sábado, 30 de julho de 2011

A utopia da calça desbotada

LUÍS AUGUSTO FISCHER* 

Inventar usos para as palavras e a moda é uma coisa.
Outra é o hábito da tecnocracia de rebatizar tudo só porque quer

Ainda hoje em dia não consigo deixar de me espantar ao ver calças jeans que já vêm desbotadas (as que já vêm rasgadas não me entram na cabeça, ponto). Não que não entenda a estranha beleza do desbotamento: eu também sou filho da geração hippie, que insiste em achar estranho vestir-se como nossos pais nascidos nos anos 30, calça de escritório e aquela coisa toda. Eu também gosto do prazer íntimo, trivial que seja, de me sentir um pouco fora do alcance da sedução da mercadoria.
A história de usar calça jeans desbotada: até os anos 50, quem usava roupa jeans eram os operários, os mineiros, os trabalhadores braçais, para quem, aliás, foi inventada a roupa com aquele tecido (Antônio Conselheiro tinha roupa de jeans, atesta Euclides da Cunha). Quem usava eram os de baixo, os perdedores. Foi então que a contracultura encontrou naquelas roupas marcadas pelo uso um símbolo: usar aquela roupa era uma forma de engajamento pessoal na lógica anticapitalista ou, mais amenamente, anticonsumista.
Roqueiros daqueles anos inauguraram o gesto que ainda hoje se encontra em bandas iniciantes: vestir-se de modo despojado, ativamente despojado, pegando peças antigas e desusadas e botando em cena, no palco – roupa da vó, camisa do tio, chapéu de criança, tudo misturado com o propósito de mostrar que não está nem aí para o bom-mocismo. Em seguida entraram na rotina essas roupas e atitudes, porque o hippismo deixou de ser um modo de vida radical para virar um estilo entre outros. Exatamente como ocorreu com a vanguarda artística, que nos anos 60 deixou de representar perigo, tornando-se uma variante da moda.

A indústria da contestação

Quem vivia na periferia, como nós, brasileiros, logo percebeu que, mesmo desejando, era difícil acompanhar a nova onda das calças jeans desbotadas. Aqui, a equivalente roupa de trabalhador braçal era feita com um tecido que não desbotava, embora fosse também grosseiro. Conseguir uma calça com jeans desbotável era um serviço considerável: ou se comprava de um contrabandista (podia ser de Montevidéu), ou se tinha algum parente na Varig. Eram eles que podiam nos levar à modernidade.
As novas gerações não imaginam as reclamações das mães, quando passaram a receber pedidos dos filhos para que tentassem desbotar as calças de brim (uma marca famosa no Brasil era o Brim Coringa). Como assim, desbotar de propósito? Sim, e mais: os filhos abominavam que as calças viessem com o friso, o vinco, que era, até então, uma regra para as calças masculinas.
Quem tem mais de 45 anos vai lembrar de uma canção que fez furor, em meados dos anos 70, como propaganda de uma calça marca US Top, que representou um passo na direção dos jeans que desbotavam como as norte-americanas. A letra (de Sérgio Mineiro e Beto Ruschel, como informa o Google) dizia assim: “Liberdade é uma calça velha / Azul e desbotada / Que você pode usar / Do jeito que quiser / Não usa quem não quer / US Top / Desbote e perca o vinco / Denin Índigo Blue / US Top / Seu jeito de viver / Não usa quem não quer / US Top / Desbota e perde o vinco.”
Viu ali? As virtudes salientadas eram o oposto do que até então qualquer pessoa considerava certo – pois as novas calças desbotavam e perdiam o vinco, e isso era bom pela primeira vez em mais de século. Usá-las era o mesmo que ser livre em público, na opinião da canção e de todos os jovens.
Ao mesmo tempo, era o fim do conteúdo anticonsumista: agora tudo era planejado para parecer gasto. De lambuja, entrava no circuito do consumo trivial o conceito de liberdade, igualado sem pudor à posse de uma calça comprável ali na esquina. Liberdade que, para a esquerda, tinha significado político preciso: a derrubada da ditadura militar, a reconquista de eleições livres e da anistia, a convocação de uma constituinte.

E o abismo de gerações?

Agora se usa ou não se usa jeans desbotados, sem qualquer conteúdo óbvio, nem para reivindicar liberdade, nem para afirmar seu contrário. Olhando com otimismo, estamos com maior liberdade de escolha, o que é bom; com pessimismo, perdemos uma forma de contestação.
Resulta que as gerações mais novas, quando chega a hora de mostrar a cara, precisam recorrer a outras formas de manifestação. OK, ainda podem tentar usar roupa velha como desfeita contra o comportamento adestrado; mas é tão vasta a liberdade de vestimenta que a coisa fica difícil. (Os leitores fiéis a Adorno, bem nessa hora, identificam aqui o que o filósofo chamou de “sociedade administrada”, que não permite ação livre em nenhuma esfera: tudo que o indivíduo acha que é novidade ou afronta, é já produto à venda.)
Daqui a cem anos vai ser fácil dizer que a moda do jeans desbotado e o triunfo do rock’n’roll (mais a pílula anticoncepcional e a televisão via satélite) tornaram a todos nós, os cidadãos integrados ao consumo, contemporâneos uns dos outros, quase não importando a idade. Não acabaram os temperamentos agressivos, regressivos, conservadores, contestadores, é claro; o que acabou foi o que nos anos 60 se chamou de “abismo de gerações”.

Tachões no eixo


Certo, a língua tem usos novos a cada tanto: chega uma nova geração e manda brasa, inventando metáforas, convertendo significados velhos em outra coisa, remexendo em palavras desusadas para repô-las em circulação em novos contextos. Nada tenho contra essa mudança constante.
Mas bem outra coisa é o caso da linguagem da burocracia, ou melhor, da tecnocracia, que volta e meia olha para este pobre mundo e resolve rebatizar as coisas só porque quer, impondo relações absurdas entre palavras e sentidos. Fico particularmente irritado quando se trata de uso público compulsório. Já dou um exemplo: poucos anos atrás começou a aparecer, nas estradas, uma placa com os seguintes dizeres – “Cuidado: tachões no eixo”. Lembro bem da cena em que pela primeira vez vi esse horror, eu indo a Lajeado para dar uma palestra. E fiquei sinceramente sem entender: tachões? Eixo?
Mas qual eixo? O da Terra? Qual outro, então? E tachão? No Houaiss, tachão é apenas uma grande mancha ou nódoa. Na minha memória pessoal repousa outro sentido possível, o de grande tacho, como aquele que minha avó usava para fazer chimia, na mesma Lajeado.
Até hoje, de fato, não sei direito o que significa o tachão. Mas suspeito que se trata daqueles pequenos cocorutos plantados na faixa central da estrada, para alertar eloquentemente o motorista de que ali não dá pra ultrapassar. Certo? “Tachões no eixo”, sinceramente.
Em Porto Alegre aparecem muitas. Uma é “Cuidado ao converter”. Mas o que significa converter, meus céus? Demoro um segundo e deu: se de fato era necessário cuidar, eu embatuquei e não cuidei, porque não sei qual o sentido de “converter” que estava sendo convocado naquele momento. Sim, depois, de cabeça fria, posso até ter me dado conta: “converter” é como os tecnocratas do trânsito nomeiam o que cem por cento dos motoristas chamam de “dobrar”.
E pintou uma nova. Em certas sinaleiras (que os mesmos tecnocratas, em aliança com os paulistas, chamam de semáforos), há agora uma placa lá em cima com a seguinte frase: “Semáforo atuado pelo tráfego”. Depois anuncia que há sensores na pista. Não existe, em português decente, esse uso para o verbo atuar, em que uma coisa é atuada por outra. O máximo que consigo pensar é num ator ou intérprete, que pode atuar por outro – vai que o segundo ficou doente, sabe como é.
O que o tecnocrata quer dizer, neste caso, é que a sinaleira é comandada, é ativada, é regida pelo trânsito, pelos veículos que por ali passam. “Atuada” eu vou te dizer o que é.
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* Escritor. Ensaista. Prof. Universitário. Cronista da ZH.
Fonte: ZH on line, 30/07/201
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