domingo, 31 de julho de 2011

Ainda o fundamentalismo

Leonardo Boff*

O ato terrorista perpetrado na Noruega de forma calculada por um solitário extremista norueguês, de 32 anos, trouxe novamente à baila a questão do fundamentalismo. Os governos ocidentais e a mídia induziram a opinião pública mundial a associar o fundamentalismo e o terrorismo quase que exclusivamente a setores radicais do islamismo. Barack Obama, dos EUA, e David Cameron, do Reino Unido, se apressaram em solidarizar-se com governo da Noruega e reforçaram a ideia de dar batalha mortal ao terror, no pressuposto de que seria um ato da Al Qaeda. Preconceito. Desta vez era um nativo, branco, de olhos azuis, com nível superior e cristão, embora o The New York Times o apresente “sem qualidades e fácil de se esquecer”.
Além de rejeitar decididamente o terrorismo e o fundamentalismo, devemos procurar entender o porquê deste fenômeno. Já abordei algumas vezes nesta coluna tal tema, que resultou num livro Fundamentalismo, terrorismo, religião e paz: Desafio do século XXI (Vozes, 2009). Aí refiro, entre outras causas, o tipo de globalização que predominou desde o seu início, uma globalização fundamentalmente da economia, dos mercados e das finanças. Edgar Morin a chama de “a idade de ferro da globalização”. Não se seguiu, como a realidade pedia, uma globalização política (uma governança global dos povos), uma globalização ética e educacional.
Explico-me: com a globalização inauguramos uma fase nova da história do planeta vivo e da própria humanidade. Estamos deixando para trás os limites restritos das culturas regionais, com suas identidades e a figura do estado-nação, para entrarmos cada vez mais no processo de uma história coletiva, da espécie humana, com um destino comum, ligado ao destino da vida e, de certa forma, da própria Terra. Os povos se puseram em movimento, as comunicações universalisaram os contatos, e multidões, por distintas razões, começam a circular pelo mundo afora

"A resposta do governo e do povo norueguês foi sábia: responderam com flores e
com a afirmação de mais democracia..."

A transição do local para o global não foi preparada, pois o que vigorava era o confronto entre duas formas de organizar a sociedade: o socialismo estatal da União Soviética e o capitalismo liberal do Ocidente. Todos deviam alinhar-se a uma destas alternativas. Com o desmonte da União Soviética, não surgiu um mundo multipolar mas o predomínio dos EUA como a maior potência econômico-militar que começou a exercer um poder imperial, fazendo que todos se alinhassem a seus interesses globais.
Mais que globalização em sentido amplo, ocorreu uma espécie de ocidentalização do mundo e, em sua forma pejorativa, uma hamburguerização. Funcionou como um rolo compressor, passando por cima de respeitáveis tradições culturais. Isso foi agravado pela típica arrogância do Ocidente de se sentir portador da melhor cultura, da melhor ciência, da melhor religião, da melhor forma de produzir e de governar.
Essa uniformização global gerou forte resistência, amargura e raiva em muitos povos. Assistiam à erosão de sua identidade e de seus costumes. Em situações assim surgem, normalmente, forças identitárias que se aliam a setores conservadores das religiões, guardiães naturais das tradições. Daí se origina o fundamentalismo, que se caracteriza por conferir valor absoluto ao seu ponto de vista. Quem afirma de forma absoluta sua identidade está condenado a ser intolerante para com os diferentes, a desprezá-los e, no limite, a eliminá-los.
Este fenômeno é recorrente em todo o mundo. No Ocidente, grupos significativos de viés conservador se sentem ameaçados em sua identidade pela penetração de culturas não europeias, especialmente do islamismo. Rejeitam o multiculturalismo e cultivam a xenofobia. O terrorista norueguês estava convencido de que a luta democrática contra a ameaça de estrangeiros na Europa estava perdida. Partiu então para uma solução desesperada: colocar um gesto simbólico de eliminação de “traidores” multiculturalistas.
A resposta do governo e do povo norueguês foi sábia: responderam com flores e com a afirmação de mais democracia, vale dizer, mais convivência com as diferenças, mais tolerância, mais hospitalidade e mais solidariedade. Esse é o caminho que garante uma globalização humana, na qual será mais difícil a repetição de semelhantes tragédias.
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* Leonardo Boff, teólogo e escritor, é autor de 'Virtudes para um outro mundo possivel', 3 vol. (Vozes, 2008-2009).
Fonte: Jornal do Brasil on line, 31/07/2011
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Prazer x Natureza

Alexandre Lowen*
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As raizes do prazer estão arraigadas nas relações do homem com a natureza. No nível mais profundo, somo parte da natureza; no mais alto, somos organismos exclusivos, vivenciando conscientemente o prazer e a dor, a alegria e a tristeza no nosso relacionamento com a natureza. Por exemplo, experimentamos dor num período de estiagem, quando a chuva não cai e a terra está ressecada. Quando a chuva vem, é acompanhada de sensações de alegria. Aborrecemo-nos quando a chuva é torrencial e destrutiva, e contentamo-nos quando o ciclo da chuva e do sol é regular e sem perturbações.
A sensação de prazer, originada do ritmo da natureza e sem perturbação da vida, abrange todas as nossas atividades e relações. Há um tempo para trabalhar e um tempo para descansar, um tempo para distrair-se e um tempo para levar as coisas a sério, um tempo para ter companhia e um tempo para ficar só. Ter muita gente ao nosso redor pode ser tão doloroso como uma grande solidão e muito divertimento, tão aborrecido como trabalho em excesso. Os ritmos que governam a vida são inerentes à vida; não podem ser impostos de fora. Todo individuo conhece quais são seus ritmos, percebendo através de sensações de dor ou de falta de prazer, quando seus ritmos estão perturbados. Os ritmos biológicos de um individuo não são completamente diferentes dos ritmos dos outros. Há diferenças, evidentemente, mas existem muitos ritmos comuns aos membros de uma mesma espécie. Basta observarmos um bando de pássaros para vermos como o ritmo de cada um se harmoniza graciosamente com o dos outros. Entre os seres humanos, nos quais o sentido de individualidade é mais desenvolvido, as diferenças são mais aparentes.
O conceito de que cada organismo possui um relógio biológico que regula suas atividades é discutível. Já se observou que, ao viajar por longas distâncias em aviões a jato, certas pessoas ficam com seus padrões rítmicos descontrolados. Tornam-se irritadiças e facilmente se sentem mal; há uma alteração em sua perspicácia e em sua acuidade. A viagem de cinco horas ou mais já se mostra crítica. Os dispositivos de tempo, reguladores das atividades do organismo, ficam defasados em relação ao tempo ambiental ou solar. A volta à normalidade exigirá vários dias. Todos nós já sentimos perturbações no equilíbrio de nosso corpo por causa de grandes mudanças em nossos padrões de sono. A pessoa que regularmente dorme oito horas por noite sente-se mal quando certas circunstâncias a limitam a seis horas de sono durante diversas noites. Da mesma maneira, a pessoa acostumada a seis horas de sono por noite sentir-se-á lânguida e cansada quando dormir oito ou mais horas. Parece que o ritmo corporal, uma vez estabelecido, torna-se uma força que exige sua continuidade. A esse respeito é relativamente pouco importante se comemos três refeições por dia em consequência do costume ou por causa da necessidade do sustento do corpo, pois a pessoa acostumada a três refeições por dia, se pular uma delas, poderá colocar seu organismo fora de equilíbrio.
O conceito do relógio biológico enfatiza a importância do ritmo na vida, que é uma função compartilhada, em certo grau, entre os organismos vivos e a natureza inorgânica. Toda a matéria está em constante movimento.
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*Psicanalista de orientação freudiana foi um dos estudante de Wilhelm Reich nos anos 1940 e início dos anos 1950 em Nova York, desenvolveu a psicoterapia mente-corporal conhecida como análise bioenergética com seu então colega John Pierrakos. Ele é o fundador primeiro diretor-executivo do International Institute for Bioenergetic Analysis - (Instituto Internacional de Análise Bioenergética) localizado na cidade de Nova Iorque.Ele praticou psicoterapia por mais de 60 anos. Ele foi autor de 14 livros de Análise Bioenergética. Morreu em 28 de outubro de 2008, aos 97 anos.
Excerto do livro: LOWEN, Alexandre. Prazer – Uma abordagem criativa da vida. Círculo do Livro, S/A, São Paulo, SP, 1986, p.199/201.

A dança da sustentabilidade

 A sustentabilidade está cada vez mais associada a divertimento. A prová-lo surge o conceito do Sustainable Dance Floor. Este conceito vem revolucionar a diversão nocturna, aliando a performance ambiental à dança. Com o lema People – Planet - Party o conceito pretende criar clubes nocturnos com pistas de dança onde é empregue uma tecnologia que permite a produção de energia através do movimento do corpo, levando os eventos a uma nova dimensão. Na pista de dança é montada uma estrutura que utiliza a energia das pessoas para fazer o chão reagir de forma interactiva. Nos ecrãs, por exemplo, por detrás do DJ a quantidade de energia produzida na pista de dança é projectada, através de um contador digital, criando uma experiência interactiva entre DJs e multidão.
Nestes clubes não se sente apenas a energia, também a experienciamos. O chão exibe diferentes níveis de cores em função da intensidade energética, fornecendo uma experiência visual única. Desde o “aquecimento” ao extase da noite, um festival de cores é celebrado pelos corpos dançantes. O contador mostra a interactividade entre os dançarinos e o chão. Quanto mais se dança mais o contador reage.

Como funciona:

O Sustainable dance floor é uma fusão entre a electronica, softwares e materiais inteligentes e duráveis. Consiste em módulos que medem 65 x 65 cm, cada um dos quais se move cerca de 1 cm na vertical quando alguém se encontra a dançar por cima. Estes movimentos são transformados por um motor eléctrico em electricidade. Cada pessoa pode produzir entre 2-20 Watts, dependendo do seu peso e actividade na pista de dança.
A energia gerada é utilizada para iluminar interactivamente o chão. A tecnologia, desenvolvida na Holanda pela Universidade de Delft, tem estado a ser aperfeiçoada para permitir a utilização da energia para outros fins, como por exemplo fornecer energia ao clube.
Mais que uma solução para fornecer energia para clubes nocturnos ou para fazer publicidade a clubes “verdes” , esta invenção permite criar uma consciência social para os problemas ambientais, de uma forma divertida, e mais que isso, permite aos utilizadores aprenderem através de uma experienciação, atribuindo-lhes uma responsabilidade em todo o processo. Como disse um dia Confúcio, filosofo chinês: Eu ouço e esqueço. Eu vejo e relembro. Eu faço e compreendo.
Este produto foi lançado em Setembro de 2008 pela primeira vez, num clube em Roterdão, o clube WATT. Esta tecnologia está disponível para qualquer clube através de versões definitivas, instaladas em clubes e versões móveis para festas isoladas. A sua construção modular permite que o chão seja disponibilizado em várias dimensões.
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Este artigo é da autoria de Rita Margarido, Atol. Publicado em tecnologia por atol

Fonte: http://obviousmag.org/archives/2009/03/a_danca_da_sustentabilidade.html#ixzz1TjNeeQsf

Falta olhar para fora, diz chinês


O DIAGNÓSTICO que observadores estrangeiros fazem sobre os "think tanks"( centros de pesquisa econômica e política) brasileiros confirma a noção de que, apesar dos sinais recentes de fortalecimento, eles ainda têm pouca expressão.
O presidente emérito do "think tank" Inter-American Dialogue, Peter Hakim, diz ver "poucos centros com foco em política externa brasileira e temas internacionais". Para ele, os campos "são dominados pelo trabalho do Itamaraty".
Em entrevista à Folha, Zhou Zhiwei, secretário-geral do Centro de Estudos Brasileiros da Academia Chinesa de Ciências Sociais, enxerga os centros de pensamento "mais ativos que antes", porém ainda sem "influência no processo de decisão".

Folha - Como avalia a performance dos "think tanks" brasileiros?
Zhou Zhiwei - Acho que têm crescido muito. Também estão bem mais ativos, têm mais contatos com os dos outros países, e os temas que abordam são mais importantes e urgentes para o Brasil.

Quais são aqueles cujas análises já chamaram a sua atenção?
Gosto de ler pesquisas vinculadas a temas como o Brasil na governança global, as políticas para a África, a posição na mudança climática, a relação sino-brasileira e a integração sul-americana.

Eles contribuem para a relação do país com o mundo e com a China?
Sim, contribuem muito para um conhecimento mútuo entre o Brasil e o mundo. Desempenham um papel de ponte para diálogos de "think tanks" do mundo.

O que devem fazer para pesar mais na discussão de política externa?
Devem discutir mais as posições dos outros países nos assuntos internacionais importantes. Se você conhece o que outros pensam, sabe como cooperar com eles. Além disso, as prioridades da política externa seriam as prioridades dos "think tanks" brasileiros, como integração da América do Sul, a inserção internacional do Brasil.

Qual é a sua avaliação dos "think tanks" na Rússia, na Índia e na África do Sul?
Os "think tanks" dos países em desenvolvimento possuem características semelhantes: crescem muito rápido, querem intercambiar, mas ainda falta influência no processo de decisão do governo.
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Reportagem por NELSON DE SÁ
Fonte: Folha on line, 31/07/2011
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O paradoxo do supermercado

MARCELO NERI*
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Quando sobem de classe, as pessoas
mudam tanto os produtos que compram
como os locais de compra
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Se a China é a fábrica do mundo, o Brasil é a fazenda. A agricultura brasileira floresce e dá frutos. No social, vai de Josué de Castro, com o seu "Geografia da Fome", nos anos 40, a José Graziano, recém-eleito à presidência da FAO (Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação).
A bandeira inicial levantada por Lula no seu discurso da vitória foi "Fome Zero", e não o "Tolerância Zero" aplicado à violência em Nova York, por exemplo.
Em 2007, na alta global do preço dos alimentos, que, a rigor, beneficia macroeconomicamente o Brasil, mas prejudica pobres de todas as partes, o governo reajustou o Bolsa Família de forma a compensar a perda de renda na base.
Dilma repete a receita ao eleger como meta principal a erradicação da miséria (tecnicamente, o miserável é aquele que não consegue suprir suas necessidades calóricas básicas). O lema geral de governo é "Um país rico é um país sem pobreza", e o Brasil sem Miséria, a sua principal inovação.
A recente tentativa de compra do Carrefour veio adicionar um tempero global ao comércio local de alimentos. Se o Cristo Redentor decolando na capa da "The Economist" como uma espécie de super-homem virou ícone do momento brasileiro, Abilio Diniz tentou fazer o mesmo com o Pão de Açúcar.
Agora, pelos dados de compras mostrados pela POF (Pesquisa de Orçamentos Familiares), do IBGE, fica difícil entender todo esse interesse pelo setor varejista de alimentos do país, uma vez que a despesa em alimentação por família caiu 0,34% em termos reais no boom entre 2003 e 2009, quando 36 milhões de pessoas foram incorporadas às classes A, B e C tupiniquins.
Isso significa mais dinheiro no bolso e menos alimento na boca?
O paradoxo aumenta se levarmos em conta a diferença entre a alimentação feita fora do lar, que cresce 29%, e aquela feita em casa, esta vendida pelos supermercados, que cai ainda mais: 9,7%.
Os próprios dados qualitativos da POF contradizem essa ideia: a parcela da população para quem a quantidade não é suficiente cai 34,3%, enquanto a parcela daqueles aos quais a qualidade do alimento é sempre do tipo que querem sobe 33,1%.
Se pensarmos a POF como uma suculenta iguaria, entre o garfo e a boca existem vários percalços. A queda da despesa com comida por família não implica que a despesa por brasileiro também caiu, pois as famílias estão ficando menores à luz da transição demográfica em curso. Em 1992, cada domicílio tinha cinco pessoas e, agora, menos de quatro --esse é o segredo da receita. O problema afeta os desavisados, que usam as tabulações do IBGE como se fossem "junk food".
Na verdade, a despesa de alimentação em casa por brasileiro não caiu. Agora, a gente não quer só comida, se forem incluídas as despesas com bebida, material de limpeza, produtos de higiene pessoal e outros agregados. Quando sobem de classe, as pessoas mudam tanto os produtos que compram como os locais de compra. Esse é o pomo da discórdia franco-brasileira. Alguém da classe E faz 28% dessas despesas em supermercados, enquanto as classes A e B fazem 63%.
Se medirmos onde o custo da sola de sapato de Milton Friedman é gasto, as classes A e B, que crescem mais que todas as demais, compram em supermercados quatro vezes o que a classe E compra e fazem 30% menos compras em outros estabelecimentos.
À medida que a sociedade fica mais rica, especialmente se sai da base da pirâmide -como aqui, mas não alhures-, gasta mais tempo nesses locais com ar condicionado, tanto pelo leque de escolhas e praticidade, incluindo estacionamento e, agora, as vias da internet, como pela segurança. Se aplicarmos a projeção de composição de classes do CPS (Centro de Políticas Sociais) para 2014, fruto do efeito renda, as despesas em supermercado crescerão de 47% para 52% como parcela do agregado de despesas.
Alfred Marshall dedicou atenção a lições do mercado de peixes. Os leitores da Folha talvez achem que, se estivesse vivo, Marshall usaria agora como inspiração o mercado financeiro. Discordo: o super, ou melhor, o hipermercado de agora é o próprio. Nenhum outro descreve melhor o nosso dia a dia.
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* MARCELO NERI, 48, é economista-chefe do Centro de Políticas Sociais e professor da EPGE, na Fundação Getulio Vargas.
Fonte: Folha on line, 31/07/2011

Em busca de significado

MARCELO GLEISER*
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A ciência nos ensina sobre a
nossa íntima relação com o Universo:
 a matéria da qual somos feitos
é também a de estrelas, planetas e luas
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AQUI NA coluna, abordamos tanto questões mais imediatas, como o aquecimento global e a crise energética, como as mais fundamentais, como o significado do tempo e o debate entre a ciência e a religião.
Hoje, gostaria de abordar uma questão que, a meu ver, está no cerne do antagonismo entre a ciência e a religião: será que o desenvolvimento científico criou um vazio espiritual? Será que a ciência só serve para gerar fatos e dados sobre o mundo natural?
Ou será que pode ir mais fundo, talvez criando uma nova forma de espiritualidade?
Para começar, cito meu livro "O Fim da Terra e do Céu":
"O desenvolvimento da ciência nos séculos 18 e 19, baseado na interpretação racional dos fenômenos naturais, foi seguido, ao menos no Ocidente, por um abandono progressivo da religião. O conforto espiritual encontrado na fé foi gradualmente abandonado, em nome de um sistema de pensamento secularizado. O historiador da religião S. G. F. Brandon expressou claramente tal preocupação quando escreveu: 'Para os pensadores do Ocidente, nenhuma missão pode ser mais urgente do que a resolução desse dilema, se possível produzindo uma filosofia da história adequada, isto é, que justifique o sentido da vida dos homens dentro de sua duração temporal finita'."
Logo a seguir, pergunto se, ao vermos a ciência além de seu papel de quantificadora da Natureza, podemos talvez encontrar ao menos parte desse "sentido": "Talvez fosse isso que Einstein tinha em mente quando introduziu o seu 'sentimento cósmico religioso', a inspiração essencialmente religiosa por trás do ato racional de compreendermos o Cosmos. A ciência e a religião nascem das mesmas ansiedades que torturam e inspiram o espírito humano. E a conexão entre as duas é a nossa existência finita em um Cosmos aparentemente infinito".
Obviamente, o tempo também complica as coisas, pois a perda dos que amamos e a nossa própria mortalidade são causas de muita dor.
Nessas horas, encontro consolo em muitas coisas. Mas uma das mais significativas é o que a ciência nos ensina sobre nossa íntima relação com o Universo: a matéria da qual somos feitos é também a matéria das estrelas, dos planetas e de suas luas, e de todos os seres vivos.
O tempo que usamos para descrever as transformações que experimentamos é o mesmo da expansão cósmica. O tempo passa para o Universo também. Como escreveu o naturalista americano John Muir, "ao movermos uma única coisa na Natureza, descobrimos que ela está presa ao resto do Universo".
Não existe uma solução única para os nossos anseios. Não sei onde você encontra sentido para a sua vida. No meu caso, a busca se desdobra em muitas trilhas.
Ao tentar entender um pouco mais sobre os mistérios do mundo natural; na convivência com minha família e amigos; em saber que sou um ser humano no nosso raro planeta Terra. Para mim, o sentido não está na ciência em si, mas na busca pelo conhecimento. Talvez seja assim também com um músico, que dá sentido à sua busca tocando o seu instrumento. As técnicas nos dão os meios, mas não são um fim em si mesmas. É tocar, e dividir a música com os outros, que importa.
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* MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do livro "Criação Imperfeita"
Fonte: Folha on line, 31/07/2011
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A evolução da generosidade

Em geral, humanos confiam naqueles que provavelmente nunca mais verão

O impulso humano de ser bondoso
com pessoas desconhecidas não é
a aberração que pode parecer.
Da 'Economist'*

No momento, a cooperação é o assunto mais quente da investigação humana. Em particular, por que os humanos têm tanta disposição para colaborar com estranhos, ao ponto de arriscarem serem enganados por pessoas cujas índoles são inescrutáveis?
As evidências dos jogos econômicos com prêmios em dinheiro de verdade jogados em laboratório sugerem que os humanos confiam naqueles que provavelmente nunca mais verão, e são surpreendentemente pouco inclinados a trapaceá-los. Esses fenômenos estão profundamente entranhados na psicologia da espécie. As teorias existentes que tentam explicar a evolução da confiança dependem ou do parentesco dos participantes ( e logo na compartilhamento de genes) ou do fato de seus relacionamentos serem de longo prazo, com ambas as partes fazendo a contabilidade de modo a não permitir que os benefícios da colaboração não ultrapassem seus custos. Nenhum dos dois casos se aplica ao caso de estranhos que se cruzam, e isso levou à especulação de que algo extraordinário, como a necessidade de colaboração incitada pelo surgimento de guerras e o uso de armas de fogo, aconteceu na evolução humana recente para promover o aparecimento de um instinto de generosidade incondicional.
Leda Cosmides e John Tooby, dois decanos deste campo que trabalham na University of Califórnia, Santa Barbara, não concordam. Eles não vêem necessidade de mecanismos extraordinários, e o estudo mais recente do seu grupo sugere que eles estão certos. Este estudo também mostra o valor de se aplicar bom senso a análises psicológicas – e depois fundamentar este bom senso com uma modelagem matemática consistente.

Passar bem

Estudar a evolução humana diretamente é obviamente impossível. A duração das gerações é longa demais. Mas é possível isolar características de interesse e examinar como elas evoluíram em simulações de computador. Para este fim, cientistas desenvolveram agentes de software que têm a habilidade de se encontrar e interagir como humanos. A conclusão, em acordo com a previsão dos cientistas, é que a generosidade compensa – ou, antes, que o custo do egoísmo inicial é mais alto que o custo da verdade. Isto acontece porque a probabilidade de um único encontro, e portanto da trapaça, é só isso: uma probabilidade.
Para conjuntos de custos mais plausíveis, benefícios e chances de encontros futuros, a simulação descobriu que compensa confiar, ainda que se seja enganado algumas vezes. O que, se você parar para pensar, faz todo o sentido. Tentativas anteriores de estudar a evolução da confiança foram construídas de modo a deixar claro a seus participantes se o encontro seria único e daí extrair conclusões. Isto, contudo, é pouquíssimo realista. No mundo real, apesar de se poder tentar estimar, baseando-se nas circunstâncias, as chances de se encontrar alguém mais de uma vez nunca se saberá ao certo. Ademais, no antigo mundo dos caçadores-coletores, a limitação da movimentação significava que um segundo encontro seria muito mais provável do que neste mundo populoso e urbano. A boa fé para com estranhos faz sentido tanto moral como evolucionário.
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*Texto adaptado para o Opinião e Notícia por Eduardo Sá
Fontes: Economist - Welcome, stranger
Fonte: http://opiniaoenoticia.com.br/ Acesso, 31/07/2011

Cabelos brancos

Christine Lagarde, do FMI

Christine Lagarde, do FMI, e
o crescente número de mulheres que
não teme o envelhecimento.
No livro Sociologie de La Vieilesse et Du Vieillissement (Sociologia da Velhice e do Envelhecimento, não traduzido no Brasil), o sociólogo Vicent Caradec explica: assim como as cirurgias plásticas e os cosméticos, esses rituais são uma maneira de retardar as mudanças corporais que, dentro da cultura ocidental, provocam o sentimento de “tornar-se velho”. “A partir de 50 anos, o corpo tem de pensar para satisfazer os cânones estéticos. Perdendo as qualidades habituais de objeto sexual, ele passa a ter uma visibilidade diferente, suscitando outro tipo de olhar.”
Para a psicanalista Marion Péruchon, assumir os cabelos brancos pode demonstrar uma capacidade de aceitar a chegada da idade, sem se agarrar à imagem de si mesmo que pertencia à uma outra época da vida, a juventude. “Longe de fazer medo ou deixar esse indivíduo pouco à vontade com sua imagem, os cabelos brancos são, para essas pessoas, revestidos de um valor estético positivo e testemunham que a velhice, para elas, não é um obstáculo maior à continuação de uma vida que ainda reserva muitos prazeres e satisfações.”
Há, inclusive, aquelas que se apressam em passar essa mensagem sobre si mesma. Than Dumaine, de 43 anos, mantém uma charmosa galeria de arte em plena Île de Saint Louis. E os cabelos curtíssimos, tingidos de cinza. Ela já tem alguns fios de cabelos brancos, mas não o suficiente para ostentar a cabeça branca com que sonha desde que tem 23 anos. A partir daí, ela pinta os cabelos de branco. “Não tem nada a ver com atitude punk, com essa moda Lady Gaga. Eu gosto dos cabelos brancos, é o único sinal de idade que eu acho muito estético”, afirma, rindo. “Ainda por cima, branco combina com tudo.”
Para ela, hoje em dia, o cabelo branco não é mais um sinal negativo da velhice de 60 anos e cabelos tingidos, e é óbvio que eles são tingidos. Ela não vai deixar de ter 60 anos porque tem cabelos castanhos.”
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Fonte: Esses seus cabelos brancos Christine Lagarde, do FMI, e o crescente número de mulheres que não teme o envelhecimento (Excerto) – Por CAROLINA NOGUEIRA, in CARTA CAPITAL nº657 – 03 de agosto de 2011, pg.10/11.

A DOR DO MUNDO

LYA LUFT*
Por muito tempo achei – escrevi e disse – que os males humanos foram sempre mais ou menos os mesmos, e que a loucura toda já contamina o nosso café da manhã pelo universo cibernético. As aflições, as malandragens, as corrupções, os assassinatos absurdos, os piores aleijões morais, tudo é meu, seu, nosso pão de cada dia. Mas, de tempos para cá, comecei a achar que era lirismo sentimental meu. Estamos bem piores, sim. Por sermos mais estressados, por termos valores fracos, tortos ou nenhum, porque estamos incrivelmente fúteis e nos deixamos atingir por qualquer maluquice, porque até nossos ídolos são os mais transtornados, complicados. Nossos desejos não têm limite, nossos sonhos, por outro lado, andam ralinhos. Temos manias de gourmet, mas não podemos comer. Vivemos mais tempo, mas não sabemos o que fazer com ele. Podemos ter mais saúde, mas nos intoxicamos com excesso de remédios. Drogas habituais não bastam, então usamos substâncias e doses cavalares.
A sexualização infantil é um fato e começa em casa com mães amalucadas e programas de televisão pornográficos a qualquer hora do dia. O endeusamento da juventude a enfraquece, os adolescentes lidam sozinhos com a explosão de seus hormônios e a permissividade geral que anula limites e desorienta. A pressão social e até a insistência de governantes nos impõem o deus consumo, que nos deixa contentes até as primeiras, segundas, definitivas dívidas baterem à porta: a gente abre, e está atolado até o pescoço.

"Ainda dá para ter esperança de que,
 de alguma forma, algum dia, a gente comece
a se curar enquanto sociedade,
e a miséria concreta não mate mais ninguém,
enquanto líderes mundiais brigam
por abstratos quatrilhões."

Uma cantora pop, que me desinteressava pela aparência e por algumas músicas, morre, mata-se, por uso desmedido de drogas (álcool sendo uma delas) aos 27 anos. Logo se exibe (quase com orgulho, ou isso já é maldade minha?) uma lista de brilhantes artistas mortos na mesma idade pela mesma razão. Nas homenagens que lhe fazem, de repente escuto canções lindas, com uma voz extraordinária: mais triste ainda, pensar que esse talento se perdeu. Um louco assassino prepara e executa calmamente a chacina de dezenas de crianças e adolescentes num acampamento em ilha paradisíaca das terras nórdicas, onde o índice de desenvolvimento humano é o maior do planeta, e quase não existe a violência, que por estas bandas nos aterroriza. Explode edifícios, depois vai até a ilha, mata todo mundo, confessa à polícia que fez coisas atrozes mas que “era necessário”, e que não aceitará a culpa.
Viramos assassinos ao volante, de preferência bêbados. Nosso edifícios precisam ter portarias treinadas como segurança, nossas casas, mil artifícios contra invasores, andamos na rua feito coelhos assustados. Não há lugar nas prisões, então se solta a bandidagem, as penas são caca vez mais brandas ou não há pena alguma. Pena temos nós, pena por nós, pela tão espalhada dor do mundo. Sempre falando em trilhões, brigando por quatrilhões, diante da imagem das crianças morrendo de fome na Etiópia, na Somália e em outros países, tão fracas que não têm mais força para engolir o mingau que alguma alma compadecida lhes alcança: a mãe observa apática as moscas que pousam no rostinho sofrido. Estou me repetindo, eu sei, talvez assim alivie um pouco a angústia da também repetida indagação: que sociedade estamos nos tornando?
Eu, recolhida na ponta inferior deste país, sou parte dela e da loucura toda: porque tenho alguma voz, escrevo e falo, sem ilusão de que adiantará alguma coisa. Talvez, como na vida das pessoas, esta seja apenas uma fase ruim da humanidade, que conserva fulgores da solidariedade e beleza. Onde não a matamos, a natureza nos fornece material de otimismo: uma folha de outono avermelhada que a chuva grudou na vidraça, a voz das crianças que estão chegando, uma música que merece o termo “sublime”, gente honrada e produtiva, ou que cuida dos outros. Ainda dá para viver neste planeta. Ainda dá para ter esperança de que, de alguma forma, algum dia, a gente comece a se curar enquanto sociedade, e a miséria concreta não mate mais ninguém, enquanto líderes mundiais brigam por abstratos quatrilhões.
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* Escritora. Tradutora. Colunista da revista VEJA, quinzenal.
Fonte: Revista VEJA impressa, Ed.2228 – 03 de agosto de 2011, p.24.
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sábado, 30 de julho de 2011

Guerra de Sangue” em Oslo, contra imigrantes e marxistas

UBIRACY DE SOUZA BRAGA*

“O irônico, ao contrário, é uma profecia ou
 uma abreviatura de uma personalidade”.
In: Om Begrebet Ironi med Stadigt Hensyn til Socrates,
 af S. A. Kierkegaard,
Kjobenhavn, 1841, SV (1), XIII 95.

O filósofo, professor e cientista político e social norueguês, Jon Elster é autor de mais de uma dezena de livros. Seus estudos têm se direcionado ao processo de construção da Constituição norte-americana e à retração da justiça em países que recentemente saíram de um processo de governo autoritário ou totalitário. Em sua conferência no Fronteiras, Jon Elster expôs sua opinião sobre os sistemas eleitorais e os desafios do processo democrático, argumentando que a boa democracia reúne três características: “governança estável, alta taxa de comparecimento nas eleições e autoridades públicas competentes”. Uma das principais fronteiras, para Elster, é o processo eleitoral.
Para ele, a eleição deveria representar a “vontade popular”, mas, não raramente, o vencedor não reflete a preferência da população. O que a Constituição deve fazer é minimizar essa possibilidade. Em sua obra de filosofia e metodologia das ciências sociais do teórico social e político norueguês Jon Elster é o inventor do “marxismo analítico”. Ele acredita que o objetivo das ciências sociais – sociologia, antropologia, economia, política – é o estudo do comportamento humano em sociedade, que seria a causa de todos os fatos e acontecimentos históricos que podem ser observados em uma determinada sociedade. Elster define essa visão como o pressuposto de que todos os fenômenos sociais podem ser explicados pela ação de indivíduos entre si, e que, por isso, além do estudo do próprio comportamento, é preciso saber quais foram as motivações do indivíduo para agir daquele modo, para fazer aquela escolha dita racional.
J. Elster chama esse método de “individualismo metodológico”, que não pode ser confundido com o individualismo moral e político, que Elster, como socialista, critica de um ponto de vista ético. Essas motivações representariam os “mecanismos” que, ativado nos sujeitos quando ele estivesse diante de um número de escolhas possíveis sobre aquilo “que ele poderia fazer”, e, deste modo, à análise das motivações (preferências). Elster analisa as possibilidades de escolha (oportunidades) e a crença daquele que escolhe em relação às suas “possibilidades de escolha”. Talvez haja aí um eco da filosofia de Jean-Paul Sartre, mas Elster alega que chegou às suas conclusões por meio da crítica a outro paradigma de análise de comportamento, a chamada “escolha racional”, que reduz “o homem a uma máquina instrumental de perseguição do autointeresse calculando friamente tudo”.
Pode-se dizer que a linha central da crítica realizada pelos partidários dessas duas metodologias, seja Elster, seja Adam Przeworski, direcionasse no sentido de apontar os limites do holismo metodológico: a preponderância do todo ou da coletividade (as macroestruturas), sobre a parte ou a individualidade e substituí-lo por uma visão que se volta sobre os micro-fundamentos sociais ou, o que dá no mesmo, sobre os pequenos grupos, ou mesmo o indivíduo como origem e fundamento da existência social. Aparece então, em primeiro plano, a necessidade da explicação se basear na pesquisa e compreensão da racionalidade ou do sentido que os indivíduos dão as relações e a ação social com relação aos fins.
Concordamos com Adam Przeworski que entende que todas as teorias que explicam o funcionamento da sociedade sejam elas oriundas de Marx, Durkheim ou Parsons, sendo que este buscou combinar atividade humana e estrutura em uma teoria e não se limitou ao “funcionalismo”, necessitam ser submetidas ao mesmo desafio: “fornecer os micro fundamentos para fenômenos sociais e especificamente, basear toda a teoria da sociedade nas ações dos indivíduos concebidas como orientadas para a realização de objetivos racionais”. Mesmo que a ação racional seja um elemento fundamental, o individualismo metodológico não é em principio, segundo Jon Elster, redutível ao primeiro. Em tese, e isto é importante, pode-se imaginar a construção de micro fundamentos tendo como referencial de análise a ação individual, mas não necessariamente, a ação racional. Elster dá um exemplo: na frase, “os Estados Unidos temem a União Soviética, o primeiro substantivo coletivo é objeto de redução, mas não o segundo, porque aquilo que os norte-americanos individualmente considerados temem pode muito bem ser uma nebulosa entidade coletiva (escrito em 1986)”. Segundo Elster, a função do individualismo metodológico é a de ajudar a “abrir a caixa preta” e mostrar como funcionam as suas “engrenagens internas”. Isto é, a dedução a partir das macro-estruturas não é válida, pois os mecanismos causais da ação social ficam ocultos e o nível de explicação do(s) motivo(s) da ocorrência de determinado(s) evento(s) fica bastante reduzido.
Além disso, argumenta que “a racionalidade instrumental, a escolha de meios adequados aos interesses egoístas, é mais um mecanismo que explica as razões da escolha e da ação do homem”. Elster estuda um amplo conjunto de mecanismos, que ele divide entre aqueles que explicam as ações individuais e aqueles que explicam a interação social entre os indivíduos; evidentemente, os segundos são mais complexos que os primeiros e os pressupõem. Entre os mecanismos da ação, chama a atenção para dois, em especial: a) as emoções e paixões que nos impelem impulsivamente, e, b) as normas sociais, leis que nós obedecemos (e queremos que os outros obedeçam) voluntariamente, sem uso de coerção, e, portanto, formas de conduta compulsória.
Entre as “interações sociais”, chama a atenção ainda, em especial, para as consequências “não intencionais” de um comportamento, desde a sua progênie quer em Max Weber e ipso facto em Charles Wright Mills, enquanto que explicam muito bem os mecanismos de “ação coletiva”, uma forma de interação cooperativa entre todos os indivíduos de um grupo (como partidos políticos), e as instituições, mecanismos de imposição de regras compulsórias, utilizando inventivos positivos ou coerções para regular o comportamento do indivíduo, como por exemplo: Estado, empresas, exército, judiciário, etc. Enfim, ele analisa a mudança social de várias esferas da vida social, da inovação tecnológica às revoluções políticas. É muito claro e conciso, igualmente ilustrando os mecanismos com exemplos hipotéticos, históricos e literários, demonstrando que sabe muito bem do que está falando, e estabelecendo bases sólidas para as ciências sociais, idade, barrando interesses e posições particulares.
No sentido etnobiográfico, para fazermos referência à questão da diversidade cultural, se já não é um truísmo, Jon Elster “sucedeu” Pierre Bourdieu no Collége de France (1982-2001), que por sua vez havia “sucedido” Claude Lévi-Strauss e a cadeira de Antropologia Social (1959-1982). Na instituição, não há a prática de “ocupar a vaga de”, como no Brasil, já que se permite que sejam criadas outras cadeiras conforme a orientação e as pesquisas do novo titular. De toda maneira, nada mais diferente do que os interesses desse filósofo social norueguês (que foi orientando de Raymond Aron e escreveu uma conhecida tese sobre Marx na Sorbonne, cf. edição 1989) em relação ao primeiro e ao segundo dessa linhagem que tem em Marcel Mauss e na cadeira de Sociologia (1931-1942) sua origem, por assim dizer.
Como é sabido, a história sem solução de continuidade do comunismo, enquanto movimento social moderno, tem início com a corrente de esquerda da Revolução Francesa. Uma linha direta descendente liga a “conspiração dos iguais” de Babeuf, através de Felipe Buonarotti, às associações revolucionárias de Blanqui dos anos 30; e essas, por sua vez, se ligam – através da Liga dos justos, formada pelos exilados alemães inspirada por eles, – e que depois se tornará Liga dos Comunistas, a Marx e Engels, que redigiram sob encomenda da Liga, o Manifesto do Partido Comunista. Portanto, é natural que a projetada “Biblioteca” de Marx e Engels, de 1845, devesse iniciar com dois ramos da literatura “socialista”: Babeuf e Buonarotti, seguidos por Morely e Mably, que representavam a ala abertamente comunista, seguidos pelos críticos de esquerda da igualdade da Revolução Francesa e pelos “raivosos”: o Cercle Social, Hébert, Jacques Roux, Leclerc, para ficarmos nestes exemplos.
Todavia, o interesse teórico do que Engels definiria como “um instrumento ascético que se inspirava em Esparta”, não era muito grande. E tão pouco os escritores de 1830 e 40, enquanto teóricos, parecem ter impressionado favoravelmente Marx e Engels. Aliás, Marx afirmou que – precisamente por causa do primitivismo e da unilateralidade de seus primeiros escritos teóricos – “não foi por acaso que o comunismo viu surgir diante de si outras doutrinas socialistas, como as de Fourier, Proudhon, etc.; foi por necessidade”. Mesmo tendo lido os seus escritos, inclusive os de figuras relativamente menores, como Lahautière (1813-1882) e Pillot (1808-1877), Marx devia pouco à análise social dos mesmos, que consistia, sobretudo, na formulação da luta de classe como luta entre os “proletários” e os seus exploradores capitalistas.
Para sermos breves, lembramos que o comunismo babouvista e neobabouvista foi importante por dois motivos. Em primeiro lugar, ao contrário da maior parte das teorias socialistas utópicas, estava empenhado a fundo na atividade política, e, portanto, não representava apenas uma teoria revolucionária, mas também uma doutrina (embora limitada) da práxis política, da organização, da estratégia e da tática. Seus principais representantes nos anos 1830 – Laponneraye (1808-1849), Lahautière, Dézamy, Pillot e, sobretudo, Blanqui – eram ativos revolucionários. Isso, juntamente com o nexo entre eles e a Revolução Francesa (que Marx estudou a fundo), tornava-os extremamente importantes para o desenvolvimento de seu pensamento político. Em segundo lugar, mesmo se os escritores comunistas eram em sua maioria intelectuais marginais, o movimento comunista dos anos 1830 exerceu uma evidente atração sobre os trabalhadores. Além disso, se Lorenz von Stein destacou esse fato, ele não deixou de impressionar também Marx e Engels; e Engels, mais tarde, recordou o caráter proletário do movimento comunista dos anos 1840, distinguindo-o do caráter burguês de quase todo o socialismo utópico. Ipso facto, “desse movimento francês, – que adotou o nome de ´comunista` por volta de 1840, – os comunistas alemães, inclusive Marx e Engels, adotaram o nome da própria doutrina” (cf. Hobsbawm, 1980: 41).

"Um ser humano sofre de algum tipo de falha,
se lhe falta uma característica que é tida
como “especificamente humana”.
Supondo-se, por exemplo, que a espontaneidade
é um objetivo que todo ser deve alcançar,
então sofre de uma falha o ser que
não consegue exteriorizar-se bem e
é totalmente não espontâneo,
falha esta que pode ser percebida
como uma neurose."

Fora de dúvida que não podemos perder de vista, Stuttgart como a última morada da Internacional Comunista, pois a moção sobre o militarismo e os conflitos internacionais votada no Congresso da Internacional em Stuttgart (16-24 de agosto de 1907), do ponto de vista da democracia socialista, será constantemente invocada pelos socialistas como testemunho de sua vontade coletiva de opor-se à guerra; depois, pelos bolcheviques e por seus aliados, como prova, ao contrário, da traição da Segunda Internacional. Portanto, é possível considerar o Congresso de Stuttgart, ponto culminante da vida da Segunda Internacional, como um observatório privilegiado para examinar o modo pelo qual esta organização respondeu, historicamente, entre 1905 e 1910, aos desafios do militarismo, do nacionalismo e do imperialismo, como vimos em termos de “vontade coletiva”, ou “escolha racional”, como vemos na pena dos autores contemporâneos sobre este tema.
O autor do duplo atentado na Noruega, Anders Behring Breivik, norueguês de 32 anos, preparou com muita antecedência a operação que resultou na morte de pelo menos 92 pessoas, fazendo 97 feridos e um número indeterminado de desaparecidos, segundo o mais recente e ainda provisório número divulgado pela polícia, onde ele afirma que qualificou seu ato de “cruel, mas necessário”, tinha colocado na rede mundial de computadores-internet, um manifesto de 1,5 mil páginas chamando à violência contra muçulmanos e comunistas. Detido após o ataque ao acampamento de férias da ilha de Utoya postou um largo documento intitulado: “2083 A European Declaration of Independence”, em inglês, em que entre outras coisas declarava a “guerra de sangue” contra imigrantes e marxistas, de acordo com a agência de notícias NTB, onde o assassino afirma: “Acho que é o último texto que vou escrever. Hoje é sexta-feira, 22 de julho, 12h51”, terminava o manifesto.
Duas horas e meia mais tarde, explodiu a bomba no complexo governamental de Oslo, em que morreram 7 pessoas, aos quais seguiu o massacre da ilha Utoya, com outras 85 vítimas fatais. Segundo explicou seu advogado, Geir Lippestad, conhecido por ter defendido famosos neonazistas, o assassino declarou à polícia que o massacre que perpetrou era “cruel, mas necessário”. O norueguês é ligado a grupos ultradireitistas, fundamentalistas cristãos e islamófobos e reconheceu perante as forças de segurança que esteve por trás da tragédia da ilha de Utoya, na qual morreram baleadas 85 pessoas, em sua maioria adolescente.
Assim o explicou seu advogado, Geir Lippestad, segundo informação do canal de televisão independente da Noruega, TV 2, na qual apontou que o assassino declarou perante a polícia durante horas: “Ele explicou a seriedade do assunto, a incrível amplitude de feridos e mortos. Sua reação foi assumir que era cruel executar esses assassinatos, mas na sua opinião “isto era necessário”, disse Lippestad, confirmando o nome do assassino, um extremo que até o momento só a imprensa local tinha feito. Acrescentou que Anders Behring Breivik não negou nada do que fez e se prestou a colaborar com a investigação, para “fornecer evidências”, assim como o motivo que o levou a perpetrar o massacre de Oslo.
Um ser humano sofre de algum tipo de falha, se lhe falta uma característica que é tida como “especificamente humana”. Supondo-se, por exemplo, que a espontaneidade é um objetivo que todo ser deve alcançar, então sofre de uma falha o ser que não consegue exteriorizar-se bem e é totalmente não espontâneo, falha esta que pode ser percebida como uma neurose. O termo neurose, do grego neuron (nervo) e osis (condição doente ou anormal), foi criado pelo médico escocês William Cullen em 1787 para indicar “desordens de sentidos e movimento” causadas por “efeitos gerais do sistema nervoso”. Na psicologia moderna, é sinônimo de psiconeurose ou distúrbio neurótico e se refere a qualquer transtorno mental que, embora cause tensão, “não interfere com o pensamento racional ou com a capacidade funcional da pessoa”. Essa é uma diferença importante em relação à psicose, desordem mais severa. Como é possível promover ou reprimir certas necessidades básicas humanas, é da mesma maneira possível que certas falhas sejam produzidas pela cultura. Agora, como a maioria dos indivíduos de uma sociedade sofre de certas imperfeições, essas são vistas como normalidade e o indivíduo as coloca inclusive como seus objetivos, para não ser um outsider, ou seja, um marginalizado.
Os atentados noruegueses são a “maior tragédia da história recente do país”, afirma Deisy Lima Ventura, professora de relações internacionais da Universidade de São Paulo: “Não há precedente para uma tragédia dessa magnitude na Noruega. Os países nórdicos não são imunes a atentados, como já houve em Estocolmo, na Suécia quando um homem detonou explosivos em um ato terrorista frustrado, em dezembro de 2010, mas nada foi tão grande como agora”. A especialista chama a atenção para diferenças entre os massacres realizados por indivíduos de forma isolada, em escolas ou locais públicos como em Realengo (RJ) e Virgínia Tech (EUA), e a chacina ocorrida na Noruega. Há características próximas, como a de serem atentados motivados por pessoas que aparentemente não se encaixam na vida em sociedade. Mas o massacre norueguês tem um fator político que não existiu na chacina de Realengo, por exemplo. O atentado teve a intenção de eliminar o primeiro-ministro da Noruega, Jens Stoltenberg, afirma Deisy Ventura. Ela recorda que Stoltenberg era aguardado pelos jovens do Partido Trabalhista um dia após o atentado.
Além da chacina causada por Andres Breivik – ele chegou disfarçado de policial ao acampamento da juventude e disparou contra as vítimas com um fuzil -, a explosão de um carro-bomba em Oslo, no mesmo dia, diante do edifício-sede do governo do país, deixou outras sete pessoas mortas. O primeiro-ministro estava no prédio no momento das explosões. Acredito que em breve saberemos se ele (o assassino) Andres Breivik, agiu sozinho ou com ajuda de alguém, mas seja como for, há um fator político claro nos atentados. Em um país que é tido como referência de democracia, com o maior IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) do mundo, 0,983 em uma escala que vai de 0 a 1, e com tradição de pacifismo, o massacre faz soar o sinal de alerta com relação às atividades da extrema-direita, afirma a especialista.
Os partidos e grupos de centro-direita na Europa estão sendo “contaminados” com posições extremistas nos últimos anos, ressalta Deisy Ventura, que fez doutorado em Direito Internacional pela Université Panthéon-Sorbonne, em Paris. Existe uma irradiação destas ideias extremistas e xenófobas entre políticos e grupos que não são historicamente radicais. Políticos franceses de direita recentemente desqualificaram a candidata à presidência pelo Partido Verde, Eva Joly, por ela ser uma estrangeira naturalizada no país. Ela não teria a “cultura tradicional da França” e por isso está sofrendo preconceito, aponta a professora da Universidade de São Paulo – USP.

Bibliografia geral consultada:
http://www.interaksyon.com/article/9153/norway-did-not-see-far-right-as-serious-threat-to-society; http://noticias.r7.com/internacional/noticias/massacre-da-noruega-e-maior-do-que-soma-de-tres-chacinas-nos-eua-e-no-brasil-20110724.html; HOBSBAWM, Eric J., “A literatura socialista e comunista”. In: História do Marxismo – 1 – O Marxismo no tempo de Marx. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, pp. 40 e ss.; Idem, “Stuttgart: a última unanimidade da Internacional”. In: História do Marxismo – O Marxismo na Época da Segunda Internacional (Terceira Parte). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, pp. 300 e ss.; ANDERSON, Perry, A Crise do Marxismo – Introdução a um debate contemporâneo. 1ª edição. São Paulo: Brasiliense, 1985; CONTI, Mário Sérgio, Coluna: Crítica Radical – “A Crise da Crise do Marxismo”, de Perry Anderson; Brasiliense, 125 páginas. Revista Veja, 28 de novembro de 1984; OLSHAKER, Mark & DOUGLAS, John, Mentes Criminosas & Crimes Assustadores – De Jack, o Estripador a JonBenet Ramsey…Rio de Janeiro: Ediouro, 2002; BRAGA, Ubiracy de Souza, “Serial Killers brasileiros: origem e significado da traigoidia”. http://espacoacademico.wirdpress.com/2011/04/13; Idem, “Massacre de Eldorado dos Carajás: 15 anos de impunidade”. Disponível em: http://alainet.org – ALAI – América Latina em Movimiento, 2011.05.01; ELSTER, Jon, Marx, hoje. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989; DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. São Paulo: Perspectiva, 1971; Idem, Positions. Paris: Editións de Minuit, 1972a; Idem, Dissémination. Paris: Éditions du Seuil, 1972b; Idem, Gramatologia. São Paulo: Perspectiva, 1973; Idem, Papel-máquina. São Paulo: Estação liberdade, 2004; KIERKEGAARD, Soren Aabye, O conceito de ironia: constantemente referido a Sócrates. 3ª edição. Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2006; ANDERSON, Perry, A Crise da Crise do Marxismo. Introdução a um debate contemporâneo. 2ª edição. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985; DOSSE, François. História do estruturalismo 2: O canto do cisne. São Paulo: Editora Ensaio, 1994; FREUD, Sigmund, Obras Completas. Madrid: Editorial Biblioteca Neuva, 1972, 3 Volumes; FOUCAULT, Michel, Arqueologia do Saber. Petrópolis (RJ): Vozes, 1971; Idem, El Orden del Discurso. Barcelona: Tusquets, 1973; Idem, “Genealogia e Poder”. In: Microfísica do Poder. 4ª edição. Rio de Janeiro: Graal, 1984; ARENDT, Hannah, Eichmann em Jerusalém. São Paulo: Companhia das Letras, 1999: Idem, A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 2001, entre outros.
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* UBIRACY DE SOUZA BRAGA é Sociólogo (UFF), cientista político (UFRJ), doutor em ciências junto à Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP). Professor Associado da Coordenação do curso de Ciências Sociais da Universidade Estadual do Ceará (UECE).
Fonte: Posted: 30/07/2011 by Revista Espaço Acadêmico in colaborador(a), política internacional, racismo, revolucionários

A era do preconceito

Celso Amorim*
Nesta era da internet a informação é instantânea. A desinformação também. A notícia sobre os trágicos atentados de Oslo chegou-me enquanto eu navegava pelos sites que costumo frequentar para me atualizar sobre o que ocorre no mundo. Pus-me imediatamente em busca dos detalhes. Abri a página de uma respeitada revista internacional. Além de alguns pormenores, obtive também a primeira explicação, que veria em seguida nas versões eletrônicas dos jornais brasileiros, segundo a qual o perpetrador dos atos terríveis era alguém a serviço de um movimento fundamentalista islâmico. Dois dias depois do acontecido, quando ficou claro que, na verdade, se tratava de um extremista de direita que pertenceu a movimentos neonazistas, ainda é possível encontrar, mesmo com ressalvas (porque a internet comete essas “traições”), a mesma interpretação apressada, baseada no preconceito contra muçulmanos.
No caso da revista internacional, a interpretação não se limitou a essa caracterização genérica. Deu “nome e endereço” do facínora, que seria um iraquiano curdo ligado a sunitas fanáticos, vivendo no exílio desde 1991. O articulista foi mais longe. Apontou as possíveis motivações do crime hediondo, que estariam relacionadas com a presença de tropas norueguesas no Afeganistão e com a percepção, por parte dos tais fundamentalistas, da cumplicidade da imprensa norueguesa com caricaturas ofensivas ao Profeta.
Evidentemente, tudo isso era muito plausível, à luz do ocorrido no 11 de Setembro, descartando-se as hipóteses conspiratórias sobre aquele trágico episódio. Mas era igualmente plausível a hipótese, que acabou confirmada, de que se tratasse de outro tipo de fundamentalista, do gênero “supremacista branco”. O alvo do ataque era um governo da esquerda moderada, visto como tolerante em relação a imigrantes e aberto ao diálogo com as mais diversas facções em situações conflituosas, inclusive no Oriente Médio. Para sublinhar a natureza ideológico-religiosa do ato de violência, o terrorista visou também a juventude do partido, pacificamente acampada em uma ilha.

"Bode expiatório do nosso tempo,
o fundamentalismo islâmico foi o primeiro
 acusado pelos atentados na Noruega."

Algo semelhante havia ocorrido seis anos antes do atentado contra as Torres Gêmeas, quando outro fanático havia feito explodir um prédio público na cidade de Oklahoma, nos Estados Unidos. Daquela feita, o Estado – e tudo o que ele simboliza como limitação ao indivíduo, percebido como independente e antagônico em relação à sociedade – foi o objeto da ira destruidora. Também naquela época, quando a Al-Qaeda ainda não havia ganhado notoriedade, as primeiras análises apontaram para os movimentos islâmicos.
Não ponhamos, porém, a culpa na internet. Ela apenas faz com que visões baseadas em preconceitos, que não deixam de refletir certo tipo de fundamentalismo, se espalhem mais rapidamente, com o risco de gerarem “represálias” contra o suposto inimigo. Felizmente, neste caso, a eficiente ação da polícia norueguesa impediu que isso ocorresse. Mas o risco existe de que, em outras situações, as tragédias se multipliquem, por vezes com o apoio de movimentos marginais inconsequentes, que buscam tirar partido dos eventos, assumindo responsabilidade por algo que não fizeram.
Não é possível ignorar que, no caso da invasão do Iraque, o preconceito, e não apenas a manipulação deliberada (que também existiu), estava por trás de vinculações absurdas, usadas para justificar decisões que causaram centenas de milhares de vítimas (há quem fale em 1 milhão). O suposto elo entre Saddam Hussein e o terrorismo nunca se comprovou, da mesma forma que eram falsas as alegações quanto à posse por Bagdá de armas de destruição em massa. Num primeiro momento, contudo, essas justificativas foram aceitas pela maioria da população norte-americana.
Não sejamos inocentes. Interesses econômicos e políticos, e não apenas preconceitos, motivaram a decisão de atacar o Iraque. Mas o pano de fundo de uma visão particularista do mundo, em que “diferente” se torna sinônimo de “inimigo”, ajuda a criar o caldo de cultura de que se valem os líderes para obter, das populações que governam, o indispensável apoio às suas custosas aventuras bélicas.
A Noruega não corre esse risco. Como disse o primeiro-ministro Stoltenberg, o terrorismo insano não destruirá a democracia do país nórdico, que, ademais, se tem notabilizado por importantes iniciativas em favor da paz. Aliás, é o ódio às pessoas que promovem a paz e o entendimento, além da intolerância e do fanatismo, que está na raiz desse bárbaro atentado. Infelizmente, não só o orgulho, como queria a romancista inglesa, mas também o ódio costuma ser um companheiro inseparável do preconceito.
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* Diplomata brasileiro. Colunista da revista CARTA CAPITAL.
Fonte: Carta Capital impressa, nº657 - 03 de agosto de 2011
Política Externa Brasileira

Mídias sociais: ajudam ou atrapalham?

 Ricardo Barbosa*


Como utilizar métodos empreendedores
 a fim de agregar as novas mídias sociais
ao ensino superior de modo que
contribuam para o aprendizado
Estudos e pesquisas apontam que o uso de redes sociais como Twitter, Facebook e Orkut causam efeitos colaterais preocupantes como, por exemplo, diminuir o desempenho acadêmico devido à dificuldade de concentração; isso foi identificado principalmente nos alunos do ensino superior. Foi o que o estudo feito pela Open University, da Holanda, publicado em setembro de 2010, na revista cientifica Computers in Human Behaviour apontou e que coloca à prova as teorias de que o cérebro dos jovens modernos estariam se adaptando a trabalhar com a multiplicidade de informação. Além de constatar que os jovens usuários das redes sociais precisam de mais tempo para aprender e podem cometer mais erros no processamento de dados.
Especialistas e estudiosos brasileiros também já pesquisam o assunto e em sua maioria apresentam ideias parecidas. É o caso do pesquisador do Núcleo de Ciência Cognitiva da Universidade de São Paulo (USP) Walter Lima. Para ele, a capacidade dos chamados multitaskers (aqueles que realizam mais de uma atividade ao mesmo tempo) é um mito. "A execução de diversas tarefas ao mesmo tempo causa a dispersão da atenção, que é a porta de entrada da memória. Sem atenção, não há conhecimento", ressalta Lima.
"Adaptar o método de ensino à
preferência do aluno garante sua atenção,
cria uma relação de troca e dá à instituição
um caráter cada vez mais empreendedor"

A sociedade contemporânea enfrenta o fenômeno da dispersão e da superficialidade, é o que acredita José Manuel Moran, diretor do Centro de Educação a Distância da Universidade Anhanguera-Uniderp, de São Paulo. "Nos detemos pouco em um determinado assunto. Todo mundo sabe um pouco sobre tudo, mas ninguém se aprofunda", critica. Moran identifica que a perda de foco é um problema mais amplo e pode afetar todos que entram no mundo digital. De acordo com ele, vai levar certo tempo até que possamos equilibrar essa multiplicidade de estímulos e manter a capacidade crítica.
Por outro lado é um erro e imprudência afirmar que os problemas de aprendizado dos alunos pertencem somente ao uso das redes sociais. Muitas vezes, os jovens trazem essa dificuldade de casa e sofrem com as notas baixas independentemente do tempo que dedicam ao Facebook, por exemplo. Além disso, a falta de foco não é um desafio apenas acadêmico - é uma questão que incomoda também crianças e adultos, inclusive no local de trabalho. "As novas mídias devem potencializar a informação. É lógico que as pessoas mais focadas saberão usá-las da melhor forma", pensa Eduardo Pellanda, pesquisador da PUCRS, em Porto Alegre.
Para adquirir base é preciso utilizar as teorias, estudos, pesquisas que são imprescindíveis para o aprendizado, porém de acordo com o perfil dos universitários atuais e futuros; é preciso utilizar cada vez mais formas práticas para agregar a teoria e tornar a aula algo mais interativo. É importante valer-se do uso de laboratórios e ferramentas práticas para elaboração das aulas e até mesmo o próprio conteúdo ser exposto e disponibilizado em blogs ou em grupos e comunidades de redes sociais.

"A divulgação de conteúdos relacionados
ao universo do ensino superior
nas redes sociais é a nova forma
de estudo que os universitários procuram"

Isso já é feito por alguns professores, e poderia ter um incentivo maior vindo das próprias instituições de ensino. A utilização de blogs e intensa divulgação de palestras, fóruns e eventos relacionados ao universo do ensino superior nas redes sociais, e o compartilhamento de arquivos e documentos de estudo em redes e ferramentas on-line, são as novas formas que os universitários procuram. Para cada tipo de ferramenta on-line há uma função mais indicada, e pode ajudar professores e alunos de diferentes formas, como:
         Blogs - atualmente também estão sendo usados por professores que desejam criar proximidade com os alunos, além da possibilidade de disponibilizar o conteúdo das aulas, trabalhos e provas aos alunos.
         Redes sociais - a facilidade de divulgação atraiu os usuários dessas ferramentas, e por esse motivo os professores e os próprios alunos podem interagir intensamente, participando ou sugerindo a participação de eventos voltados à área; comentando; "curtindo" no caso do Facebook; retuitando, quando se trata do Twitter; e se tornando amigo no Orkut. Diante de tantas funcionalidades, professores podem utilizar esses meios no relacionamento e orientação para com seus alunos, e o caminho inverso também é viável para os estudantes.
          Rede de compartilhamento de documentos - hoje praticamente tudo está disponível na internet. Pensando no compartilhamento de dados, elaboraram ferramentas que disponibilizam conteúdo gratuitamente, e a partir de um login criado pelo próprio usuário, é permitido compartilhar dos documentos ali contidos.
De fato, podemos identificar o problema da dispersão pelos jovens e a dificuldade de aprender, entretanto se o ensino se adaptar ao modo em que eles preferem aprender é possível driblar este problema e ainda criar uma relação de troca com seu público-alvo, oferecendo um método de ensino inovador e com diferencial imprescindível, trazendo para a instituição de ensino um caráter cada vez mais empreendedor.
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* Ricardo Barbosa é consultor em Gestão e Projetos e atual diretor executivo da Innovia Training & Consulting
Imagem da Internet

Carta aberta ao Papa Bento XVI e aos Bispos da Austrália

"Agora é a hora para que os católicos comuns se pronunciem
sobre as suas preocupações com a sua Igreja e
 para os seus pastores os ouçam".
Assim afirma a Carta Aberta dirigida ao Papa Bento XVI e
aos bispos católicos da Austrália,
 que publicamos abaixo.

Caro Papa Bento XVI e Bispos da Austrália,

Nós, os/as católicos/as abaixo-assinados da Austrália, escrevemos para vocês a respeito das nossas preocupações pela Igreja. Pedimos que vocês considerem estas questões durante a visita Ad Limina de 2011.
Como fiéis de Cristo, temos que nos pronunciar. De acordo com o Direito Canônico, temos um direito e um dever, de acordo com o nosso conhecimento, competência e posição, para manifestar aos nossos pastores nossos pontos de vista sobre questões que concernem ao bem da Igreja (C.212.2-3).
A Igreja já não inspira mais adequadamente muitas de nossas comunidades. Ela afastou muitos adultos que nasceram em famílias católicas, que frequentaram escolas católicas e que viviam uma vida sacramental. Ela se tornou desconectada e irrelevante para as vidas de muitos de nossos filhos.
Com menos padres, sua capacidade de providenciar a Eucaristia regular em nossas paróquias, especialmente nas zonas rurais, tornou-se cada vez mais limitada. Como instituição, ela ainda não encarna a visão do Concílio Vaticano II de uma Igreja verdadeiramente colegial, em que as decisões respeitam as culturas, comunidades e circunstâncias locais.
Ao contrário, ela se parece a uma instituição focada no centralismo, no legalismo e no controle, com poucas estruturas eficazes de escuta e de diálogo, e, muitas vezes, mais preocupada com a sua imagem e interesses institucionais do que com o espírito de Cristo.
Nossa Igreja tem sido contaminada pela injustiça e manchada por más decisões. Ainda nos recuperamos do escândalo do abuso sexual, em que a resposta inicial da Igreja foi manifestamente inadequada, e em que algumas autoridades, em suas tentativas de proteger a instituição, expuseram jovens inocentes a um grave dano.
Ficamos chocados com a falta do devido processo na forma como Dom Morris, um pastor dedicado, foi removido de sua diocese. Ficamos desanimados com a falta de consulta apropriada sobre as novas traduções ao inglês da nossa liturgia. Não podemos mais aceitar a atitude patriarcal para com as mulheres dentro da nossa Igreja e tememos que uma reivindicação expandida à infalibilidade esteja sufocando a discussão sobre muitas questões importantes. Essas questões incluem alguns ensinamentos sobre a sexualidade humana, assim como sobre as novas formas de ministério para mulheres e homens casados; sendo que este último é uma anomalia para uma Igreja comprometida com a igualdade e que acolhe ministros casados de outras tradições cristãs. Essas preocupações minam a confiança e a confidência em vocês, nossos líderes.
Queremos e rezamos por uma Igreja renovada que siga a Cristo mais de perto em todos os sentidos. Precisamos de uma Igreja comprometida com a colegialidade e subsidiariedade autênticas. Buscamos uma Igreja aberta, transparente e responsável, que respeite o devido processo, rejeite toda forma de discriminação, ouça seu povo, promova a corresponsabilidade em todas as facetas da sua missão e do seu ministério, e seja compassiva até o fim.
Pedimos uma Igreja voltada ao exterior, totalmente comprometida com a justiça, a paz, o ecumenismo e o diálogo com outras fés, e que defenda de forma inequívoca os direitos dos oprimidos e dos desfavorecidos, enquanto se volta praticamente para as suas necessidades.
Precisamos e queremos uma Igreja em que sejamos "todos um em Cristo, sem mais diferenças (...) entre homem e mulher"(Gálatas 3:28) e cujos líderes leiam bem os sinais dos tempos e os interpretem à luz do Evangelho.
Como um primeiro passo para a colegialidade e a subsidiariedade, pedimos que cada bispo diocesano convoque, para uma data próxima, um sínodo em sua diocese, nos termos do Direito Canônico (C.460-468), para discutir como a Igreja local pode ser uma testemunha mais autêntica no século XXI. Também pedimos que o Papa Bento permita um retorno a um processo mais responsável e consultivo para a nomeação de bispos, dando aos sacerdotes e ao povo uma voz real, como era a prática da Igreja primitiva. Isso poderia começar com a nomeação do próximo bispo de Toowoomba.
Para todos nós, Jesus é o caminho, a verdade e a vida. Como Povo de Deus e seus irmãos e irmãs em Cristo, que, juntos, buscam o Reino de Deus, rezamos para que o Espírito guie a todos nós para cada vez mais perto de Jesus na crítica tarefa da renovação.

Católicos/as da Austrália
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O Catholics for Renewal [Católicos para a renovação], um grupo comunitário de base recém-formado que preparou a Carta Aberta, indica que, de acordo com o Direito Canônico, todos os fiéis de Cristo têm o direito e o dever de dar voz às suas preocupações pelo bem da Igreja.

O texto foi publicado no sítio Catholica, 08-07-2011.
A tradução é de Moisés Sbardelotto
Fonte: IHU on line, 30/07/2011
Imagem da Internet

A utopia da calça desbotada

LUÍS AUGUSTO FISCHER* 

Inventar usos para as palavras e a moda é uma coisa.
Outra é o hábito da tecnocracia de rebatizar tudo só porque quer

Ainda hoje em dia não consigo deixar de me espantar ao ver calças jeans que já vêm desbotadas (as que já vêm rasgadas não me entram na cabeça, ponto). Não que não entenda a estranha beleza do desbotamento: eu também sou filho da geração hippie, que insiste em achar estranho vestir-se como nossos pais nascidos nos anos 30, calça de escritório e aquela coisa toda. Eu também gosto do prazer íntimo, trivial que seja, de me sentir um pouco fora do alcance da sedução da mercadoria.
A história de usar calça jeans desbotada: até os anos 50, quem usava roupa jeans eram os operários, os mineiros, os trabalhadores braçais, para quem, aliás, foi inventada a roupa com aquele tecido (Antônio Conselheiro tinha roupa de jeans, atesta Euclides da Cunha). Quem usava eram os de baixo, os perdedores. Foi então que a contracultura encontrou naquelas roupas marcadas pelo uso um símbolo: usar aquela roupa era uma forma de engajamento pessoal na lógica anticapitalista ou, mais amenamente, anticonsumista.
Roqueiros daqueles anos inauguraram o gesto que ainda hoje se encontra em bandas iniciantes: vestir-se de modo despojado, ativamente despojado, pegando peças antigas e desusadas e botando em cena, no palco – roupa da vó, camisa do tio, chapéu de criança, tudo misturado com o propósito de mostrar que não está nem aí para o bom-mocismo. Em seguida entraram na rotina essas roupas e atitudes, porque o hippismo deixou de ser um modo de vida radical para virar um estilo entre outros. Exatamente como ocorreu com a vanguarda artística, que nos anos 60 deixou de representar perigo, tornando-se uma variante da moda.

A indústria da contestação

Quem vivia na periferia, como nós, brasileiros, logo percebeu que, mesmo desejando, era difícil acompanhar a nova onda das calças jeans desbotadas. Aqui, a equivalente roupa de trabalhador braçal era feita com um tecido que não desbotava, embora fosse também grosseiro. Conseguir uma calça com jeans desbotável era um serviço considerável: ou se comprava de um contrabandista (podia ser de Montevidéu), ou se tinha algum parente na Varig. Eram eles que podiam nos levar à modernidade.
As novas gerações não imaginam as reclamações das mães, quando passaram a receber pedidos dos filhos para que tentassem desbotar as calças de brim (uma marca famosa no Brasil era o Brim Coringa). Como assim, desbotar de propósito? Sim, e mais: os filhos abominavam que as calças viessem com o friso, o vinco, que era, até então, uma regra para as calças masculinas.
Quem tem mais de 45 anos vai lembrar de uma canção que fez furor, em meados dos anos 70, como propaganda de uma calça marca US Top, que representou um passo na direção dos jeans que desbotavam como as norte-americanas. A letra (de Sérgio Mineiro e Beto Ruschel, como informa o Google) dizia assim: “Liberdade é uma calça velha / Azul e desbotada / Que você pode usar / Do jeito que quiser / Não usa quem não quer / US Top / Desbote e perca o vinco / Denin Índigo Blue / US Top / Seu jeito de viver / Não usa quem não quer / US Top / Desbota e perde o vinco.”
Viu ali? As virtudes salientadas eram o oposto do que até então qualquer pessoa considerava certo – pois as novas calças desbotavam e perdiam o vinco, e isso era bom pela primeira vez em mais de século. Usá-las era o mesmo que ser livre em público, na opinião da canção e de todos os jovens.
Ao mesmo tempo, era o fim do conteúdo anticonsumista: agora tudo era planejado para parecer gasto. De lambuja, entrava no circuito do consumo trivial o conceito de liberdade, igualado sem pudor à posse de uma calça comprável ali na esquina. Liberdade que, para a esquerda, tinha significado político preciso: a derrubada da ditadura militar, a reconquista de eleições livres e da anistia, a convocação de uma constituinte.

E o abismo de gerações?

Agora se usa ou não se usa jeans desbotados, sem qualquer conteúdo óbvio, nem para reivindicar liberdade, nem para afirmar seu contrário. Olhando com otimismo, estamos com maior liberdade de escolha, o que é bom; com pessimismo, perdemos uma forma de contestação.
Resulta que as gerações mais novas, quando chega a hora de mostrar a cara, precisam recorrer a outras formas de manifestação. OK, ainda podem tentar usar roupa velha como desfeita contra o comportamento adestrado; mas é tão vasta a liberdade de vestimenta que a coisa fica difícil. (Os leitores fiéis a Adorno, bem nessa hora, identificam aqui o que o filósofo chamou de “sociedade administrada”, que não permite ação livre em nenhuma esfera: tudo que o indivíduo acha que é novidade ou afronta, é já produto à venda.)
Daqui a cem anos vai ser fácil dizer que a moda do jeans desbotado e o triunfo do rock’n’roll (mais a pílula anticoncepcional e a televisão via satélite) tornaram a todos nós, os cidadãos integrados ao consumo, contemporâneos uns dos outros, quase não importando a idade. Não acabaram os temperamentos agressivos, regressivos, conservadores, contestadores, é claro; o que acabou foi o que nos anos 60 se chamou de “abismo de gerações”.

Tachões no eixo


Certo, a língua tem usos novos a cada tanto: chega uma nova geração e manda brasa, inventando metáforas, convertendo significados velhos em outra coisa, remexendo em palavras desusadas para repô-las em circulação em novos contextos. Nada tenho contra essa mudança constante.
Mas bem outra coisa é o caso da linguagem da burocracia, ou melhor, da tecnocracia, que volta e meia olha para este pobre mundo e resolve rebatizar as coisas só porque quer, impondo relações absurdas entre palavras e sentidos. Fico particularmente irritado quando se trata de uso público compulsório. Já dou um exemplo: poucos anos atrás começou a aparecer, nas estradas, uma placa com os seguintes dizeres – “Cuidado: tachões no eixo”. Lembro bem da cena em que pela primeira vez vi esse horror, eu indo a Lajeado para dar uma palestra. E fiquei sinceramente sem entender: tachões? Eixo?
Mas qual eixo? O da Terra? Qual outro, então? E tachão? No Houaiss, tachão é apenas uma grande mancha ou nódoa. Na minha memória pessoal repousa outro sentido possível, o de grande tacho, como aquele que minha avó usava para fazer chimia, na mesma Lajeado.
Até hoje, de fato, não sei direito o que significa o tachão. Mas suspeito que se trata daqueles pequenos cocorutos plantados na faixa central da estrada, para alertar eloquentemente o motorista de que ali não dá pra ultrapassar. Certo? “Tachões no eixo”, sinceramente.
Em Porto Alegre aparecem muitas. Uma é “Cuidado ao converter”. Mas o que significa converter, meus céus? Demoro um segundo e deu: se de fato era necessário cuidar, eu embatuquei e não cuidei, porque não sei qual o sentido de “converter” que estava sendo convocado naquele momento. Sim, depois, de cabeça fria, posso até ter me dado conta: “converter” é como os tecnocratas do trânsito nomeiam o que cem por cento dos motoristas chamam de “dobrar”.
E pintou uma nova. Em certas sinaleiras (que os mesmos tecnocratas, em aliança com os paulistas, chamam de semáforos), há agora uma placa lá em cima com a seguinte frase: “Semáforo atuado pelo tráfego”. Depois anuncia que há sensores na pista. Não existe, em português decente, esse uso para o verbo atuar, em que uma coisa é atuada por outra. O máximo que consigo pensar é num ator ou intérprete, que pode atuar por outro – vai que o segundo ficou doente, sabe como é.
O que o tecnocrata quer dizer, neste caso, é que a sinaleira é comandada, é ativada, é regida pelo trânsito, pelos veículos que por ali passam. “Atuada” eu vou te dizer o que é.
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* Escritor. Ensaista. Prof. Universitário. Cronista da ZH.
Fonte: ZH on line, 30/07/201
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