terça-feira, 30 de abril de 2013

Antropólogo realiza observações científicas sobre o impacto da religião na vida das pessoas

"Certamente muitos fiéis lutam com comportamentos que gostariam de mudar, mas, em média, os frequentadores regulares de igrejas bebem menos, fumam menos, usam menos drogas recreativas e são menos sexualmente promíscuos
 do que os outros", 

afirma T. M. Luhrmann, professor de antropologia na Universidade de Stanford e autor do livro When God Talks Back: Understanding the American Evangelical Relationship with God ("Quando Deus responde: Entendendo a relação dos evangélicos norte-americanos com Deus", em tradução livre), em artigo publicado no The New York Times e reproduzido pelo Portal Uol, 28-04-2013.

Eis o artigo.

Uma das descobertas científicas mais impressionantes sobre religião nos últimos anos é que ir à igreja uma vez por semana faz bem. Frequentar a igreja – e no mínimo, a religiosidade – melhora o sistema imunológico e diminui a pressão arterial. Isso pode acrescentar até dois ou três anos de vida. A razão para isso não está inteiramente clara.
O apoio social é sem dúvida uma parte da história. Nas igrejas evangélicas que estudei como antropólogo, as pessoas realmente parecem cuidar umas das outras. Elas apareciam com o jantar quando os amigos estavam doentes e se sentavam com eles quando estavam tristes. A ajuda às vezes era surpreendentemente concreta. Talvez um terço dos membros da igreja pertencia  a pequenos grupos que se encontravam semanalmente para falar sobre a Bíblia e suas vidas. Uma noite, uma jovem de um grupo no qual eu tinha entrado começou a chorar. Seu dentista tinha dito que ela precisava de um procedimento de US$ 1.500, e ela não tinha o dinheiro. Para meu espanto, nosso pequeno grupo – cuja maioria era de estudantes – simplesmente cobriu os custos, com doações anônimas. Um estudo realizado na Carolina do Norte descobriu que fiéis frequentes tinham redes sociais maiores, com mais contatos, mais afeição e mais tipos de apoio social do que as pessoas que não frequentavam igrejas. E nós sabemos que o apoio social está diretamente ligado a uma saúde melhor.
O comportamento saudável é, sem dúvida, outra parte. Certamente muitos fiéis lutam com comportamentos que gostariam de mudar, mas, em média, os frequentadores regulares de igrejas bebem menos, fumam menos, usar menos drogas recreativas e são menos sexualmente promíscuos do que os outros.
Isso corresponde às minhas próprias observações. Numa igreja que eu estudei no sul da Califórnia, a história de conversão mais comum parecia ser ter encontrado Deus e nunca mais ter tomado metanfetaminas. (Uma mulher me disse que ao esquentar sua dose, ela desencadeou uma explosão no apartamento de seu pai que estourou as portas de vidro. Ela me disse: "Eu sabia que Deus estava tentando me dizer que eu estava indo pelo caminho errado.") Na igreja seguinte, lembro-me de ter ido a um grupo que ouvia uma mulher falar sobre um vício que ela não conseguia largar. Assumi que ela estava falando sobre sua própria batalha contra a metanfetamina. No fim, ela achava que lia romances demais.
No entanto, acho que pode haver outro fator. Qualquer religião demanda que você vivencie o mundo como algo mais do que é apenas material e observável. Isso não significa que Deus é imaginário, mas que, como Deus é imaterial, os que creem nele precisam usar sua imaginação para representar Deus. Para conhecer Deus numa igreja evangélica, você deve experimentar o que só pode ser imaginado como real, e você deve experimentar isso como algo bom.
Quero sugerir que esta é uma habilidade e que pode ser aprendida. Podemos chamá-la de absorção: a capacidade de se envolver em sua imaginação, de uma maneira que você goste. O que eu vi na igreja como um observador antropológico foi que as pessoas eram incentivadas a ouvir a Deus em suas mentes, mas apenas para prestar atenção às experiências mentais que estavam de acordo com o que elas considerassem ser o caráter de Deus, que elas consideram bom. Vi que as pessoas eram capazes de aprender a vivenciar Deus dessa forma, e que aquelas que eram capazes de vivenciar um Deus amoroso de forma vívida, eram mais saudáveis – pelo menos, julgando por uma escala psiquiátrica padronizada. Cada vez mais, outros estudos confirmam esta observação de que a capacidade de imaginar um Deus amoroso vividamente leva a uma saúde melhor.
Por exemplo, num estudo, quando Deus era experimentado como algo mais remoto não  amoroso, quanto mais alguém rezava, mais sofrimento psiquiátrico parecia ter; quando Deus era experimentado como próximo e íntimo, quanto mais alguém orava, menos doente ficava. Em outro estudo, numa faculdade cristã particular no sul da Califórnia, a qualidade positiva de um apego a Deus diminuiu significativamente o estresse e fez isso de forma mais eficaz do que a qualidade das relações da pessoa com outras pessoas.
Eventualmente, isso pode nos ensinar como aproveitar o efeito "placebo" – uma palavra terrível, porque sugere uma ausência de intervenção em vez da presença de um mecanismo de cura que não depende de produtos farmacêuticos nem de cirurgia. Nós não entendemos o efeito placebo, mas sabemos que é real. Ou seja, temos cada vez mais provas de que o que os antropólogos chamariam de "curas simbólicas" têm efeitos físicos reais sobre o corpo. No cerne de alguns destes efeitos misteriosos pode estar a capacidade de confiar que aquilo que só pode ser imaginado seja real, e seja bom.
Mas nem todos se beneficiam da cura simbólica. No início deste mês, o filho mais novo do famoso pastor Rick Warren se suicidou. Sabemos poucos detalhes, mas a perda nos lembra que sentir desespero quando você quer sentir o amor de Deus pode piorar a sensação de alienação. Necessitamos com urgência de mais pesquisas sobre a relação entre doença mental e religião, não só para que possamos compreender mais intimamente essa relação – as formas pelas quais elas estão ligadas e são diferentes –, mas para reduzir a vergonha daqueles que são religiosos e, no entanto, precisam buscar outros cuidados.
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Fonte: IHU on line, 30/04/2013
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Humanidade precisa do Deus que se autoesvazia, diz filósofo

O mundo de múltiplas possibilidades religiosas e conexões sincretistas que hoje se apresenta precisa dessa ideia maluca do Deus que se autoesvazia. Ela inspira cristãos a conviverem com a pluralidade e a diversidade, afirmou Charles Taylor.

"Vivemos na fronteira" das convicções religiosas e é preciso conviver num mundo plural,  admitiu o filósofo canadense, que participou de conversatório com religiosos, teólogos, jornalistas e cientistas sociais reunidos na sexta-feira, 26, no Instituto Humanitas Unisinos - IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos - Unisinos.

De adolescente confuso, na época do Concílio Vaticano II, Taylor  voltou a crer na fé católica inspirado pelas leituras dos teólogos Yves Congar e Henri de Lubac. "Hoje sou um octogenário confuso", definiu-se, entre risos da plateia. Taylor, 81 anos, biografou três tipos de cristãos.
A primeira biografia diz respeito às pessoas que não perdem a fé, vêm de uma família cristã e creem assim como seus avós e pais acreditaram na mensagem evangélica. No segundo grupo estão aqueles que ainda creem, enquanto o terceiro grupo passou por um hiato, mas voltou a crer.

Taylor frisou a distinção de "ainda crer" e "crer novamente". Cristãos do terceiro grupo descobriram nova caminhada, uma nova maneira de vivenciar a fé, diferente daquela professada por seus antepassados, e se entendem envolvidos numa busca constante.

Cristãos do primeiro grupo sentem-se ameaçados pelo processo de secularização e assumem uma postura defensiva e não entendem esse mundo de múltiplas possibilidades e conexões.

"É um erro pastoral agir dessa forma. Devemos conviver com esse tipo de pluralismo", defendeu. O filósofo canadense aceita que as novas mídias ajudam a construir um mundo secular, mas elas apenas incrementam a sociabilidade difusa, não são cruciais e responsáveis pela constituição de uma nova ambiência que transforma a religião.
As novas tecnologias que marcam a sociedade da informação intensificam o que já vinha acontecendo, disse. A busca difusa teve início na sociedade protestante dos Estados Unidos. Pessoas buscavam respostas às suas perguntas fora dos limites do cristianismo, no budismo, no hinduísmo, "o que vem num crescendo na nossa época", admitiu.

Ele "detestaria" ser papa diante de decisões importantes, como adoção do ministério feminino na Igreja Católica. "Nossos netos e bisnetos vão olhar para trás e perguntar - 'o quê, mulheres não podiam ser ministras?' A gente não pode ficar furioso e encarar isso com raiva", admoestou, mas defendeu: "É preciso romper o vínculo entre sacerdócio e gênero."

Taylor acredita que o cristianismo ainda tem um papel relevante na sociedade, mesmo que cristãos não saibam bem como conviver com a diversidade. O mundo moderno, disse, pode ser tudo, menos relativista. "Há malucos fundamentalistas por todo lado. Quando a Igreja fala a partir do Evangelho, ela sempre cativa pessoas", afirmou.
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A reportagem é de Edelberto Behs e publicada pela Agência Latino-Americana e Caribenha de Comunicação - ALC, 29-04-2013.
Fonte: IHU on line, 30/04/2013

“A Igreja caminha para o celibato opcional”, afirma Leonardo Boff


“Viemos de um inverno tenebroso e muito forte. Agora, chega a primavera”. O brasileiro Leonardo Boff (foto), uma das principais referências da Teologia da Libertação, está mais do que entusiasmado com o papa Francisco, a quem define “um pastor próximo do povo, que não vem como um professor para ditar doutrinas, mas para animar a fé”.

Não espera grandes mudanças doutrinais, mas está convencido de que Francisco desempenhará “um novo estilo” no exercício do poder, baseado na caridade. Não governará com o direito canônico na mão e assumirá o desafio de resgatar “a credibilidade perdida”.




“Irá enfatizar muito mais a dimensão de uma Igreja pobre, simples, despojada do poder, do que uma renovação na doutrina”, considerou Boff, de 74 anos, que chegou a Buenos Aires para apresentar o livro “Las cartas de Clelia e Jerónimo Podestá”, que resgata o pensamento do casal. Podsestá, foi bispo de Avellaneda e casou com Clelia. O livro publica a correspondência de ambos com diferentes figuras da Igreja, da política e das organizações sociais. Nele, inclui-se a correspondência que Clelia Luro manteve com Jorge Bergoglio.

“O livro reflete o que será o futuro da Igreja, que caminha para uma abertura, abrindo mão da lei do celibato como uma imposição e a deixando como uma opção”, precisou o teólogo brasileiro, em diálogo com o jornal “La Nación”.

A entrevista é de Mariano de Vedia, publicada no sítio Religión Digital, 28-04-2013. A tradução é do Cepat.

Confira a entrevista.

Essa abertura acontecerá em breve?
Não sabemos o tempo e o momento. Depende da cabeça da Igreja, que deve ter a coragem de romper toda uma tradição. Possivelmente, sejam esperados conflitos, mas não abrirá frentes novas. O primeiro grande desafio é a reforma da Cúria, resgatar a credibilidade da Igreja e lhe conferir um rosto aceitável para o homem moderno, que volte a ser um lar espiritual. Nesse momento, não é. É um campo de tensões, de rupturas, de perseguição de teólogos. Isto irá mudar completamente.

Ao que atribui essas tensões?
Aos últimos dois papas, que interpretaram o Concílio Vaticano II a partir do Vaticano I, no qual a figura do Papa é a única central, infalível. Esvaziaram todo o novo que surgiu no Vaticano II: a Igreja em diálogo com o mundo moderno, a colegialidade, o diálogo com outras religiões. Tudo isso foi posto sob suspeita.

Francisco poderá reverter essa concepção?
Não assumirá apenas o Vaticano II, ele irá avançar. Já deu sinais. Primeiro, na Cúria. Será uma lição para os bispos e cardeais que sempre renderam obediência ao Papa. Que eles agora o imitem, que sejam simples, que derrubem todos os símbolos de poder. Avançará na colegialidade no governo da Igreja, onde o Papa será o articulador, mas não estará só. O primeiro sinal foi a criação de uma equipe de oito cardeais para que o ajude a governar.

O setor conservador colocará pedras no caminho?
Tenho a esperança de que o Papa abra a discussão para avançar numa pastoral da Igreja que vá ao encontro das pessoas. Para Francisco não é tanto a doutrina que lhe interessa, mas as pessoas. Não irá mudar muito em assuntos doutrinais, mas, sim, em termos pastorais. Irá tratar bem as pessoas. Para que não se sintam distanciadas da Igreja, mas parte dela.

O peso da doutrina não será tão determinante?
Será claramente um pastor. E deixará que os teólogos façam teologia. A competência do Papa é testemunhar a fé e a esperança. Ratzinger governou competindo com os teólogos, escrevendo livros. Isso cria confusão. Francisco quer ser pastor, estar no meio do povo e aplicará o que pediu aos sacerdotes: que tenham cheiro de ovelha. Para mim, Francisco não é um nome: é um projeto de Igreja.

Como explica que um papa com estas características tenha surgido de um conclave no qual os setores conservadores predominavam?
Os cardeais europeus estavam tão envergonhados e humilhados pelos crimes do Banco do Vaticano e da pedofilia, que ninguém sentia vontade de ser papa. E escolheram um do fim do mundo. Nesse contexto, emerge a figura de Bergoglio, além de seus dotes pessoais. Há nele sinais de santidade. Necessitamos de uma papa assim.

É otimista frente aos desafios que lhe esperam na Igreja?
Viemos de um inverno tenebroso e muito forte. Uma Igreja que deixou de ser uma referência de espiritualidade e se tornou uma Igreja de conservação, uma ilha do século XIII perdida dentro do século XX. Agora chega a primavera.
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Fonte: IHU on line, 30/04/2013

A ''leveza'' da fé. Cardeal comenta livro de Rubem Alves

A "leveza" autêntica é um elevar-se da alma e até mesmo do corpo para o alto, é um ascender para além do pó rumo a um horizonte mais límpido e puro.
"Eu tinha 15 anos e, com os meus pais, estava voltando para os Estados Unidos. Antes do voo, eu estava buscando um livro para acompanhar as longas horas da viagem para casa. Na banca, cheia de jornais, romances policiais e românticos, eu encontrei o livro que mudaria a minha vida definitivamente. O caixa sorriu quando eu lhe apresentei Os Irmãos Karamazov. Não é coisa de alguém de 15 anos, nem para uma leitura distraída em voos intercontinentais...".

Muitos, como eu, escancararam os olhos diante dessa confissão autobiográfica: um rapaz de 15 anos, além do mais norte-americano, que, não há um século, mas sim em 1993, faz uma viagem inteira entre a Inglaterra e os Estados Unidos fascinado por uma obra tão difícil e elevada.
 
Porém, foi desde então que Jonah Lynch, o rapaz em questão, iniciou um percurso de "desconstrução e reconstrução" que o levou não só a encontrar Deus de modo autêntico, mas também a se tornar sacerdote (atualmente, ele tem 35 anos e é reitor do seminário da Fraternidade de São Carlos, em Roma).

O livro que ele está escrevendo agora, acompanhado por um prefácio atrevido mas partícipe do comediante Paolo Cevoli, é, por um lado, um tipo de releitura pessoal dessa história que começou na banca do aeroporto de Heathrow e que chegou à meta romano e, por outro lado, é um diálogo com todos aqueles rapazes que se encontram no ponto de partida ou já se encaminharam, com resultados duvidosos e talvez negativos, pelo caminho estreito das perguntas últimas sobre o sentido com relação ao ser e ao existir.

Lá, naturalmente, o tema da fé se cruza com muitas outras questões que, nesse livro, são desvendadas, no esforço de impedir qualquer dicotomia repulsiva sua, evitando, assim, "a tentação de dividir o mundo em dois: de um lado, o mundo da ciência e da racionalidade, de outro o mundo da criação e da fé". Por isso, o subtítulo traz esta nota explicativa: "Improvisação livre sobre Deus, a música, a ciência e o amor", mas também sobre a dor, sobre a crise, sobre a morte, sobre a Igreja, sobre Cristo, sempre tocando a própria história pessoal de jovem perturbado e depois transformado, com a semente das perguntas e com muitas flores de respostas.

Depois daquele texto capital dostoievskiano, Lynch leu muitas outras coisas e, nas suas páginas, acenam as palavras de Solženicyn e Claudel, de Tolkien e de Hugo, de Eliot e de Esopo, e até mesmo de Heráclito e dos nossos Pirandello e Buzzati. Há também a doce e intensa história do barbeiro Jayber Crow do romance homônimo de Wendell Berry e do seu amor impossível e supremo por Mattie. Há a música, certamente, dos Doors, dos Moody Blues e dos Beatles, mas também Dvorvák com a sua célebre Nona Sinfonia Do Novo Mundo. Mas tudo isso incrustado de referências, se colore com a experiência pessoal ou, melhor, uma aventura possível, segundo o autor, desejável para todos, porque leva a não renunciar a nada, mas a transfigurar tudo, a "cantar todas as coisas", como diz o título.

E também é justamente intitulado Il Canto della Vita o outro livrinho que colocamos ao lado do de Lynch. Aqui nos deparamos, ao invés, com um velho filósofo, teólogo, psicanalista e poeta brasileiro, o octogenário Rubem A. Alves, o inventor do termo "teologia da libertação", duramente perseguido pelo regime militar que incumbia sobre aquele grande país na década de 1960.

De confissão protestante, Alves celebra nessas páginas, mesmo que a partir de um ângulo diferente, a alegria de crer. Ela transpira por todos os poros da pele da sua existência e pode-se entrevê-la em filigrana em cada linha sua: não é à toa que as citações são exclusivamente bíblicas, e cada pequeno capítulo termina com uma oração doce e apaixonante.

Aqui também desfilam os grandes temas do existir, do desejo à nostalgia, da ausência ao amor, da dor ao sorriso, do corpo à morte e ao além, mas eles são apresentados de um modo contemplativo por um ancião sábio que quer ser sobretudo "pastor de esperança". As poucas evocações pessoais, como a do alecrim do jardim cuja muda foi plantada pelo pai do poeta, se dissolvem no halo da fé, assim como os sinais concretos da paisagem brasileira – as mangas, as cerejas tropicais, o vermelho dos papagaios, os cantos populares, os berimbaus, instrumentos musicais que acompanham as danças, e assim por diante – se tornam símbolos do divino e sinais de confiança.

Certamente, não se silencia o ininterrupto sopro de sofrimento que sobe da terra ao céu, nem se ignora que "os militares possuem bombas para destruir dez vezes o nosso mundo", mas o apelo é para manter fixo o olhar no bem da humanidade, na beleza do cosmos, na força da ressurreição.

E, então, a invocação se torna: "Ajuda-me a exultar em tristeza da qual nasce a nostalgia pelo reino de Deus e a detestar a tristeza daqueles que só têm olhos para contemplar a si mesmos. E que nunca falte aos tristes do teu reino o doce sacramento do sorriso de Deus".

Quisemos, assim, propor desta vez dois textos "leves". Em italiano, também temos o sinônimo, que nasce da mesma etimologia, de leggero: no entanto, este último também pode remeter a algo frívolo, superficial, bobo, vão. A "leveza" autêntica, ao invés, é um elevar-se da alma e até mesmo do corpo para o alto, é um ascender para além do pó rumo a um horizonte mais límpido e puro.

Os dois livretos que apresentamos são dotados dessa leveza que, no fim, também é leggiadria [graça, beleza, elegância] (termo que tem a mesma raiz de leggero e de lieve). É aquela "sustentável leveza do ser", bem diferente da "insustentável" e atormentada "leveza" do médico Tomáš e da sua amada Tereza do célebre romance de Kundera.

Em tempos tão pesados e materialistas, como os que estamos vivendo, o canto de Lynch e de Alves pode se tornar um antídoto benéfico tanto para os jovens quanto para os adulto
  • Jonah Lynch. Egli canta ogni cosa. Turim: Lindau, 128 páginas.
  • Rubem A. Alves. Il canto della vita. Bose (Biella): Qiqajon, 102 páginas.
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 * A opinião é de Gianfranco Ravasi, cardeal presidente do Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado no jornal Il Sole 24 Ore, 28-04-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: IHU on line, 30/04/2013
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O pessimismo é mais fácil

José Tolentino Mendonça*
A tradição ocidental não deixa margens para dúvidas na ligação que faz entre sabedoria e pessimismo. Bastaria um daqueles inesquecíveis retratos de Rembrandt para nos dizer tudo: sábio é aquele que se senta na penumbra, olhando com ponderada distância para as ilusões de transparência que a luz e a existência acendem. O que não é propriamente algo que tenha mudado. Veja-se como mais facilmente o taciturno passa por sábio do que o homem alegre. E um espírito torturado e reticente arranca maior alcance e aplauso do que todos os que se esforçam por manter ativa a esperança.

Há, de facto, um erro de avaliação que leva a considerar a jovialidade do otimista como característica espontânea de caráter, que nada deve à decisão, à maturação da vontade ou à tenacidade. Aliás, o mais comum é arrumar o otimismo na ingénua estação dos verdes anos (mesmo se ele persiste fora de época) e reservar o fruto comprovado da argúcia apenas para o seu oposto. «Juventude ociosa/ por tudo iludida/ por delicadeza/ perdi minha vida» - é aviso de Rimbaud, garantem-nos. No pessimismo, pelo contrário, nada se perde, pois somos levados a adivinhar aí um coerente processo de consciência, uma abrangência de análise sobre todas as variantes, um metabolismo sagaz da pequena e da grande história.

Contudo, o que realmente experimentamos é o avesso desta experiência, já que o pessimismo é, em muitas circunstâncias, a resposta mais fácil às solicitações do tempo. Os que só vislumbram doses colossais de ciência e de humanidade no pessimismo, esquecem quanto ele pode ser conformista, parcial ou insensível. Certamente que o pessimismo desempenha uma função purgatória face às derivas, mas um mundo gerido por pessimistas talvez não nos levasse sequer a levantar âncora do porto. Importa sublinhar que otimismo não é fatalmente leviano ou infundado (e não deveria sê-lo nunca). Os otimistas autênticos não são os que desconhecem as razões que levam outros ao seu inverso, mas aqueles que dominando objetivamente o quadro do real mesmo assim o integram num projeto maior e paciente, onde os obstáculos podem constituir oportunidades.
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* José Tolentino Mendonça é teólogo, escritor.
In Página 1
Fonte:  Site de Portugal: http://www.snpcultura.org/paisagens_o_pessimismo_e_mais_facil.html
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Homens que amam

Cláudio Moreno*

Dez anos os gregos mantiveram Troia sitiada; por dez anos, dia após dia, os portões da grande cidade se abriram para que os troianos saíssem ao encontro do inimigo, guiados pela coragem exemplar de Heitor. Heitor defende Troia, mas, acima de tudo, defende uma mulher e uma criança. Sabe que o dia virá em que seus passos vão cruzar os passos de Aquiles, seu implacável oponente – mas não pensa em outra coisa senão proteger Andrômaca, por quem está disposto a morrer. E vai ser assim, sob o olhar desesperado da mulher, do pai, da mãe e de todos os troianos, que ele vai, finalmente, receber de Aquiles os golpes que o matarão.

A História nos mostra que não há nada como o amor para nos tornar corajosos diante de um perigo mortal. Esse foi, sem dúvida, o segredo do extraordinário Batalhão Sagrado de Tebas, uma tropa de elite que, para a surpresa de toda a Antiguidade, enfrentou e derrotou o temível exército espartano na batalha de Tégira. Este batalhão, também conhecido como Batalhão dos Amantes, era formado por trezentos homens – na verdade, cento e cinquenta casais de namorados, decididos, como Heitor diante dos olhos de Andrômaca, a dar sua vida para salvar a de seu amado.

No combate daquela época, o homem via a morte de frente: no lugar da destruição anônima e impiedosa dos mísseis e dos canhões, a luta era sempre corpo a corpo, na distância máxima do comprimento da lança ou do braço armado com a espada. A solidariedade entre os combatentes era o fator decisivo entre a derrota e a vitória; um soldado sabia que o seu escudo devia proteger a si e parte do corpo do companheiro a seu lado. Um dependia do outro, e todos se moviam como se fossem um só. Com homens que se amavam, lutando lado a lado, isso chegava à perfeição, permitindo, como sugeria Platão, que “um simples punhado de bravos enfrentasse o mundo inteiro”.

O Batalhão dos Amantes encontrou seu fim na batalha de Queroneia, quando enfrentou os exércitos de Filipe da Macedônia e de seu filho, o futuro Alexandre Magno. Acossados por um número muito maior de combatentes, lutaram até o último homem. Conta a lenda que Filipe ficou emocionado ao ver todos aqueles corpos juntos, e, ao saber quem eram eles, para lhes prestar a justa homenagem de um guerreiro, enterrou-os todos no mesmo lugar, onde ergueu a estátua de um gigantesco leão de mármore.

Escavações modernas encontraram 254 esqueletos, lado a lado, arranjados em sete fileiras; presume-se que os demais tenham sido feridos e capturados pelos macedônios. O que nos serve de lição é que tanto aqueles que os mataram, quanto os que desenterraram seus despojos em momento algum duvidaram que ali estavam homens como eles, capazes de morrer pela pessoa – ela ou ele, não importa – que escolheram amar.
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* Colunista da ZH
Fonte: ZH on line, 30/04/2013
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POEMA DE FLORIANO MARTINS


NOITE EM QUE UM ANIMAL FABULOSO RENASCE NO NINHO DE TUAS MÃOS

As tuas mãos tateando verbetes em minha pele.
Descobrindo onde dormia o verão. Despertando um balé profano em minhas vértebras.
…Anunciando um beijo a cada sensação de desmaio.
As tuas mãos são o meu gerúndio preferido.
À noite escuto apenas o rumor das ondas de meu mar interior.
E uma voz que reconheço ser minha deslacra outro abismo com sua gramática imprecisa:
…Eu sou tua, você me roubou, seu diabo!
Os meus mamilos se multiplicam e desarvoram a paisagem salpicada de lábios.
A sombra de tuas mãos imersa em minhas águas primordiais simula a dissolução de
…tudo quanto fui.
Eu me recupero em tuas nascentes. Como semelhante de teus sonhos.
E não vim nem mesmo para ficar. Tu me revelas a descrição de uma lenda esquecida.
Decerto a ela retornarei.
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Fonte:  http://www.blogstraquis.blog-se.com.br/blog/conteudo/home.asp?idblog=11383

segunda-feira, 29 de abril de 2013

A verruga da Sabrina

Joaquim Ferreira dos Santos*

Eu sou pelo pragmatismo Dalton Trevisan, aquele que disse “nua e louca em teus braços, qual é a mulher feia?”

As muito bonitas que me perdoem, mas a mulher feia pode ser fundamental. Ela deixa a poesia de lado, e é mais suor, determinação e foco. Quer jogo. Ela é como um atleta do Bayern de Munique. Sem o mesmo toque de bola do Messi, mas se supera quando o jogo é bola pro mato que hoje, meu gato, é final de campeonato.

Elas são assim, um dente mais separado, o nariz avantajado da Andrea Beltrão, um jeito de olhar desparagonado, às vezes triste, de manha de gata abandonada. Todas imbuídas de que precisam avançar pelos flancos e compensar com muita maldade, muita ambiguidade e pimenta nos olhos, as falhas da sua cobertura magricela.

A mulher feia dispensa o âmbar da tarde e outros beletrismos que Vinicius cantou em seu poema sobre a necessidade da mulher bem esculturada, aquela deusa cheia de saboneteiras inesperadas em que poucos de nós um dia mergulharemos. Nada contra, evidentemente, os muitos centímetros carnudos dos lábios desenhados à perfeição da Sheron Menezzes. Mas eu sou pelo pragmatismo Dalton Trevisan, aquele que disse “nua e louca em teus braços, qual é a mulher feia?”.

Eu estive outro dia com um amigo pernambucano que me falou de sua morena tropicana, na qual estava mergulhado, inebriado em todos os seus paroxismos de formosura e calor que emana do caju. À tamanha felicidade estética, eu lhe contrapus minha falta de inveja. Mostrei os segredos que iam nas fotos da branquela nariguda, o piercing realçando ainda mais a protuberância, que eu carregava como talismã no bolso da bermuda.

É preciso acima de tudo que desabroche qualquer coisa de intenso nesta em que, a princípio, num olhar descuidado, não se nota a presença clássica de uma flor, como mais adiante vai pedir o poema de Vinicius de Moraes. A feia, ou a que se apavora com o risco de ser classificada assim pelos otários estéticos, não dá a impressão que, de súbito, se veja nela uma garça pousada ou que seu rosto adquira de vez em quando essa cor só encontrável no terceiro minuto da aurora.

A feia é o carcará, o grito primal e o uivo do Allen Ginsberg. Não faz doce, corpo mole ou “aí não”. Ela pega, mata, come e, pisando nos ossos do seu homem agradecido, diz, “você sim, é que é feio”.
Eu sugiro que o programa “Superbonita”, do GNT, comemore na contramão os 60 anos do poema “Receita de Mulher” e jogue flores de plástico na passarela daquela que tem uns centímetros a mais arredondando o culote e, coitada, sofre porque foi aconselhada a extirpá-lo. Leu numa coluna que aquela medida não é a certa.

Quem vai dizer na TV que uma testa sobressaltada, os cabelos crespos em polvorosa, um prenúncio de barriga, tudo isso pode ser de encanto e real valor?

Ah, as mulheres que perdem horas diante do espelho se martirizando com celulites e, depois, outras horas tentando apagá-las com cremes milagrosos. Será que elas não leram outro discípulo de Dalton Trevisan, o cantor Leo Jaime, aquele que disse “celulite quer dizer tesão em braile”?

No encontro com o amigo celebrante da morena tropicana, que teria a cor de jambo, eu mostrei as fotos da branquela desproporcionada, um omoplata um pouco mais à frente do que deveria. Não tinha a bunda serelepe das mulatas da Plataforma. Faltava-lhe a moda do air-bag vulgar, mas maternalmente pacificador, da nova geração de louras turbinadas. Não importava. Era a mais completa tradução viva do hino do Esporte Clube Bahia, aquele do “ninguém nos vence em vibração”.

Acima de tudo, a minha feia tinha um trunfo evidente.

A Saint-Tropez já saíra da moda havia pelo menos duas décadas, mas a moça não a dispensava. A cintura baixa da calça era o portal por onde transmitia a altivez protuberante do umbigo laranja-bahia, um botão que explodia no centro de seu ser, um estupor criado sem agrotóxico, fruto nascido das mãos e do Sublime regador. Quem não quereria provar dele?

A beleza, com seus padrões rigorosos, ainda é o grande tabu enfrentado pelas mulheres. É preciso ter o cabelo liso, a bunda dura e a depilação em dia. A branquela negava a ordem desnatural dessas coisas. Impávido, colosso, seu nariz gritava “nem aí”, orgulhosamente apontando, pontiagudo, contra os ditames do in-out.

Em 2013, a nova receita de mulher é ficar fora dessas obrigações. Botar o sal ao gosto, caprichar no dendê das estrias e não parar de mexer. Sou cúmplice e súdito. Murilo Mendes, o poeta-cristão, sabia do metafísico sobrenatural, mas não era bobo. “O mundo começa ao redor dos seios de Jandira”, escreveu, erotizado.

Eu faço-lhe fé pagã, mas vou além.

O mundo começa onde você quiser. Nas dobras nunca exaltadas de uma axila, na verruga da Sabrina Sato, em algum canto do corpo da mulher que você escolher para amar, chamar de linda, consagrar como altar de orações — e em seu louvor se deixar desfalecer. 
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* Colunista do Jornal O Globo.

O futuro dos games segundo os designers das franquias 'Call of Duty' e 'Hitman'


Howe, Isaksen e Glasco, fotomontagem com visual de videogame: aposta na jogabilidade
Foto: André Mello / Editoria de Arte
Howe, Isaksen e Glasco, fotomontagem com visual de videogame: aposta 
na jogabilidade André Mello / Editoria de Arte 
 Em passagem pelo Rio, animadores contam o que esperam da próxima geração de consoles.
Chance Glasco e Tom Isaksen esperam que jogos do futuro proporcionem imersão extrema, estejam em todas as telas e surpreenderão mais pelo formato do que pelo visual.
Como os games estão ficando caros demais para produzir, inovação virá dos desenvolvedores de jogos independentes, que têm mais apetite pelo risco.
RIO — A menos de dois meses da E3, feira que marcará o nascimento de uma geração de consoles de videogame após ciclo de sete anos da atual, aficionados esperam uma revolução nos jogos. Mas artistas que ajudaram a criar alguns dos games mais populares de todos os tempos não depositam tanta expectativa no Playstation 4 nem no novo Xbox: essas máquinas não darão um salto gráfico “incrível”, meramente se igualando aos PCs mais avançados hoje, argumentam. Para esses designers, o futuro dos games é paciente: aguardará mais uma geração para dar o “start” e levar aos gamers jogos com imersão extrema, acessados pela nuvem em qualquer tela disponível e que surpreenderão mais pelo formato do que pelo visual, cuja evolução já se aproxima de um limite.

— Com a nova geração, os consoles vão finalmente chegar ao nível em que o PC já está. Por causa da distância entre as duas plataformas, games para PC têm ficado aquém das possibilidades porque são feitos também para console. Mesmo assim, a próxima geração avançará na parte gráfica, mas não será dessa vez que o salto vai ser maravilhoso. Da próxima vez, sim — prevê o dinamarquês Tom Isaksen, que trabalhou em três títulos dos games “Hitman” e esteve no Rio para o CGExtreme, evento de entretenimento digital que aconteceu no fim de semana.

Essa “próxima vez” também será aquela em que a realidade virtual vai, enfim, trocar os laboratórios pela sala de estar, permitindo que o jogador se sinta imerso no universo do game de forma inédita. Pelo menos é por isso que anseia Chance Glasco, que desenhou as armas de seis títulos da franquia mais rentável da história, “Call of Duty”, de tiro em primeira pessoa — o último game, “Black Ops 2”, vendeu US$ 1 bilhão em 15 dias.

Óculos de realidade virtual é aposta
Glasco espera que a realidade virtual das próximas décadas “seja muito diferente do que víamos nos anos 90”, quando o conceito já habitava o imaginário dos gamers. E ele é um dos poucos que sentiram o gostinho desse futuro por meio do Oculus Rift, geringonça semelhante a um capacete que exibe ao usuário o ponto de vista do personagem como se fosse o dele próprio. O aparelho estará disponível apenas para desenvolvedores a partir de julho, mas já há alguns games compatíveis com a tecnologia (veja vídeo do game “Skyrim” sendo jogado com os Oculus).

— Eu usei a versão preliminar. Ele acompanha perfeitamente sua cabeça quando você vira. É muito natural — disse o animador americano, cujo contrato o proíbe de revelar detalhes do novo “Call of Duty”, previsto para este ano e cujo nome seria “Ghosts”, segundo sugere imagem vazada no site da varejista britânica Tesco.

É o tipo de inovação que, para deslanchar, requer audácia das fabricantes de console, pois representa mudança sensível na maneira como os games são jogados. Mas é também o movimento perfeito para uma gigante habituada a revoluções, recomenda Glasco:

— Se a Nintendo resolver fazer algo interessante novamente, talvez essa seja uma boa oportunidade. O Wii foi algo muito inovador, mas não creio que o Wii U (lançado no fim do ano passado) o seja. Talvez seu sucessor aposte nisso. Já imaginou jogar “Wii Sports” em realidade virtual?

A qualidade dos gráficos vai acompanhar esses avanços, mas os designers acreditam que sua evolução esteja se aproximando de um limite. Isso não quer dizer que haja pouco o que melhorar, mas hoje já é possível criar jogos cujas imagens são tão reais quanto as de um filme. Glasco cita “Heavy Rain”, jogo de ação lançado em 2010 para PS3 que causou espanto entre gamers pela verossimilhança dos gráficos. Por isso Nathaniel Howe, diretor-criativo premiado com o Emmy, espera que os avanços no futuro virão de outra seara.

— Quando lembro do meu primeiro Nintendo, que ganhei em um Natal quando era garoto, vejo o quanto os gráficos melhoraram em 20 anos. É impressionante a evolução. Agora, não acho que os gráficos serão o desafio. Acho que o gameplay e como aumentar a imersão serão o mais importante — analisa Howe, que também trabalhou na campanha de marketing de jogos como “Red Dead Redemption”.

A era dos consoles na nuvem

Glasco e Isaksen acreditam na sobrevivência dos consoles, apesar de muitos especialistas especularem que essas máquinas aproximam-se do ocaso, conforme tornam-se ubíquos tablets e smartphones capazes de rodar jogos cada vez mais complexos. Mas os animadores admitem que a mobilidade está, de fato, transformando as plataformas tradicionais. O dinamarquês prevê um futuro em que o console estará na nuvem e “em que qualquer tela poderá funcionar como uma poderosa máquina de games”.

— Já ouvi esse papo de que os consoles vão acabar. Mas acho as pessoas estão, na verdade, questionando se continuaremos a ter uma caixa ao lado da TV. Não necessariamente. Poderemos simplesmente transmitir o sinal por meio da internet, inclusive para tablets e celulares. A caixa, o console, poderá estar em algum outro lugar, funcionando como um grande servidor remoto — disse Isaksen, que se apaixonou por uma brasileira e, há três anos, trocou a Dinamarca por Brasília.

O designer acredita que a tecnologia levará ainda uns anos para tornar-se eficiente o bastante e se popularizar, mas já iniciativas nesse sentido. Na última Consumer Electronics Show (CES), em janeiro, a Nvidia, que fabrica poderosas placas de vídeo para gamers, anunciou que lançaria este trimestre o console portátil Project Shield, que faz streaming de jogos gravados no PC para sua tela de cinco polegadas ou para TVs. Dessa forma, os gamers poderão jogar seus títulos favoritos para PC deitados no sofá ou mesmo no banheiro.

‘Estúdios deixaram de assumir riscos’

Ironicamente, o acúmulo de tantos avanços causa um problema econômico para a indústria que ameaça a inovação. Chance Glasco explica que à medida que os games ficam mais complexos, eles também ficam mais caros de produzir, exigindo mais profissionais e orçamentos multimilionários.

Um dos jogos mais caros de fazer no começo da década de 90 foi “Doom” (1993), que custou cerca de US$ 200 mil. Já “Grand Theft Auto 4”, de 2008, consumiu durante três anos e meio estimados US$ 100 milhões e uma equipe com mais de mil profissionais. Custos tão enormes como esse inibem o apetite dos estúdios por riscos, reduzindo as apostas em coisas novas.

— Há dez anos, construíamos personagens com mil polígonos. Na próxima geração de consoles, os personagens terão facilmente cem mil polígonos. O problema é que os jogos estão ficando mais caros de produzir e nós não cobramos mais por eles — diz Glasco, acrescentando que é para compensar a redução das margens de lucro que as distribuidoras passaram a vender conteúdo extra por download. —A verdade é que os estúdios não querem mais assumir riscos.

Mas de onde virão, então, as ideias que revolucionarão os games? O animador aposta no movimento dos games independentes, geralmente criados por duas ou três pessoas e muitas vezes financiados por meio de sites colaborativos como Kickstarter:

— O pessoal indie está assumindo os riscos. As grandes franquias estão aproveitando mecânicas que empresas independente desenvolveram e que já foram testadas.
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O erudito na era da informática

Juremir Machado da Silva*

Entrevistas marcantes: Eco e a leitura

Umberto Eco realmente dispensa apresentação. Em todo caso, vale dizer que ele, o sábio italiano nascido no Piemonte, em 5 de janeiro de 1932, professor de Semiologia na Universidade de Bolohna, autor do clássico Tratado de Semiótica Geral e dos best-sellers O Nome da Rosa e O Pêndulo de Foucault, foi escolhido para brilhar no Colégio da França, a prestigiosa instituição parisiense criada em 1530 e que não organiza exames e nem emite diplomas. Em resumo, existe para estimular a pesquisa pura, o ensino no grau máximo da sofisticação e coroar a carreira dos eruditos. Na aula inaugural, no dia 2 de outubro de 1992, compareceram ao tradicional rito acadêmico o poderoso ministro da Educação e Cultura da França, Jack Lang, e ilustres jornalistas culturais como Bernard Pivot. Chamado a falar durante quatro meses sobre A Procura de uma Língua Perfeita na Cultura Européia, o mestre viajou da cabala ao esperanto passando pelas reflexões de Dante, Descartes, Wilkins, Raymond Lulle, Porfírio e mais uma infinidade de filosofias, teologias, seitas e códigos secretos. Um voo absoluto no reino da fascinação intelectual. Um mergulho soberano na erudição. Um jogo de livre-associação que só poderia ser superado por um computador programado para estabelecer relações lógicas (e certamente inúteis) a partir do patrimônio cultural da humanidade. Abençoado pelo frio do outono, Eco concedeu esta entrevista. Vertiginoso, aceitou colocar tudo no devido lugar e precisou, outra vez, o papel dos meios de comunicação de massa, a função do erudito, o valor da literatura e, acima de tudo, as características da civilização da informática (segui o seu curso do primeiro ao último dia)

JMS – O senhor mescla erudição e meios de comunicação de massa com perfeição. Trata-se da mistura da cultura considerada legítima com o brilho da mídia ainda menosprezada pelos intelectuais. Como analisar o papel das imagens no mundo atual? Crise da modernidade e ameaça de uma nova barbárie ou expansão comunicacional democratizante ?
Umberto Eco. Uma pesquisa recente, publicada na Inglaterra, demonstra que hoje os jovens leem mais do que os seus pais. Conclusão: a geração da televisão e do computador é ainda encorajada a ler, mais do que em relação às gerações precedentes. Com todos os seus defeitos, é evidente que a civilização dos meios de comunicação de massa faz circular a informação, mesmo superficial, e a informação estimula a necessidade de conhecimento. Portanto, a superficialidade da mídia empurra a juventude a buscar experiências mais profundas e satisfatórias. Na década de sessenta, McLuhan podia anunciar o fim da civilização alfabética e o nascimento do poder da aldeia global. Hoje, entretanto, as telas de computador não mostram imagens, mas textos. Estamos prestes a entrar em uma nova galáxia Gutenberg. A leitura das informações informatizadas esbarra na ausência de aprofundamento, claro. Em todo caso, estou seguro, depois de três horas na frente de um computador, explode a vontade de ler um bom livro. A escrita não perdeu a guerra para a audiovisual. Ao contrário, ela está face à vitória absoluta. 

JMS – Erudito e apaixonado pela informática, o senhor associa o sábio do passado, que armazenava informações extraordinárias na memória, e o intelectual da era pós-industrial, ligado aos bancos de dados internacionais. Não o assusta, em uma espécie de ficção científica com forte tendência à realidade, a possibilidade de ser secundarizado pelo cérebro artificial? Dito de outra forma: qual é a função do intelectual ao final do século XX?
Eco – O computador é um instrumento como o eram as fichas dos intelectuais de antigamente. O erudito antigo passava incontáveis dias a pesquisar informações bibliográficas que hoje podem ser manipuladas em segundos a partir de arquivos eletrônicos. Neste sentido, o computador faz simplesmente uma parte do trabalho mecânico que os eruditos do passado eram obrigados a realizar. A fotocópia, no mesmo sentido, permite ganhar o tempo outrora dedicado à cópia dos textos. Na verdade, eu me irrito um pouco com o excesso de informação erudita produzida pelos arquivos eletrônicos. Temo que a abundância possa matar a informação relevante. Se eu vou levantar dados em uma biblioteca, trabalho um dia e adquiro o conhecimento de cerca de trinta livros, dos quais me lembrarei. Mas se aperto um botão e surgem, sobre o mesmo assunto, dez mil títulos, ficarei, em razão da quantidade, impossibilitado de reter as obras verdadeiramente importantes. Do ponto de vista da escrita, pretende-se que o computador é hemingwayniano, frases curtas e secas. Erro: ele é proustiano e favorece a repercussão de todas as contradições. Logo, em face dos novos meios, incontornáveis, os eruditos devem aprender uma nova disciplina de pesquisa. 

JMS – Em um texto de 1967, o senhor falava da guerrilha da mídia e questionava-se sobre o verdadeiro sujeito criador das ideologias ou dos costumes, modas e valores. Ainda é pertinente dissertar sobre a potência absoluta dos meios de comunicação de massa, sobretudo da televisão, ou os intelectuais de esquerda, no Brasil, por exemplo, agarram-se a uma análise esclerosada quando denunciam o poder da Rede Globo de fazer e desfazer a realidade ?
Eco – Devemos considerar, mais uma vez, os efeitos da abundância: uma só rede de televisão pode influir sobre as ideias dos telespectadores. Mas quando o mesmo telespectador é submetido a dez redes e viaja entre elas, o que ele absorve é o ruído. Neste caso, a influência da mídia anula-se em vez de crescer e a independência é favorecida. Em um plebiscito recente, na Itália, os grandes partidos e os meios de comunicação que os representavam ou contrariavam resolveram silenciar de modo a estimular a abstenção. A maioria dos italianos, contudo, compareceu às urnas e votou pelo sim. A população tinha aceitado o chamado dos meios menores e rejeitado o comando das grandes cadeias. Existem, de fato, os espaços de escolha e as margens de manobra. Eu condeno a idéia maniqueísta dos falsos intelectuais que consideram a escrita representativa do bem e a imagem como o mal. 

JMS – Poder-se-ia imaginar que os meios de comunicação de massa são detentores de poderes absolutos no Terceiro Mundo e domesticados nos países desenvolvidos?
Eco – Para o Terceiro Mundo talvez a situação seja diferente, justamente porque não há possibilidade de escolha entre diferentes mensagens de mídia. Mas é preciso não esquecer que muitos países trabalharam para aumentar o índice de alfabetização, fator positivo, e elevaram a barreira contra a homogeneização midíatica. Precisamos, o que é mais importante, parar de pensar em universos compostos apenas pelos meios de comunicação de massa. As sociedades são plurais. Nos Estados Unidos, Ross Perot comprou enormes espaços na mídia. Clinton optou pelas equipes de jovens voluntários que estabeleceram contatos corpo a corpo. Qual foi o resultado? Se os meios de comunicação de massa fossem mesmo possuidores de todo o poder, Perot teria vencido. O tecido social, felizmente, é articulado de modo plural. 

JMS – Houve o tempo do estruturalismo, da linguística, da semiótica, da semiologia e dos mestres da área, entre os quais Umberto Eco. Eram modas? Passado o período de febre, qual o balanço possível?
Eco – Sempre acontece de certas disciplinas ou correntes artísticas gerarem sua própria moda. Depois, passado o apogeu, vencida a moda, resta a pesquisa. Necessitamos julgar as investigações, não as aparências. Ultrapassamos a época em que um movimento destruía o anterior, de acordo com uma visão hegeliana da história. O que caracteriza a nossa civilização é o entrelaçamento da televisão com o cinema, a imprensa, os Beatles, Stockhausen e a literatura. Inventaram o termo pós-modernidade para o que eu prefiro chamar de poliglotismo generalizado da cultura. Em síntese, prevalece a convivência. 

JMS – O senhor escreveu romances que se transformaram em best-sellers. O Pêndulo de Foucault, paradoxalmente, é ilegível pelo menos até a página 27. Houve um projeto deliberado de construção literária hermética? O senhor buscou um estilo inacessível ?
Eco - Eu digo com frequência que o meu leitor ideal deve ganhar o prazer da leitura com esforço, como se ganha o prazer da paisagem escalando a montanha. O fato de que os meus romances, escritos a partir da violação de todas as regras do best-seller, transformem-se em fenômenos de vendagem prova que os leitores são mais exigentes do que acreditam os meios de comunicação de massa. 

JMS – O Pêndulo de Foucault é uma critica das utopias clássicas, do poder, da razão absoluta e do marxismo ? Existe uma passagem em que uma brasileira, ex-estudante de sociologia em Paris, marxista, participa de uma sessão de candomblé. Trata-se da caricatura dá queda do materialismo diante do misticismo exótico ?
Eco – O episódio brasileiro do Pêndulo é uma parábola do que se passará com os meus personagens na Europa. Sim, eu pensei na crise do imaginário de maio de 68 e nisto que se chama de retorno do sagrado da parte de uma geração em crise de identidade. Mas este retorno não foi, na maioria dos casos, uma volta a teologias ou a filosofias. Retornou-se ao sagrado massificado, produto com o selo dos mercadores do absoluto. A literatura, em todo caso, resiste. Eu passei minha vida a colecionar livros antigos e a escrever livros novos. Sinto-me mal dentro deste tempo e só posso experimentar compreendê-Io , escrevendo, para fugir ao mal-estar. 

JMS – Em vez de conflito entre cultura visual e cultura da leitura, o senhor prefere, de toda maneira, pensar em termos de integração?
Eco – O senhor falou no sucesso dos meus romances. No século XIX, certamente, eu teria conseguido um número menor de leitores, mesmo em proporção à população mundial da época. E então? Vê-se muito a televisão, constata-se a força da civilização da visão e esquece-se que há uma civilização da leitura em marcha. Ela não desapareceu. Ao contrário, expressa-se na sede de narrativas e na procura de jornais, de novelas de televisão, do cinema e dos livros. Reina o desejo da narrativa. 

JMS – Mergulhado em viagens, conferências e cursos no exterior a rotina de um erudito célebre, o senhor encontra ainda tempo para a leitura?
Eco – Eu tenho cada vez menos tempo para ler livros. O problema mais grave para um sábio na atualidade é a enorme produção de preprints, os textos, inventários de pesquisa, que chegam antes da publicação. A relação de trocas científica passa-se, agora, através desses textos, verdadeira indústria anterior às edições. Quando uma pesquisa é publicada como livro, em geral, ela já está caduca. 
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Novembro de 1992 (republicado em O pensamento do fim do século (L&PM)
* Sociólogo. Escritor. Prof. Universitário. Tradutor. Colunista do Correio do Povo
Fonte:  http://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/29/04/2013
Imagem da Internet

"Seja o primeiro, seja o mais inteligente ou trapaceie". Que lógica é esta?


A crise do capitalismo pode ser retratada sob mais de um ponto de vista. Em geral, é muito analisada a partir das grandes linhas da macroeconomia, integrada numa leitura histórica de suas causas e das consequências de decisões técnicas e burocráticas, nos mais diversos governos, pressionados pelos interesses das grandes transnacionais. E se, de repente, utilizando-se um binóculo, a crise fosse vista a partir dos indivíduos presentes dentro de uma grande corporação, permeados pelo que a ideologia capitalista tem de mais nodal? Como poderiam ser imaginados os dramas desses indivíduos? Em certa medida, é isto que o filme “Margin Call. O dia antes do fim”, do diretor J. C. Chandor, procura abordar.

Essa abordagem foi debatida no ciclo “A crise do Capitalismo no Cinema”, promovido pelo Cepat/CJ-Cias, em parceria com a Pastoral e o Curso de Economia da PUCPR, em Curitiba, além do nosso já histórico parceiro Instituto Humanitas Unisinos - IHU. Para comentar este filme, tivemos a presença do professor Gilberto Faggion (foto), integrante do IHU e do corpo docente da Unisinos

Margin Call é um drama, uma ficção que procura evidenciar a crise financeira a partir dos indivíduos, de suas decisões, de suas angústias pessoais frente ao que consideram o mais importante para suas vidas: o dinheiro, o poder e a ambição. A partir do momento em que alguns personagens percebem que a instituição financeira, na qual trabalham, caminha para a falência total, diante de uma crise insolúvel que coloca em risco seus salários exorbitantes e suas margens de lucros, escancara-se a verdadeira crise moral desses grandes executivos.

Neste sentido, o professor Faggion enfatizou o ambiente sombrio e escuro do escritório, retratado no filme, nas vésperas de sua falência. Tal cenário faz lembrar as decisões que são tomadas às escuras, onde são definidos os rumos que serão tomados, as cabeças que serão cortadas de uma grande empresa. A marca da impessoalidade, da indiferença e da frieza constroi um ambiente depressivo e triste. Na verdade, são executivos muito ricos em dinheiro, mas, ao mesmo tempo, muito pobres em humanismo.

Aos poucos, diante do cenário emergente do colapso da instituição, os mitos vão se quebrando, como na mensagem explícita daquele que está no auge da pirâmide dos mandos e desmandos: “não foi minha inteligência que me trouxe aqui”. Dentro disto, a ordem é obedecer, pois os ditames da empresa estão acima de qualquer possibilidade de fraternidade nas relações pessoais. Assim como, também, quando o risco de prejuízo nos lucros é inexorável, não há mais meritocracia que dê conta de justificar a apregoada racionalidade de uma grande corporação.

Como, então, resistir aos assédios do poder, quando apenas se exige de você um simples sim, sem questionamento? Quando está em jogo a permanência de seus privilégios e status na hierarquia de uma sociedade? É neste ponto que o professor Faggion foi categórico. Mesmo diante de tamanha pressão corrosiva, o indivíduo ainda é o responsável por sua decisão, seja ela a que for. Ser ético, neste sentido, exige dizer não para “uma vontade de potência generalizada”, muito presente neste mundo de hierarquias e ambições. 

Faggion destacou algumas máximas do filme, como os imperativos: “seja o primeiro, seja o mais inteligente ou trapaceie”. O que faz lembrar que, em momentos de crise, muitos executivos recebem bônus ainda maiores do que em outras situações. E, ainda neste contexto, da anulação do princípio ético, os prejuízos sempre se tornam públicos e os lucros privados.

Qual a concepção de ser humano por trás dessa trama? O que esperar de pessoas absorvidas por esta lógica? Como bem observou um dos participantes deste ciclo de cinema, estes grandes executivos “ao administrarem uma economia podre, apodrecem juntos”.

Enfim, não dá para ignorar a carga pessimista que este filme joga sobre os ombros das pessoas. Inclusive, no próprio debate, entre o professor Faggion e os que estavam presentes, esse ar melancólico se espraiou. Isto não quer dizer que não existem alternativas para esse modo de sociabilidade capitalista, mas apenas quer atentar que as presas do capitalismo sempre estão próximas de nosso cangote e que, num vacilo qualquer, a indiferença, a ambição e poder podem nos devorar.
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Texto de Jonas Jorge da Silva e fotos de Ana Abranoski, ambos da equipe do Cepat/CJ-Cias.
Fonte: IHU on line, 29/04/2013

O Evangelho sem a Igreja, segundo Piero Martinetti.

Massimo Cacciari* 

A reflexão sobre a experiência religiosa e sobre o cristianismo é central na filosofia de Piero Martinetti. A religião é uma forma que assume o processo de libertação do espírito para aquela unidade suprema do "saber nosso com o logos eterno, que é o fundamento absoluto da nossa natureza". A religião é uma forma pela qual, spinozianamente, chegamos a conceber a vida sub specie aeternitatis.


Piero Martinetti pertence aos poucos, mas grandes, "solitários" do pensamento italiano da primeira metade do século XX, capazes de se opor drasticamente à "dupla hegemonia" de Croce e Gentile. Outro nome me vem logo à mente, o de Giuseppe Rensi. Ambos pensadores da estatura europeia, "em conexão direta" com as correntes da "grande crise", que investia contra os fundamentos de toda disciplina científica e filosófica, e daqueles mesmos sistemas do idealismo clássico alemão que, ao invés, Croce e Gentile pretendiam "reformar".

Ambos, embora com base em razões muito diferentes, opositores de peito aberto do regime fascista, desde o seu nascimento, e por isso privados da cátedra em 1931. Martinetti, que então tinha quase 60 anos, ensinava há muito tempo em Milão, onde teve, entre outros, alunos como Antonio Banfi. A partir daquele momento até a sua morte, no ano horrível de 1943, ele viveu retirado na sua casa em Canavese.

A obra fundamental deste último e dramático período é Gesù Cristo e il Cristianesimo (agora reeditada pela editora Castelvecchi), publicada em 1934, imediatamente apreendida pelas autoridades fascistas, posta no Índex pela Igreja.

A reflexão sobre a experiência religiosa e sobre o cristianismo já era central na filosofia de Martinetti. A religião é uma forma que assume o processo de libertação do espírito para aquela unidade suprema do "saber nosso com o logos eterno, que é o fundamento absoluto da nossa natureza". A religião é uma forma pela qual, spinozianamente, chegamos a conceber a vida sub specie aeternitatis.

Esse é o nosso Fim, ou seja, o Reino dos Fins, que se impõe a nós como tarefa necessária: "Na conquista gradual da liberdade, o ser humano realiza uma ordem, uma lei que, na sua perfeição, continua sendo sempre um ideal para ele; mas que, no entanto, por ser a fonte da atividade humana que a realiza, já deve ser ab initio, como um mundo ideal, em Deus".

O valor insuperável da experiência religiosa consistiria, portanto, em conduzir o processo de libertação até o "contato" mais íntimo, profundo, radical da alma com aquele seu Início, com aquela Unidade suprema de sujeito e objeto, de saber e natureza, que esta postula continuamente na sua busca, no seu interminável interrogar. Religião, em suma, como o exato oposto daquilo que liga, que vincula, que reduz o espírito à letra.

O cristianismo é religião espiritual, já que o seu Fim não é um "paraíso na terra", mas o mesmo e ininterrupto processo de libertação de toda condicionalidade terrena, de toda norma contingente que queira se impor à nossa interioridade. "A religião vive na alma, não no mundo", e novamente: um fundamento histórico "é sempre questão de embaraço para um pensamento religioso vivo".

Gesù Cristo e il Cristianesimo é a história ou o destino de tal cristianismo espiritual, que se fundamenta na drástica separação entre Reino de Deus e o reino deste mundo, que pertence sempre às potências demoníacas.

Não se poderia imaginar desafio mais explícito, corajoso, polêmico com relação ao cristianismo das Igrejas, e da católica em particular. Elas são todas marcadas por radical aut-aut, por escolhas e decisões inapeláveis. A vastidão dos conhecimentos, os fundamentos até mesmo eruditos desse livro-testamento são todos voltados a demonstrar este assunto: que o cristianismo histórico, a partir de Paulo, mas, ainda mais, do Evangelho de João, o teólogo, se constitui como um "tradição" que essencialmente trai o anúncio de Jesus. Paulo e João divinizam Jesus. As Igrejas continuam a sua obra, fazendo dele um ídolo, que, no fim, "relega completamente à sombra o Deus de Jesus, o Pai celeste".

Com base nessa ideia, Martinetti pode desenvolver uma história do cristianismo em que a patrística oriental está ausente, Anselmo, Alberto, Tomás não são nem sequer citados, e o pensamento de Agostinho é considerado "insignificante"!

No entanto, existe uma Igreja espiritual, formada por todos aqueles que continuaram transmitindo a "sabedoria" de Jesus, sucessão de espíritos que "atravessaram o mundo humildes e miseráveis como ele e os seus discípulos". O primeiro nome dessa sucessão é o de Marcião; o último, o de Kant.

Marcião foi, no século II, a alternativa radical à Igreja Católica. Jesus é para ele o Mestre que anuncia o verdadeiro Reino dos Céus, escondido pelo Deus criador deste mundo e legislador da Bíblia hebraica. Para além dos aspectos mitológicos ou do extremo dualismo do "evangelho" marcionita, é evidente que o que interessa dele a Martinetti é a clara rejeição de qualquer elaboração teológica fundamentada no quarto Evangelho. Aqui está o eixo de Jesus: a doutrina do Logos contida no prólogo de João está na base do progressivo abandono do Anúncio. A pureza da experiência religiosa consiste em intuir em si, in interiore, o Deus para além de toda pregação ou imagem, para o qual é preciso transcender-se, libertando-se de todos os ídolos que pretenderiam encarná-lo. Por isso, o Logos-theos que se fez carne de João contradiz, para Martinetti, ab imis fundamentis, o ensino jesuano. E é igualmente evidente qual é o grande filósofo que, no fim desse processo, deveremos encontrar: Hegel. Marcião está para Kant assim como João está para Hegel! O adversário de Martinetti é a "dialética" do Deus-Trinitas.

Tal perspectiva levanta infinitos problemas. É certo que Martinetti pensa na sua exegese como uma autêntica exegese da palavra de Jesus. É infundada essa pretensão? Eu penso que não. O texto ao qual Martinetti apela também exige constantemente ser interrogado: veritas indaganda.

Mas, então, a exegese é parte imanente e constitutiva. Assim como o Logos em João faz exegese do Pai, assim também os seus discípulos deverão fazer a exegese d'Ele. Martinetti move por toda a parte a instância da originalidade autêntica, que era, justamente, típica de Marcião. Mas justamente a novitas desse Anúncio consiste na exigência de sempre fazer exegese dele. A origem não é algo que esteja "às costas", como um fundamento, mas se transforma na tradição, que também é sempre possibilidade de mal-entendido, traição. No dualismo de Martinetti, as duas dimensões se contradizem.

Para Martinetti, o Logos se dirige ao Pai nos céus, mas não se encarna na história, não acolhe em si a própria perda na história, ignora o "grande grito" do Abandonado na Cruz. Martinetti não vê como, ao lado da sua exegese, também é necessário pensar naquela que dará vida à teologia trinitária – e justamente a partir da dramática do próprio Anúncio. Aut-aut, certamente, mas esse aut-aut é sístole e diástole da nossa civilização. E justamente o fato de não saber suportá-lo marcará, talvez, o seu fim.
A "linha" marcionita (analogamente à das maiores heresias) destina-se à "racionalização" do Anúncio, a mostrar o significado totalmente espiritual dos temas da imortalidade, da ressurreição, do "mandamento novo" do amor por todos, até pelo inimigo. A paradoxalidade da palavra de Jesus é constantemente explicada "dentro dos limites da razão apenas". Kierkegaard e Barth estão tão distantes quanto Hegel do coração e da mente de Martinetti.

Mas, se no grande debate em torno do Cristo dos séculos III e IV tivessem prevalecido as correntes marcionitas, ou gnósticas, ou maniqueístas, qual cristianismo teria sobrevivido? Talvez apenas uma memória erudita. A própria possibilidade de que um Harnack ou um Martinetti falem da Igreja espiritual em contradição com as Igrejas depende do fato de que estas se afirmaram historicamente, permixtae, comprometidas de todos os modos com a civitas hominis, pecadoras como aquele Pedro sobre o qual testemunham se fundar. No entanto, nunca completamente esquecidas de que também pode acontecer a Igreja espiritual, nunca simples ou abstratamente inimigas do "espírito profético".
É o paradoxo da encarnação que informa a sua história, para o bem e para o mal. Mas justamente de todo mal, ao invés, a Igreja espiritual deveria permanecer livre, em que a lei moral kantiana se fez natureza interior, expressão do ideal religioso supremo para Martinetti e totalmente uno, obviamente, com a sua ética.

Podemos ainda nos perguntar se essa assimilação de cristianismo e ideal ético, que rejeita, no fim, todo elemento de irredutível paradoxalidade da experiência religiosa, constitui o único meio para manter viva hoje a escuta do Anúncio – ou não representa, ao invés, justamente a sua extrema "traição", a sua "tradução" em religiosidade ético-filosófica ou, pior, em "cultura".

Mas, acima de tudo, devemos nos interrogar se hoje a "luta" está realmente ainda dentro do espaço complexo e contraditório desenhado pela Europa ou cristandade, espaço formado por Igrejas e heresias, instituições e forças espirituais, potências políticas e religiosas crísticas e anticrísticas, todas conscientemente pertencentes a uma única Era, ou se precisamente essa comunhão de opostos declinou ou está voltada inexoravelmente ao declínio.

Igrejas e Igreja espiritual estão em processo, talvez, de se retirarem juntas para o deserto, descobrindo assim, na derrota comum, a sua matriz comum.
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*  A opinião é do filósofo italiano Massimo Cacciari, ex-prefeito de Veneza, em artigo publicado no jornal La Repubblica, 24-04-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: IHU on line, 29/04/2013
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