Juremir Machado da Silva*
Aluno da célebre Escola
Normal Superior, filósofo e revolucionário, o francês Régis Debray,
nascido em 1941, é um personagem extremamente conhecido na América
Latina. Amigo de Che Guevera e teórico do foco guerrilheiro, com Revolução na Revolução,
influenciou toda uma geração de rebeldes. Tratava-se de tomar o modelo
cubano e realizá-lo em outros países sufocados pela desigualdade social.
Passadas quase três décadas, Debray, autor de O Poder Intelectual na França (1989), Vida e Morte da Imagem, uma História do Olhar no Ocidente (1992), O Estado Sedutor (1993) e, entre outras obras, Manifestos midialógicos (1994), tornou-se um homem prudente.
Prisioneiro
na América do Sul de 1967 a 1971, conselheiro de François Mitterrand de
1981, ano em que os socialistas chegaram ao poder na França, até 1988,
Debray defendeu tese de doutorado na Sorbonne (Paris I), em 1993, e
habilitou-se a orientar pesquisas, na mesma universidade, em 1994. Nesse
processo, criou a midialogia, “a disciplina que trata das funções sociais superiores nas suas relações com as estruturas técnicas de transmissão”.
Instalado
na rua de l’Odéon, no Quartier Latin, Régis Debray mora em um belo e
vasto apartamento no mesmo edifício onde, entre 1797 e 1809, Thomas
Payne habitou e escreveu Os Direitos do Homem. No prédio vizinho, Sylvia Beach publicou, em 1922, Ulysses , de James Joyce. Cercado por milhares de livros, o ex-apóstolo da utopia falou sobre o seu passado, Cuba, a midialogia , o futuro, o marxismo e a democracia. Sem negar as aventuras de juventude, Debray olha o amanhã com cautela.
O guerrilheiro tranquilo
JMS – O senhor tem uma trajetória extraordinária e um pensamento complexo: da guerrilha na América Latina à midialogia.
Qual o sentido desse percurso? O interesse pela mídia viria do fato de
terem sido os meios de comunicação os responsáveis pela morte das
utopias de sua juventude e os construtores dos imaginários da atualidade
e do futuro?
Régis
Debray – O sentido pessoal dessa trajetória vem de uma paixão
intelectual pela eficiência. Trata-se da busca de uma maneira eficaz de
transformação do mundo e de uma investigação sobre a eficácia simbólica.
A midialogia tem pouco a ver com os meios de
comunicação de massa, que quase não me interessam. Não me ocupo dos 40
mil livros que saem sobre a televisão. Isso tudo é muito vulgar. A minha
preocupação é de saber como uma ideia torna-se força material, como a
palavra de Cristo tornou-se cristianismo, como o texto de Karl Marx
passou a ser lido como um sistema… Procuro compreender a transformação
de entidades abstratas e imateriais – a palavra, as ideias, as imagens –
em forças. A midialogia se debruça mais sobre o
nascimento das religiões do que sobre os meios de comunicação de massa.
Estes são interessantes em uma perspectiva de longa duração:
é importante acompanhar a modificação de um universo cultural baseado
no manuscrito e na oralidade pela revolução do texto impresso no século
XVI. Acabo de participar de um colóquio com Umberto Eco no
qual discutimos o futuro do livro. A escrita não me parece ameaçada,
mas o livro, enquanto uma forma específica, sim. O importante é
descobrir como o político funciona, pois a dominação não é a coerção
física…
JMS – A dominação acontece pela sedução?
Régis Debray – Sim. Existem hoje novas técnicas de sedução que conduzem ainda mais nesse sentido.
JMS – Com Manifestos Midialógicos,
o senhor construiu um quadro que vai da logosfera à videosfera passando
pela grafosfera. A videosfera, que é o lugar da imagem, do virtual e da
sedução, equivale à morte do poder revolucionário da escrita?
Régis
Debray – Sim. A videosfera corresponde ao fim das grandes narrativas
míticas da modernidade como o progresso e a emancipação. A videosfera é
um reino do instante e do emocional e está próxima do que alguns chamam
de pós-modernista, embora eu nunca tenha compreendido bem o que isso
quer dizer. É tema de moda que me escapa um pouco. A descrição de
Lyotard corresponde, em todo caso, a certos elementos da videosfera. A midialogia leva
a sério a tecnologia e atua como uma filosofia aplicada à técnica. O
midiólogo é um materialista à sua maneira que tem dificuldade para
discutir as ideias, pois procura discernir os dispositivos materiais.
Hoje, precisamos fazer uma distinção entre o texto tradicional e o texto
das telas. A escrita dos computadores tem uma função de produção de
conhecimento. Nós passamos a uma nova ecologia cultural. O drama da
esquerda é que ela jamais compreendeu a técnica e pensava, por exemplo,
que bastava tomar a televisão e colocar dentro dela, como se fosse uma
caixa, o bom programa. Não é assim que isso funciona. O meio tem uma
lógica própria.
JMS – A troca de ecologia cultural implica uma passagem da resistência à indiferença?
Régis
Debray – Não. Eu creio que é preciso resistir ao presente e não o
fazemos suficientemente. Mas é importante resistir de maneira
inteligente, não de uma forma passadista ou neurótica. Pessoalmente eu
venho da grafosfera, de um imaginário livresco do século XIX. Os
socialistas eram fundamentalmente tipógrafos. O criador da palavra
socialismo, Pierre Leroux, era um tipógrafo, como Proudhon e Lenin, que
escrevia “profissão: homem de letras”; Marx era jornalista. A divulgação
das ideias passava pelo jornal. Na videosfera isso não funciona mais. É
preciso inventar outras modalidades.
JMS
– O senhor critica implacavelmente o estruturalismo e ridiculariza a
ideia segundo a qual tudo é texto, tudo é signo, tudo é comunicação e
tudo é linguagem, combatendo de Barthes a Habermas, passando por Eco e
Lacan. O seu interesse é o de impulsionar um novo materialismo
influenciado por Leroi-Gourhan pelo qual as tecnologias são fundamentais
para o condicionamento dos imaginários?
Régis
Debray – Sim. Eu faço parte do movimento coletivo de renovação
materialista e que desloca o foco das ideias na direção das coisas e
globalmente no sentido da cultura material. O senhor não citou, com
razão, Lévi-Strauss, pois eu sempre o considerei como um aliado: um
homem que não é idealista e interessou-se pelos elementos materiais da
cultura. Tenho com ele uma correspondência enriquecedora. Nos últimos
vinte anos, aconteceu uma inflação semiológica e a força de pensar que
todas as coisas nos faziam sinal, passamos a esquecer que os signos são
também coisas. As imagens possuem um suporte. Temos de entrar no
conteúdo vivo dos elementos, nos materiais, nas técnicas de produção dos
símbolos.
JMS
– Tendo influenciado muitos jovens a tomarem o caminho da luta armada, o
senhor, nestes tempos de derrocada do socialismo, sente ainda orgulho
do seu passado e vê reais perspectivas de transformação social no
Terceiro Mundo?
Régis Debray – Eu não nego o meu passado; tento compreendê-lo. Revolução na Revolução não
teve esse impacto mágico-religioso que o senhor refere. Era apenas uma
brochura, incapaz de sozinha conduzir ao caminho da montanha, que
traduzia em palavras a atmosfera de uma época. Eu fui um pouco o
intérprete, aquele que deu forma, não o diretor.
JMS – O senhor mesmo, em todo caso, escreveu que algumas vezes pessoas culparam-no por estarem na prisão.
Régis
Debray – Sim. Isso coloca um enorme problema a propósito da
responsabilidade que me levou a uma longa reflexão. Eu tentei dar conta
racionalmente dos erros cometidos pelo foquismo.
No plano intelectual, ao menos, eu já prestei as minhas contas. Entre as
faltas cometidas e as lições dessa época, guardei o medo das
generalizações. Terceiro Mundo é uma expressão demasiado ampla e não se
comporta como um sujeito homogêneo. É um objeto apaixonante para um
midiólogo de como uma palavra cria um mito. E de como este leva a uma
ação: uma ideologia em ato. Hoje, de Paris, eu não posso dizer o que se
passará em países como o Brasil.
JMS
– Em outros tempos, porém, o senhor fez parte de uma geração de
europeus que ajudou a exportar uma ideologia da revolução. Os
intelectuais franceses passaram do sonho da transformação radical às
estratégias doces do humanitário?
Régis
Debray – Os intelectuais franceses não são uma boa referência em
matéria política. Eles se comportaram sempre com arrogância e lógica,
mesmo com lirismo (risos), mas distantes da história real. Eu não me
considero um intelectual francês. Nem intelectual. Sou um filósofo. Se o
intelectual é alguém que diz coisas verossímeis sobre tudo e nada, sem
fazer pesquisas preliminares e sem unir o ato à palavra, eu não sou de
fato intelectual. Em geral, a intelectualidade francesa seguiu o
movimento de esquerda para a direita e da revolução sonhada para o
humanitário também sonhado. Retomo a minha aspiração à eficiência, à
operacionalidade, realista que sou, e busco o concreto: a ação é a irmã
do sonho. Deve existir rigor no e com o sonho. Não existe ação sem mito,
em um horizonte coletivo de espera, e não ficaremos jamais livres de
todas as ideologias. Entre os homens, não há ação puramente pragmática.
Talvez entre as formigas. Por consequência, é importante ter ideias de
futuro, possível, na cabeça. Quanto à forma utopia, ela é perigosa. A
utopia não é o sonho, mas a racionalização extrema aplicada a ele. Os
grandes criadores de utopia foram matemáticos e geômetras.
JMS – Isso vale para o marxismo?
Régis Debray – O comunismo era uma utopia. O marxismo é um método racional de análise da realidade.
JMS – Válido ainda?
Régis
Debray – Questão complexa. O núcleo do marxismo, o modelo de
explicação, diz respeito a uma época ultrapassada da ciência, do
mecanicismo e não da informática. Trata-se de um estágio obsoleto do
saber. Embora alguns pontos de verdade permaneçam: os homens não são
jamais aquilo que eles creem ser.
JMS – A democracia e a indiferença caracterizam o Ocidente contemporâneo? Qual a sua visão de futuro?
Régis
Debray – Posso falar da França. Eu me defino como republicano e não
enquanto democrata. São questões diferentes. Existem duas formas de
democracia: uma, anglo-saxã, que aparece como “a democracia”, e outra,
francesa, que chamamos de República cujas características são a
laicidade, o Estado, a escola, e não o mosaico de guetos exemplificado
pela democracia à americana.
JMS
– Justamente, o senhor polemizou com Vargas Llosa a propósito do
imperialismo cultural norte-americano durante as discussões que opuseram
a França aos Estados Unidos nas negociações do GATT. Qual deve ser o
papel do Estado hoje?
Régis
Debray – O Estado é capital. Ele nos protege da ditadura do mercado. O
grande problema é de saber como se beneficiar da dinâmica do mercado sem
ficar entregue à sua tirania, ou seja, a destruição de todos os núcleos
de solidariedade e de desinteresse que dão à vida um sentido. Vargas
Llosa defendia a ideia de que o mercado é o seu próprio fim e que se
todo mundo quer ver filmes americanos é preciso aceitar. Os filmes
franceses e outros não são competitivos. O papel do Estado é de
estabelecer cotas, de subvencionar e de estimular a criatividade gerando
condições à expressão das diferenças. A exceção cultural significa a
exceção republicana. Evidentemente que o Estado não pode dizer o que um
autor deve fazer. O Estado representa a solidariedade, a
redistribuição, a igualdade diante da lei, a cidadania fundada sobre o
direito do solo e um obstáculo à barbárie.
JMS – As suas preocupações seriam as mesmas se o cinema francês dominasse o mercado mundial?
Régis
Debray – Boa questão. Sou contra o homogêneo; defendo a diferença. Uma
mesma cultura francesa para todos seria nocivo. Mas a sua questão é mais
pertinente e inteligente por dizer que eu defendo o universal desde que
ele seja francês. O perigo existe. A revolução francesa foi
imperialista e quis exportar a liberdade para a Europa resultando em um
Napoleão. Tenho consciência do perigo do jacobinismo francês que sonha
com um mundo à francesa, em decorrência de um etnocentrismo grotesco. No
momento, o combate é pela salvação das culturas europeias.
JMS – Ser de esquerda ainda tem sentido? O senhor é ainda um homem de esquerda?
Régis
Debray – No meu caso a questão é absurda. Claro que sou um homem de
esquerda, embora não tenha o temperamento, pois sou pessimista, mais
próximo de Maquiavel do que de Kant, mas me coloco instintivamente do
lado dos pobres contra os ricos. Fora de qualquer definição mais
técnica, explicito-me pelo desprezo ao dinheiro e pela recusa de vê-lo
impor a lei.
JMS
– A América Latina vive um ano quente, com a insurreição zapatista e as
eleições no México e no Brasil, manifestações na Argentina, uma nova
onda de êxodo em Cuba…
Régis Debray – Eu nada tenho a dizer sobre a América Latina.
JMS – Mesmo sobre a autorização da ONU à intervenção americana no Haiti?
Régis
Debray – É corneliano. Há um conflito de dever. Questiono os meus
amigos haitianos e eles respondem: Somos anti-imperialistas mas
antifascistas, portanto favoráveis. Eu sou, em princípio, contra todas
as intervenções militares estrangeiras e teria preferido uma reação
armada da população haitiana contra a ditadura. Como ela não aconteceu e
Aristides, o presidente eleito pela maioria, é favorável à intervenção,
em nome do retorno à democracia, eu me associo a ele. Se a intervenção
vier a se transformar em ocupação, eu mudarei de opinião.
JMS – A América Latina ainda o ocupa sentimental e intelectualmente?
Régis
Debray – Claro. Sigo os acontecimentos com paixão. Mas não me permito
tomar posição publicamente pois temo o verbalismo irresponsável. As
palavras precisam ser seguidas de atos. Vivo na França e me engajo aqui.
JMS
– O Senhor sonhou junto com os revolucionários cubanos e foi amigo de
Guevara. O que resta disso tudo? Qual o futuro de Cuba?
Régis Debray – Tudo o que posso assegurar é que estou extremamente triste. Eis.
JMS – E o Brasil? O senhor tem simpatia pelo PT?
Régis Debray – Evidente que simpatizo com o PT. Eu conheço Lula, mas também Fernando Henrique. Sem dúvida, eu gostaria que o Brasil viesse a ter um governo de esquerda.
Régis Debray – Evidente que simpatizo com o PT. Eu conheço Lula, mas também Fernando Henrique. Sem dúvida, eu gostaria que o Brasil viesse a ter um governo de esquerda.
JMS – O senhor tornou-se um homem prudente?
Régis Debray – O problema é resistir sem ser delirante.
JMS – Fidel Castro é um revolucionário, ainda, ou um ditador?
Régis Debray – É possível ser os dois ao mesmo tempo.
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* Sociólogo. Prof. Universitário. Escritor. Cronista do CP
Fonte: http://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/19/04/2013
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