesse no mundo um psicanalista de balas perdidas, decerto cravaria se tratar de um caso agudo de crise de identidade. E mesmo sob o risco de despertar um monstro adormecido, faria todo o possível, esse hipotético psicanalista, para recuperar a autoestima de sua paciente, trazendo-a de volta à sua belicosa condição natural. Talvez subitamente descruzasse as pernas, ou pusesse a mão no queixo, ou retirasse os óculos, ou tudo isso junto, e depois dissesse “hum… veja bem”, que é o modo como os psicanalistas gostam de iniciar uma consulta.

Então diria, de um modo jovial, que o cerne do transtorno estava tipo na maneira como se estabelecem redes de relações com o outro, as quais vão definir a sua individualidade, ou seja, o seu eu enquanto sujeito no mundo. No caso de uma bala perdida, qualquer uma, o comportamento desviante é tipo uma forma de atestar sua impaciência frente ao destino que se impõe a ela diante das diferenças. Trocando em miúdos, é tipo uma negação de si mesma, no caso particular da nossa bala perdida, uma dupla negação. Por isso será preciso reconstruir a personagem bala perdida desde o momento de encontro com a primeira negação, em que se subscreve um desvio natural, até chegar ao da segunda negação, onde se dá a ruptura com sua natureza desviante (ao desviar-se do desvio) e portanto de produção de conflito. É tipo isso.

Mas eis que na sala esteja um líder sindical, no seu horário de folga, pesquisando para sua dissertação de mestrado (sempre atrasada) sobre a influência do relógio de ponto na construção do mito do herói nacional, e ele, não se contendo, interrompa o psicanalista, afirmando ser tudo uma grande baboseira, que a questão é dialética, companheiro!

Uma abordagem sociológica de fato colocaria a situação em outros termos, temos de concordar com ele; isso se houvesse uma sociedade de balas perdidas a ser abordada, não é mesmo, companheiro? Mas vamos supor que sim, que haja uma sociedade desse tipo. Tudo aqui é suposição, inclusive ele próprio. Então o que ocorre é um deslocamento no plano identitário diante de um sistema cultural opressivo. Não se vendo como parte integrante desse sistema e para se manter no controle de si mesmo, o indivíduo subverte o status quo.

Nesse sentido tornar-se bala perdida seria uma forma de resistência a uma realidade desde sempre fadada a ruir. É virar as costas à falsa objetividade de uma sociedade decadente, bem como às suas regras de boa conduta; é se negar a compactuar com uma moral por trás da qual se escondem o preconceito e a intolerância; e assim, ao não escolher um alvo específico e portanto podendo atingir qualquer um indistintamente e sem nenhuma discriminação, a bala perdida assume os riscos de um verdadeiro ato revolucionário.

Um ato revolucionário, vejam só! O sindicalista estaria exultante. Até se lembrar de nossa bala perdida e de sua incapacidade de aceitar sua índole transformadora. O problema, ele pensaria, é o peleguismo; o peleguismo é contrarrevolucionário.

Um filósofo existencialista que casualmente passasse por ali a caminho da copiadora e se detivesse por um momento a ouvir a conversa, acharia interessante a ideia de ato revolucionário colocado nesse contexto, e até concordaria com o sindicalista não fosse o fato de que para haver uma ação revolucionária seria preciso haver também a vontade do ato, no mínimo, a consciência dele. Uma bala perdida, no entanto, não é produto de uma ação deliberada, mas de um erro de cálculo, de um extravio, de uma imprecisão; ela não tem um propósito definido, não tem uma causa, um objetivo; não é fruto do ódio, nem do rancor, mas do acaso, por isso ela está condenada a uma eterna liberdade sem sentido. A consciência dessa condição absurda gera angústia. A bala perdida que se desvia de seu desvio natural é um ser angustiado por ter adquirido consciência.

E antes que aparecesse por ali outro sabichão hipotético a refletir, quem sabe, sobre a natureza do Bem e do Mal, talvez um padre que estivesse ali reforçando o seu latim, ou um esotérico a empunhar o último livro do Paulo Coelho, esgotada diante de tanta suposição, a bala perdida deu o fora dali. Só bem mais tarde notariam que o objeto de suas reflexões não estava mais onde supunham estar.

Ela foi até o alto de uma ponte sobre um rio poluído e se atirou no vácuo. O vento muito forte mudou seu curso em direção da ciclofaixa, a cem metros dali, e a bala perdida suicida acabou atingindo a cabeça de um professor de literatura que pedalava calmamente sua bike a caminho da faculdade de letras. Ele estava usando capacete apropriado, mas o impacto foi tão forte que destruiu o capacete e tudo o que havia dentro dele, inclusive os planos para a aula de poesia parnasiana daquela manhã. Alguns alunos foram para casa mais cedo, outros seguiram para a biblioteca.

Moral da história (ao estilo determinista-dialético)

O fato de sua cabeça nunca ter pensado sobre um determinado assunto não impede que o assunto caia sobre sua cabeça num dia não determinado.
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* É jornalista e editor executivo da “Revista USP”
Imagem da Internet

terça-feira, 28 de maio de 2019

Papa Francisco: "Não se pode viver a caridade sem ter relações interpessoais com os pobres: viver com os pobres e para os pobres"


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Às 12h20 desta segunda-feira, na Sala Clementina do Palácio Apostólico Vaticano, o Santo Padre Francisco recebeu em audiência os participantes da XXI Assembleia Geral da Caritas Internationalis, em curso em Roma, de 23 a 28 de maio de 2019, no Hotel Ergife, sobre o tema: "Uma família humana, uma casa comum", inspirado na Encíclica Laudato Si' do Papa Francisco.

O texto é publicado por Sala de Imprensa da Santa Sé, 27-05-2019. A tradução é de Luisa Rabolini.

Eis o discurso do papa Francisco.

Senhores Cardeais,

venerados Irmãos no Episcopado e no Sacerdócio,
 
caros irmãos e irmãs, tenho o prazer de ter a oportunidade de encontrá-los por ocasião de vossa XXI Assembleia Geral. 

Agradeço ao Cardeal Tagle pelas palavras que ele dirigiu a mim e apresento uma saudação cordial a todos vocês, à grande família da Caritas e a aqueles que, em seus respectivos países, estão engajados no serviço da caridade.

Nestes dias, vindo de todo o mundo, viveram um momento significativo na vida da Confederação, finalizado não só ao cumprimento dos deveres estatutários, mas também ao fortalecimento dos laços de comunhão recíproca da adesão ao Sucessor de Pedro, por motivo da especial ligação entre a vossa organização e a Sé Apostólica. De fato, São João Paulo II quis conferir à Caritas Internationalis a personalidade jurídica canônica pública, chamando-vos a compartilhar a missão própria da Igreja no serviço da caridade.

Hoje gostaria de refletir brevemente convosco sobre três palavras-chave: caridade, desenvolvimento integral e comunhão.

Considerando a missão que a Caritas é chamada a realizar na Igreja, é importante sempre voltar a refletir juntos sobre o significado da própria palavra caridade. A caridade não é uma prestação estéril ou um simples óbolo a ser restituído para apaziguar a nossa consciência.
O que nunca devemos esquecer é que a caridade tem sua origem e sua essência no próprio Deus (cf. Jo 4, 8); a caridade é o abraço de Deus nosso Pai a todo homem, especialmente aos últimos e aos sofredores, que ocupam em seu coração um lugar preferencial. Se considerássemos a caridade como uma prestação, a Igreja se tornaria uma agência humanitária e o serviço de caridade seu "departamento logístico". Mas a Igreja não é nada disso, é algo diferente e muito maior: é, em Cristo, o sinal e o instrumento do amor de Deus pela humanidade e por toda a criação, nossa casa comum.

A segunda palavra é desenvolvimento integral. No serviço da caridade, está em jogo a visão do homem, que não pode ser reduzida a um único aspecto, mas envolve todo o ser humano como filho de Deus, criado à sua imagem. Os pobres são, em primeiro lugar, pessoas e em seus rostos se esconde o próprio rosto de Cristo. São sua carne, sinais de seu corpo crucificado, e temos o dever de chegar até eles nas periferias mais extremas e nos subterrâneos da história, com a delicadeza e ternura da Mãe Igreja. Devemos buscar a promoção de todo o homem e de todos os homens, a fim que possam ser autores e protagonistas de seu próprio progresso (ver S. Paulo VI, Enc. Populorum progressio, 34).

O serviço da caridade deve, portanto, escolher a lógica do desenvolvimento integral como antídoto à cultura do desperdício e da indiferença. E dirigindo-me a vocês, que são a Caritas, quero reiterar que "a pior discriminação sofrida pelos pobres é a falta de atenção espiritual" (Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, 200). Vocês bem o sabem: a grande maioria dos pobres "tem uma especial abertura para a fé; precisam de Deus e não podemos deixar de oferecer-lhes sua amizade, sua bênção, sua Palavra, a celebração dos sacramentos e a proposta de um caminho de crescimento e de amadurecimento na fé" (ibid.). Portanto, como nos ensina o exemplo dos Santos e Santas da caridade, "a opção preferencial pelos pobres deve traduzir-se principalmente numa atenção religiosa privilegiada e prioritária" (ibid.).

A terceira palavra é a comunhão, que é central para a Igreja, define sua essência. A comunhão eclesial surge do encontro com o Filho de Deus, Jesus Cristo, que, mediante o anúncio da Igreja, alcança os homens e cria comunhão com Ele e com o Pai e com o Espírito Santo (cf. 1 Jo 1, 3). É a comunhão em Cristo e na Igreja que anima, acompanha e apoia o serviço da caridade tanto nas próprias comunidades como em situações de emergência em todo o mundo. Deste modo, a diaconia da caridade torna-se um instrumento visível de comunhão na Igreja (cf. Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 4). Por isso, como Confederação, vocês são acompanhados pelo Dicastério para o Serviço de Desenvolvimento Humano Integral, a quem agradeço pelo trabalho que ordinariamente realiza e, em particular, pelo apoio à missão eclesial da Caritas Internationalis. Eu disse que vocês são acompanhados: não estão "sob".

Retomando estes três aspectos fundamentais para viver a Caritas, ou seja, a caridade, o desenvolvimento integral e a comunhão, gostaria de exortá-los a vivê-los com estilo de pobreza, de gratuidade e de humildade.

Não se pode viver a caridade sem ter relações interpessoais com os pobres: viver com os pobres e para os pobres. Os pobres não são números, mas pessoas. Porque vivendo com os pobres aprendemos a praticar a caridade com o espírito de pobreza, aprendemos que a caridade é compartilhamento. Na realidade, não só a caridade que não chega ao bolso resulta uma falsa caridade, mas a caridade que não envolve o coração, a alma e todo o nosso ser é uma ideia de caridade ainda não realizada.

Devemos estar sempre atentos para não cair na tentação de viver uma caridade hipócrita ou enganadora, uma caridade identificada com a esmola, com a beneficência, ou como uma "pílula calmante" para nossas inquietas consciências. Eis porque devemos evitar de assemelhar o trabalho da caridade com a eficácia filantrópica ou com a eficiência de planejamento ou com a exagerada e efervescente organização.

Sendo a Caridade a mais almejada das virtudes à qual o homem possa aspirar para poder imitar Deus, torna-se escandaloso ver agentes de Caridade que a transformam em business: falam tanto em Caridade, mas vivem no luxo ou no esbanjamento ou mesmo organizado Fórum sobre a Caridade desperdiçando inutilmente tanto dinheiro. Dói constatar que alguns agentes de Caridade se transformam em funcionários e burocratas. É por isso que gostaria de reiterar que a caridade não é uma ideia ou um sentimento piedoso, mas é o encontro experiencial com Cristo; é o desejo de viver com o coração de Deus que não nos pede para ter pelos pobres um genérico amor, afeto, solidariedade, etc., mas para encontrar neles Ele mesmo (cf. Mt 25,31-46), com o estilo de pobreza.

Caros amigos, agradeço-vos, em nome de toda a Igreja, pelo que vocês fazem com e por tantos irmãos e irmãs que estão em dificuldades, que são deixados à margem, oprimidos pelas escravidões dos nossos dias, e encorajo-vos a prosseguir! Que todos vocês possam, em comunhão com as comunidades eclesiais a que pertencem e das quais são expressão, continuar a dar com alegria a vossa contribuição, para que cresça no mundo o Reino de Deus, Reino de justiça, de amor e de paz. Que sempre vos alimente e ilumine o Evangelho, e vos guie no ensino e no cuidado pastoral da Mãe Igreja. Que o Senhor vos abençoe e que Nossa Senhora vos guarde. E por favor, não esqueçam de rezar por mim. Obrigado.
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Fonte:  http://www.ihu.unisinos.br/589542-audiencia-do-papa-francisco-aos-participantes-da-assembleia-geral-da-caritas-internationalis
Imagem da Internet

Nirlando Beirão - A literatura ou a vida: uma conversa franca

Escrito entre o diagnóstico de um mal incurável e a memória da família, ‘Meus Começos e Meu Fim’ emociona e ilumina

Jean-Paul Sartre dizia que escrevia “porque o artista deve confiar a outro a tarefa de concluir o que ele começou”. Nada parece se encaixar mais como definição de Meus Começos e Meu Fim (Companhia das Letras), de Nirlando Beirão: é um livro cuja pulsão literária está na transmissão, para adiante, de uma consciência do mundo, uma consciência dolorida, adquirida em uma situação extremada.
Diagnosticado com Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA) em julho de 2016, o jornalista Nirlando Beirão refugiou-se numa de suas atividades de excelência, a literatura, para compreender o processo da vida. Mesmo em meio à “corrosão emocional de ver a angústia da doença fatal me consumindo”, iniciou essa investigação de si mesmo no que considerava a raiz de tudo: a história do avô, António Beirão, ex-padre, ex-colega do ditador Salazar no seminário. O resultado é uma das mais cortantes, emocionantes e singulares narrativas da literatura brasileira em 2019.

Editor-executivo de CartaCapital, chefe, portanto, destes editores, Nirlando é mineiro de Belo Horizonte, tem 70 anos e começou a carreira no jornal Última Hora, em 1967. Passou pelos principais veículos de comunicação do País e é autor de diversos livros, entre eles, América: Depoimentos (Companhia das Letras, 1989). Em 2011, foi nomeado Chevalier des Arts et des Lettres pelo Ministério da Cultura da França. Nirlando nos concedeu por e-mail a descontraída/bem-humorada/sagaz entrevista.
Nirlando: “Sofri culpas que nem eram minhas”

CartaCapital: Como está sua saúde desde que concluiu o livro? Já teria adendos a fazer à história que conta em Meus Começos e Meu Fim?
Nirlando Beirão: Hoje estou melhor do que amanhã, apesar de todo o esforço e da competência do exército de aventais brancos que me cerca. Esta é a sina – às vezes imperceptível – de uma doença degenerativa. Escrevi o livro com a mão direita, continuo escrevendo.

CC: A certa altura você se pergunta se somatizou o 7 a 1 da Alemanha, o Donald Trump, o impeachment de Dilma Rousseff, o Jair Bolsonaro… Ainda que o pensamento não ajude a resolver as coisas, faz sentido viver a dor de um país no próprio corpo, na própria mente?
NB: Tudo isso machuca, mas inconscientemente acabei interpondo um véu leitoso entre mim e a realidade. Não que eu queira me alienar, nunca. É uma defesa involuntária. Sempre tive a tendência de desligar o botão do pânico. A primeira vez que percebi a película protetora foi passando de forma banal pela Paulista. Foi como se desmaiassem som e imagem.
CC: Por que a culpa está tão presente no seu livro? É o avô padre Beirão? É a avó mulher do padre? É a naturalidade mineira? É o catolicismo? É, de alguma forma, uma culpa que você próprio sente?
NB: Estranhei a rezação excessiva em família quando meu avô morreu. O catolicismo pune desde o início. Uma vez o Glauber Rocha me disse: Sabe por que eu sou livre? Nasci em família protestante, sem a ideia do pecado original. Criança, eu sofria de culpas que nem eram minhas.
O avô padre de Nirlando
CC: Você conta no livro que começou no jornalismo em 13 de junho de 1967. Era um momento agudo da vida nacional, e já se desenrolava o processo que no ano seguinte culminaria no AI-5. Do que tem acompanhado do processo atual, que paralelos traçaria entre os dois momentos, o da sua juventude e o dos 69 anos de idade?
NB: 70 anos, cheguei lá. A diferença é que, apesar do entorno, a gente acreditava no jornalismo e no futuro do Brasil. Confesso agora certo desalento.

CC: Quais foram e são os melhores momentos para fazer jornalismo no Brasil? Os de maior liberdade ou os de grande aperto institucional?
NB: Do ponto de vista profissional, minha geração foi privilegiada. Havia várias empresas jornalísticas, investindo, crescendo. Hoje, as que sobraram, com raras exceções, desistiram do jornalismo, só pensam no business. Aliás, a indústria de comunicação, assim como toda a nossa indústria, é muito atrasada. Ainda bem que existe a guerrilha da internet.

CC: O que a profissão do jornalismo tem, para você, de mais feio e de mais bonito? Ainda vale a pena ser jornalista em 2019?
NB: Acho que respondi acima. O jornalismo que mobiliza, que emociona, tem seu lugar. Chega de fingir que nós repórteres somos robôs e que há normalidade nessa realidade tão anormal.
“O jornalismo que mobiliza tem seu lugar. Nós repórteres não somos robôs”
CC: Você relata que sua condição, ou doença, não se pauta principalmente pela dor. Isso é bom? Ou seria melhor sentir dor?
NB: A dor intrínseca existe. Tem dias que acordo Frank Capra, it’s a wonderful world, mas tem dias que acordo Franz Kafka (não confundir com cafta), me sentindo um inseto.

CC: Seu avô, António Beirão, teve a coragem de romper com um elo moral, a Igreja, para fugir com sua avó e largar a batina. Ele representa seus começos, como diz o título, que se refere a duas extremidades da vida. Dessa forma, quais são os rompimentos fundamentais que a sua maturidade jornalística e literária lhe propiciou?
NB: O primeiro rompimento foi com a culpa, o temor e os dogmas que a religião infringe. No jornalismo, logo rompi com a hierarquia dos temas. Como se uma notícia de esporte – que contagia milhares e milhares de leitores – fosse mais desprezível que o solene editorial do jornal. O curso de Antropologia, num momento sombrio da universidade, início dos anos 70, foi importante para reiterar que as pessoas são diferentes. Do Country Club aos Yanomâmi, cada tribo tem seu jeito de comer, dormir, dançar, fazer sexo, sobreviver. Ninguém é superior a ninguém. A propósito, visitei uma oca coletiva dos Yanomâmi. É tão grandiosa, tão imponente quanto as catedrais góticas. É curiosa a Antropologia: nasceu porque os poderes coloniais precisavam entender quem eram aqueles “primitivos” que eles estavam espoliando. Felizmente, os antropólogos foram bem além. A psicanálise, que frequento há mais tempo que o Woody Allen, me fez romper com certos fantasmas íntimos.
O núcleo central da família, retratada em seu livro.

CC: Anteriormente, você publicou livros sobre a churrascaria Rodeio, sobre o arquiteto Claudio Bernardes, sobre o Corinthians, sobre Sérgio Motta, o “trator de FHC”, sobre o Bar Original. Sua trajetória literária não é marcada pela radicalidade, mas principalmente pela circunstancialidade. O que significa para você publicar agora uma obra que se caracteriza pelo mergulho mais profundo, doloroso e visceral na experiência humana mais extrema?
NB: Não chamaria propriamente de literária. Escrevi livros de encomenda, alguns como ghost-writer. Estes citados por acaso gostei de escrever: um passeio pelos Jardins, em São Paulo, a história dos bares e cafés do mundo, a vida e obra de um arquiteto talentoso e carismático que, infelizmente, morreu num desastre estúpido logo depois… Mas o livro que mexeu com minhas entranhas é este de agora.

CC: O seu livro foi escrito em uma circunstância que ultrapassa a questão do julgamento do autor pelo crítico e pelo leitor. Dessa forma, posta-se em uma condição singular, que o posiciona além da ansiedade e da repercussão. Você o entende assim? Você o vê como algo que vai além do exercício do estilo e da vaidade literários?
NB: A vaidade talvez seja esta: é um livro, tem sua compostura. Embora eu ironize a pose em torno do tema leitura, confesso que tinha pensado antes em escrever um blog, uma espécie de diário da doença. Tinha até título: Neuro e Neuras. Mas a internet me acovardou. Imaginei o dia em que um internauta impaciente iria me interpelar: E aí, cara, vai morrer ou não vai?

CC: Livros escritos em situações de saúde debilitada marcam a literatura de grandes autores, como Virginia Woolf, João Cabral de Melo Neto, Machado de Assis. E, mais recentemente, Christopher Hitchens, em Últimas Palavras. Hitchens teve o humor, a mordacidade e o sarcasmo potencializados pela experiência. Quais são os sentimentos e qualidades que Meus Começos e Meu Fim destacou em você?
NB: Na comparação, prefiro ficar com o Christopher Hitchens. A narrativa dele na Vanity Fair me deliciou, se é que dá para usar a palavra em tais circunstâncias. Até o absolvi do pecado de ter defendido a invasão do Iraque pelo Bush. Eu morava na Califórnia em 2003 e o assisti falando besteiras em Berkeley – mas com carisma e humor. O que mudou em mim? Talvez perder o medo. Talvez aprender a receber o carinho que nem sei se mereço.

CC: O Nirlando Beirão, titular da coluna QI, é um homem sofisticado, grand vivant, que sabe admirar tanto os bons vinhos quanto uma capa inglesa Burberry. Mas que confidencia imaginar que a boa velhice incluía uma boina vermelha. Por qual dessas imagens extremas você prefere ser lembrado?
NB: Roupa é uma fantasia, literalmente, que você expressa ali. De Lady Gaga ao Duque de Kent. Nas viagens, eu comprava roupas fora do meu padrão, na esperança de me transformar. Comprei de calça de capoeirista, de algodão cru, no Mercado Modelo de Salvador, a paletó Harry’s Tweed na City de Londres. Eu sou assumidamente esquerda-foie gras. Prefiro, de todo modo, a boina. Uma vez, o Leon Ferrari recebeu em Buenos Aires este repórter brasileiro perplexo com os enigmas da política argentina. Avisou que iria chamar uns amigos sociólogos, jornalistas, cientistas políticos, artistas como ele. Foram chegando, um a um, os velhinhos. Todos de boina. Parecia congresso da Segunda Internacional.

CC: A sua atual cabeceira de livros inclui Philip Roth, Ian McEwan, Gabriel García Márquez, Salman Rushdie, Edward Said, a revista Granta. Revela tanto o perfil de um homem eclético quanto culto. Qual livro não leu, não lerá, e se arrepende disso?
NB: Cheguei a estudar um pouco de alemão porque queria ler A Montanha Mágica no original. Não li nem no original nem em português. Tenho uma versão em inglês que me espia lá do alto da estante.

CC: No livro, afirma que sempre foi mais de calar do que de falar. Um bom jornalista fala e ouve muito, mas não costuma se calar diante do que deve ser dito, seja a quem for. O que e a quem você gostaria de ter dito algo, mas se calou?
NB: Falo por escrito. Sou – desculpe a pretensão – militante da palavra. Tenho convicções. Mas a minha “condição”, como dizem os médicos, me leva muito mais a uma autocrítica íntima sobre tudo o que não fiz. Se fosse botar em papel tudo o que devia ter feito, e não fiz, dava para encher toda a biblioteca de Alexandria. É possível que ao longo da carreira e da vida eu tenha engolido um ou outro sapo. Bem menos, asseguro, do que o ministro da Justiça atual e provisório.
“Se fosse botar no papel tudo que devia ter feito, e não fiz, dava para encher a biblioteca de Alexandria”
CC: Você afirma que adora o jornalismo desimportante, o jornalismo pop, das franjas, da periferia. E lembra que fez colunismo social com black-tie emprestado. Quem faz esses tipos de jornalismo nos dias de hoje?
NB: Passei pelo colunismo na época em que falava muito em neocolunismo, ou new columnism, como preferia a categoria. Menos festa, mais notícia. Zózimo Barroso do Amaral, no Jornal do Brasil, depois n’O Globo, o Boechat. E a Joyce. Hoje o colunista, coitado, é obrigado a conviver com gente muito xexelenta. Perto desse rebotalho que está no poder, o governo Collor, com o qual convivi, era a corte de Lorenzo de Medici. Mas o jornalismo pop venceu. Vocês estão aí para não me deixar mentir. A historiografia contemporânea também se apoia muito nos faits divers.

CC: Lula livre? Por quê?
NB: Porque a matilha de Curitiba só o condenou, sem prova alguma, para concretizar a etapa 2 do golpe e impedir a eleição dele. E porque ele é o único líder de verdade que o Brasil tem.

CC: Você pensa na hipótese de seu final vir a ser completamente diferente daquele dos 69 anos do avô Beirão? Gostaria que isso acontecesse?
NB: Escrevi que tenho o duvidoso privilégio de pensar todos os dias na minha morte. As fantasias variam. Pode ser uma suprema arrogância essa, mas não tenho medo.
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Imagem:  Acervo Pessoal
Fonte:  https://www.cartacapital.com.br/cultura/a-literatura-ou-a-vida-uma-conversa-franca-com-nirlando-beirao/?utm_campaign=newsletter_rd_-_28052019&utm_medium=email&utm_source=RD+Station

segunda-feira, 27 de maio de 2019

Porta-voz da ONU para questões de família destaca importância de programas que incentivem paternidade responsável

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Renata Kaczmarska, porta-voz do Secretariado da ONU para questões de família Foto: ALEX SILVA/ESTADAO

Para especialista da ONU, governos devem promover educação para pais

Além das políticas econômicas e sociais, os governos devem se preocupar também em promover programas de educação para pais. É o que defende a cientista política polonesa Renata Kaczmarska, porta-voz do Secretariado da ONU para questões de família. 

Na última sexta, a especialista esteve em São Paulo para apresentar estudo das Nações Unidas que mostra como políticas públicas voltadas para a família podem ajudar no cumprimento dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, conjunto de 17 metas definidas pelas ONU que devem ser cumpridas até 2030. O evento foi promovido pela associação Family Talks em parceria com a Prefeitura de São Paulo

Em entrevista exclusiva ao Estado, Renata destacou a importância de educar os homens para que eles exerçam uma paternidade responsável. 

O estudo da ONU aponta algumas áreas prioritárias para discutir o impacto de políticas voltadas para a família. Quais são elas e por que elas foram priorizadas?
Da perspectiva da família, as áreas de pobreza, nutrição, saúde e educação são as mais importantes porque têm um papel direto no alcance dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Isso porque os pais influenciam os comportamentos das crianças, então se os pais têm recursos suficientes para fornecer nutrição adequada para as crianças, elas serão mais saudáveis. Na saúde, se os pais levarem as crianças para serem vacinadas, é a mesma coisa. Na questão da pobreza, é importante focar na família porque é onde a pobreza se reproduz, ou seja, você tem que interrompê-la no nível familiar para que a próxima geração não herde isso. 

O estudo também menciona a importância da igualdade de gênero dentro do núcleo familiar para que essa igualdade tenha reflexo na sociedade como um todo. Como buscar essa igualdade em países como o Brasil, onde milhões de crianças nem sequer têm o nome do pai no registro?
A paternidade responsável é uma das coisas que devemos promover. Há países que promovem programas que ensinam o que significa ser pai, o que é masculinidade, e uma das características é ser responsável. Em muitos países é comum os homens não reconhecerem seus filhos e as crianças ficarem sob os cuidados das mães e das avós. Muitos homens acham que sua única função é econômica, então, se estão desempregados, se afastam. A questão é que mesmo que eles não tenham como oferecer tanto no aspecto econômico, eles têm que entender que são muito importantes para a família e têm que se envolver como puderem: cuidando das crianças, cozinhando para elas. Temos que mudar essa visão de que a função deles é econômica. Mas para isso é preciso educação. 

E como os governos podem interferir nessas questões sem ferir a autonomia da família?
Esse é um argumento comum que escuto: que a família está na esfera privada e, por isso, não deveríamos interferir nelas. No entanto, as decisões familiares têm real impacto na questão pública. Ninguém está tentando substituir a família, queremos ajudá-la a executar bem suas funções. A educação parental tornou-se uma questão importante. Muitos países têm boas iniciativas. Por exemplo, na África do Sul, há um programa promovido pelo governo para educar homens e melhorar suas habilidades como pais. Nas Filipinas, há um programa interessante de transferência de renda que não é condicionado somente a questões de saúde e educação, como é aqui no Brasil com o Bolsa Família. Lá, os pais também têm que frequentar aulas de desenvolvimento familiar, inclusive os homens. Todo mês eles têm que ir a essas aulas e há turmas separadas de acordo com a idade das crianças. Eles reúnem educadores, acadêmicos e outros profissionais, afinal uma criança não vem com um manual. Então é um programa que incentiva você a ser responsável. 

Quais são os melhores formatos de programas de transferência de renda para famílias?
Os programas de transferência condicional de renda são bons especialmente em países que ainda têm bolsões de extrema pobreza, onde é necessário quebrar esse ciclo já para a próxima geração. Eles são bons, mas não são suficientes. É preciso também investir em infraestrutura básica como educação de qualidade, acesso à saúde. Outra coisa importante é investir em programas de atividades para crianças fora do horário escolar. Uma coisa que temos visto em alguns países são programas intergeracionais, que tenham atividades para idosos e crianças e nos quais eles possam interagir. 

Essa questão do envelhecimento é outro desafio para as famílias em todo o mundo. Há países na Europa que já estão pagando uma espécie de salário aos familiares que atuam como cuidadores porque geralmente eles têm que deixar seus empregos, certo?
Sim, em alguns países os idosos podem escolher quem vai cuidar deles, pode ser alguém da família ou de fora e isso (pagamento) está sendo usado porque os países querem desafogar os serviços sociais, então já que eles teriam que pagar de qualquer forma, eles dão mais possibilidades de escolha para o idoso. E em alguns países, como Hungria e Austrália, esse modelo é usado também para os cuidadores das crianças. Se as famílias escolhem os avós, o governo dá dinheiro a eles. Isso é uma opção interessante em países em que a educação infantil é muito cara.
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Entrevista com Renata Kaczmarska, porta-voz do Secretariado da ONU para questões de família
Reportagem por Fabiana Cambricoli, O Estado de S.Paulo 27 de maio de 2019  
Fonte:  https://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,para-especialista-da-onu-governos-devem-promover-educacao-para-pais,70002844651

'World peace'

Luiz Felipe Pondé* 
Ilustração de Ricardo Cammarota para colunade Pondé de 27.mai.2019

Os jovens são, desde os anos 1960, um fetiche da burguesia e dos mais óbvios


Pergunto-me: de onde vem a paixão louca pela série “Game of Thrones” (“GoT” para os íntimos)? A resposta deve ser longa. Não quero respondê-la aqui.

Espanta-me que pessoas tão preocupadas em serem boas (como as contemporâneas, cheias de causas do “bem”) podem gozar com uma produção (nada de pessoal contra a série, inclusive porque não me incluo entre as pessoas que querem ser boas) tão violenta —tanto no nível explicitamente físico quanto no político e no psicológico. É evidente que a velha pulsão de morte freudiana encontra em exemplos como essa série seu parque temático do mal.

Essa questão me serve de gancho para pensar uma outra, esta sim, que me ocupa há algum tempo. Por que mentimos tanto sobre os jovens hoje em dia? Outra, relacionada à anterior: por que eles mentem tanto sobre si mesmos e tantos de nós batemos palma para esse espetáculo de “mortos-vivos”?

Um parêntese. O título acima, “World peace” (paz mundial), era a resposta que as candidatas ao concurso de Miss Universo davam à pergunta “o que você mais deseja na vida?”. Esta questão vinha acompanha por outra: “Qual é seu livro de cabeceira?”. A resposta: “O Pequeno Príncipe”. Afora a ingenuidade aparente dessas respostas, lembro-me bem desses concursos porque era uma delícia ver tantas gostosas num programa só, e de tantos países diferentes. Sei. Hoje em dia achar uma mulher gostosa é “masculinidade tóxica”. 

Explicado o título, voltemos às duas questões enunciadas anteriormente sobre os jovens. Numa pesquisa recente de um desses institutos com credibilidade que saiu na grande mídia, os jovens latino-americanos, inclusive os brasileiros, revelaram ter o mesmo humor depressivo mostrado em pesquisas com jovens americanos.

Depressão, medo do futuro, falta de expectativas, dificuldades nos relacionamentos afetivos, queda de esperança no cotidiano. Nada de novo no fronte desde meados dos anos 2000, quando começaram a aparecer pesquisas de comportamento nos Estados Unidos com os chamados “millennials”. E as escolas, as universidades e as famílias continuam na sua batida mentirosa e marqueteira sobre como os jovens estão “evoluídos”.

O que chamou minha atenção especificamente nessa pesquisa não foi o estado de humor dos jovens latino-americanos. Como costumo dizer, atuando em graduação há mais de 20 anos, podemos constatar, no mínimo, duas coisas. 

A primeira é que, a cada ano, nós, professores, estamos mais velhos, enquanto os alunos têm sempre a mesma idade.

A segunda é que podemos perceber, claramente, que o humor dos jovens está a cada ano mais depressivo. Os jovens estão piores, e não melhores.

O que chamou minha atenção especificamente foram as respostas desses jovens, que a pesquisa trouxe, como causas para esse humor depressivo: a preocupação com o aquecimento global, a violência contra os animais e os direitos humanos e a perseguição à liberdade de expressão.

Perdoe-me a sinceridade: essas “causas” são mentira e marketing. Não acredito nessas “causas”. Não que os temas não sejam preocupantes, mas não creio que elas sejam as verdadeiras causas do humor depressivo entre os jovens. Acho que elas são respostas prontas que mostram no que transformamos os jovens. Eles são, desde os anos 1960, um fetiche da burguesia. E dos mais óbvios. Pais e escolas adoram esse fetiche porque ele os faz parecer geradores de um futuro melhor. Porém, o que ocorre é que esse fetiche aumenta a distância entre a realidade (psíquica, social e política) desses jovens e a projeção que o marketing de comportamento faz deles.

A maioria esmagadora da população não liga para liberdade de expressão. Só quem liga para ela são jornalistas, professores, artistas ou intelectuais em geral. A menos que a repressão sobre a liberdade de expressão torne seu jantar impossível, ela que se dane. Quanto às outras “causas”, elas estão bem distantes do dia a dia concreto da maioria esmagadora desses jovens. Mas muita gente acredita mesmo que esses deprimidos estejam assim porque “querem um mundo melhor”. Mas essas respostas são como a resposta “world peace”, dada pelas gostosas no concurso de Miss Universo. Puras “fake news” com aprovação de todos.

Creio mais que as causas sejam famílias disfuncionais, mercado de trabalho em transformação monstruosa, instabilidade afetiva, insegurança identitária, desconfiança epidêmica. Dizer que estão deprimidos por causa de questões políticas e sociais é mais fácil do que enfrentar o quarto desarrumado e o banheiro sujo.
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* Escritor e ensaísta, autor de “Dez Mandamentos” e “Marketing Existencial”. É doutor em filosofia pela USP. 
Imagem  Ricardo Cammarota
Fonte:  https://www1.folha.uol.com.br/colunas/luizfelipeponde/2019/05/world-peace.shtml 27/05/2019