sábado, 31 de outubro de 2009

O sentido da morte

Dom Eugenio Sales*



Cada túmulo é um monumento que perpetua neste mundo as interrogações profundas do coração: por que viver? Por que morrer? Será que a dor dessa separação é o sentido último da existência humana? Nos dias atuais, cada vez se conhecem mais os segredos da psique, embora aumente a ausência, em nosso íntimo, da serenidade e da paz. Cresce a competência da medicina.

Todavia, tomam dimensões assustadoras os problemas da velhice desamparada pela própria família. O amor conjugal procurou emanciparse: recusa a tutela da sociedade, da moral e, em consequência, decresce o número de matrimônios felizes. Busca-se avidamente a harmonia onde não pode ser obtida.

Essa frustração no amor parece ser uma chaga que nos aflige.

A sociedade moderna torna-se um corpo doente, assistida por remédios sem número e aparelhagens sofisticadas. Ao curar-se um mal surgem novas mazelas.

Aspira-se à vida onde ela não se encontra, pois a ânsia dos prazeres que entorpecem as consciências nos conduz à morte. Tal explicação deriva do fato de o homem possuir uma dimensão transcendental.

Desprezando-a, jamais se realizará plenamente.

O Dia de Finados coloca diante de nós, no íntimo de cada um, essa angústia: a interrogação sobre o Além.

Um verdadeiro grito de alerta que favorece a salvação e soluciona dificuldades pela garantia de uma perspectiva perceptível pelos sentidos.

No Antigo Testamento não temos uma resposta cabal. A luta contra os cultos pagãos, que transformavam os defuntos em verdadeiros deuses, exigia medidas profiláticas em favor do povo eleito: “Só Eu sou o Senhor” (Lv 19,28; 20, 6.27). “Vós sois os filhos do Senhor, vosso Deus; por isso, não presteis culto aos mortos” (Dt 14,1). Assim, inculcavam que estes não são divindades, mas, em suas cinzas, seres como nós.

Nos textos sagrados antes de Cristo, a morte conservava sua força como penalidade pela desobediência dos primeiros pais.

Os portais da Eternidade permaneciam impenetráveis. Geme o grande profeta Isaías (38, 10-12): “É necessário, pois, que eu me vá no apogeu de minha vida. Serei encerrado por detrás das portas da habitação dos mortos (...). Não verei mais o Senhor na terra dos viventes, não verei mais a luz (...).

Arrancam as estacas de meu abrigo, arrebentam-no como uma tenda de pastores”.

Somente com o fulgor da Ressurreição foram vencidas as trevas que envolviam a condição do homem após a morte. O acontecimento revelou o poder sobre o que destruía o corpo. Por isso, São Paulo, convertido, proclama que o Salvador resgatou o véu misterioso da morte, perdoou o pecado, apagou a culpa, reconciliou a criatura com o Criador.

Assim, destruída a causa dos males, desapareceu o castigo na dimensão de permanência, restando apenas algo de transitório. Ainda devemos passar pelo túmulo, como o Mestre; mas o que se lhe segue deixou de ter o estigma da tristeza, para se transformar em esperança.

Essa profunda metamorfose surge de um fato: “Eu vivo, e vós vivereis” (Jo 14,19). Sua vitória é nosso triunfo.

No meio das dores dos que choram seus entes queridos, repitamos com o Apóstolo: “Onde está, ó morte, a tua vitória? Onde está, ó morte, o teu aguilhão? A morte foi tragada pela vida” (1Cor 15,55).

Desse ensinamento de fé cristã brotam valiosas consequências.

A primeira delas é a esperança que envolve a saudade ao visitar os túmulos de nossos entes queridos. A luz da vela acesa nos recorda o fulgor de Cristo que ressuscitou e o fará a todos que são batizados na sua morte. Eles o acompanham, vitoriosos, na sobrevivência eterna. A firme convicção da Palavra de Deus é o sólido fundamento dessa confiança.

A outra é a admoestação que todo cemitério nos sugere. As sepulturas nos falam de nosso amanhã: lá estaremos também. Entretanto, só “quem não ama permanece na morte” (Jo 3,14). Assim, a Ressurreição do Senhor produzirá em nós seus frutos na medida em que na vida praticamos as obras do Redentor: a justiça, a bondade e o perdão. Toda uma existência seguindo o Evangelho nos abre uma maior possibilidade de participação na glória eterna. As renúncias são pedidas, mas os sacrifícios dessas exigências desaparecem diante da perspectiva futura.

A última reflexão no Dia de Finados é relativa à nossa maior aproximação com os que nos precederam na glória eterna. Eles usufruem da alegria do Paraíso. Então, estaremos mais unidos aos nossos entes queridos à medida que nossos corações permanecem junto ao Senhor.

A oração é o momento de nos encontrarmos diante da face de Deus e com aqueles que hoje já participam da vitória de Cristo.

Assim o Dia de Finados continua envolto em saudade provocada pela ausência física dos que amamos e já se foram. E, no entanto, é também uma ocasião de louvores: “Graças sejam dadas a Deus, que nos dá a vitória eterna, por nosso Senhor Jesus Cristo” (1Cor 15,27).

Somente os que creem na Palavra de Deus recebem a graça transformadora. Ela converte a dor na esperança e substitui por uma presença o vazio deixado pelos que nos antecederam na casa do Pai.

Estaremos mais unidos a nossos mortos à medida que nos juntamos ao Senhor
*Arcebispo emérito do Rio de Janeiro.
Jornal do Brasil - Sábado, 31 de Outubro de 2009

Agostinho, diante da morte da mãe




Vale a pena aqui recordar o texto composto por santo Agostinho, por ocasião da morte de sua mãe, santa Mônica, mulher piedosa que, pelo exemplo e oração, converteu o filho e o marido: “A morte não é nada. Eu somente passei para o outro lado do caminho. Eu sou eu, vocês são vocês. O que eu era para vocês, continuo sendo. Deem- me o nome que vocês sempre me deram, falem comigo como vocês fizeram. Vocês continuam vivendo no mundo das criaturas e eu estou vivendo no mundo do Criador. Não utilizem um tom solene ou triste. Continuem a rir daquilo que nos fazia rir juntos. Rezem, pensem em mim. Rezem por mim. Que meu nome seja pronunciado como sempre foi, sem ênfase de nenhum tipo, sem nenhum traço de sombra ou tristeza. A vida significa tudo o que ela sempre significou. O fio não foi cortado. Porque eu estarei fora de seus pensamentos, agora que estou apenas fora de sua vista? Eu não estou longe, apenas do outro lado do caminho. Você que aí ficou siga em frente! A vida continua linda e bela como sempre foi”.
(Do livro Confissões, St.Agostinho).

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Passeio por Havana

Frei Betto *

Havana, nesta época do ano, é banhada por suave temperatura. O calor é amenizado pelo hálito de frescor que sopra das águas azuladas por trás do Malecón. A umidade reflui, embora a população se mantenha atenta à meteorologia: outubro e novembro são meses de furacões. Ano passado, ceifaram quase 20% do PIB, hoje calculado em US$ 50 bilhões.

Não há sinal de que o desastre se repita este ano. Impossível, contudo, prever as reações vingativas de Gaia, cruelmente estuprada por nossa ambição de lucro e solene desprezo à mãe ambiente.
A visita à Cuba, na penúltima semana de outubro, não tinha agenda de trabalho. Fui a convite do querido amigo José Alberto de Camargo que, para comemorar aniversário, escolheu a cidade reencantada pela literatura de Lezama Lima, Alejo Carpentier e Nicolás Guillén.

A comitiva (comitiva do coração) incluiu os jornalistas Chico Pinheiro e Ricardo Kotscho, este acompanhado de Mara, sua mulher. Alojados no octogenário Hotel Nacional, brindamos o desembarque com o daiquiri de La Floridita, onde Hemingway tomava seus porres. Visitamos a casa de praia em que ele morou e escreveu "O velho e o mar", bem como o Hotel Ambos Mundos, no qual viveu seis anos e redigiu "Por quem os sinos dobram".


Foram dias de boa culinária caribenha no El Templete, à beira do porto, e em El Oriente, frequentado por Saramago e García Márquez. Entre mojitos e o aroma perfumado dos charutos Cohiba, cuja fábrica percorremos, mantivemos proveitosas conversas com cidadãos anônimos e autoridades do país, como Ricardo Alarcón, presidente da Assembleia Nacional; Eusébio Leal, historiador da cidade (e responsável pela restauração da área colonial de Havana); Homero Acosta, secretário do Conselho de Estado (no qual se congregam ministros e dirigentes do país); Armando Hart, do Centro de Estudos Martianos; Abel Prieto, ministro da Cultura; e Caridad Diego, responsável pelo Gabinete de Assuntos Religiosos (que cuida da relação entre Estado e denominações confessionais).


Permaneci um dia a mais para encontrar-me com Raúl Castro, atual presidente, com quem almocei no sábado, 24, e Fidel que, na tarde do mesmo dia, me recebeu em sua casa, com direito a jantar.
Cuba se encontra grávida de si mesma. Após 50 anos de Revolução, é hora de analisar erros e impasses. Mira-se o passado para enxergar melhor o futuro. Em 2010, o 9º Congresso do Partido Comunista deverá submeter o país à verificação de suas contradições e elaboração de novas estratégias, sobretudo no que concerne à economia e à emulação ética.


Engana-se quem supõe Cuba retrocedendo ao capitalismo. Ainda que se multipliquem aberturas à economia de mercado, devido à globalização e o mundo unipolar hegemonizado pelo neoliberalismo, não interessa à Ilha priorizar a acumulação privada da riqueza em detrimento da maioria da população. A América Central é o espelho no qual Cuba não quer se ver: ali os índices de violência são, hoje, os mais altos do mundo, com 23 assassinatos/ano por cada grupo de 100 mil habitantes. No Brasil, o índice é de 31/100 mil e, em Cuba, 5,8/100 mil. Basta dizer que, no Rio, a polícia matou, em 2007, 1.330 pessoas. No ano anterior, em todo os EUA foram mortas pela polícia 347 pessoas.

Os cubanos são conscientes de as falhas do país não poderem ser todas atribuídas ao criminoso bloqueio imposto, há mais de 40 anos, pela Casa Branca (e, agora, em vias de distensão pela administração Obama).
A manutenção, por longo tempo, de medidas justificadas pela Guerra Fria, começa a ser questionada. É o caso do caráter paternalista do Estado que assegura, a 11 milhões de habitantes, gratuitamente, cesta básica, saúde e educação de qualidade.

Por essa razão, a qualidade de vida em Cuba, onde o analfabetismo está erradicado, figura em 51º lugar, entre 182 países, no Índice de Desenvolvimento Humano 2009, da ONU. O Brasil mereceu a 75ª classificação. Não se cogita alterar o direito universal e gratuito à saúde e à educação. Porém, a redução dos subsídios à alimentação deverá coincidir com o aumento de salários e da produtividade agrícola, de modo a diminuir a importação de 80% dos alimentos consumidos.

Busca-se solução a curto prazo para a duplicidade de moedas: o CUC adquirido pelos turistas (evita o câmbio paralelo e a evasão de divisas) e o peso utilizado pelo cidadão cubano. O turismo, ao lado da exportação de níquel, é das principais fontes de arrecadação de Cuba que, com tamanho 64 vezes inferior ao Brasil, recebe 2,5 milhões de turistas por ano, metade dos que desembarcam em nosso país no mesmo período.

Toda a América Latina se opõe, hoje, ao bloqueio e apoia a reintegração de Cuba nos organismos continentais. A questão política mais relevante nas relações internacionais é a urgente libertação dos cinco cubanos presos nos EUA desde 1998, condenados a penas elevadíssimas, acusados - acreditem! - de evitar atos terroristas. Os cinco lograram abortar 170 atentados planejados contra Cuba dentro da comunidade cubana de Miami.

Fernando Morais, com quem jantamos em Havana, promete lançar, em 2010, livro em que conta a esdrúxula história do processo movido pela Justiça usamericana contra os cinco cubanos.

PS: A quem possa interessar: Fidel goza de muito boa saúde e excelente bom humor.
* Escritor e assessor de movimentos sociais

Amor e morte


Leandro Cunha
A morte é como o amor: chega sem avisar, não manda telegrama, não telefona antes e nem passa email. Ela simplesmente abre a porta, põe as malas no chão e se instala. E o amor também é assim, ou você conhece algum caso atípico de amor planejado, daquele tipo:

- eu vou me apaixonar perdidamente por aquela pessoa.

O amor, assim como a morte, a Deus pertence. E quem disse que Deus organiza as coisas do jeito que nós queremos? Os caminhos de Deus são surpreendentes e nos conduzem a desafios fantásticos. O que levamos desse mundo, senão os nossos maiores e melhores sentimentos, que nada mais são do que os momentos de amor? Quando amamos alguém, sintonizamos esse sentimento junto a Deus, pois o amor só é possível através d'Ele. Se você ama a criatura, então, também ama o Criador.


E o que é o amor? São as nossas emoções, as alegrias e as tristezas. Mas o verdadeiro amor passa, obrigatoriamente, pela alteridade. Sem isso não é amor. Pode ser qualquer outra coisa. Menos amor. O amor é o bem mais precioso que temos, é uma riqueza incrível. Mas quando se ama, queremos ver a pessoa amada FELIZ, mesmo que essa felicidade seja longe de nós, nos braços de outra pessoa. Se não for assim, não é amor. É paixão, é egoísmo, é ilusão, é o terrível sentimento de posse.

Quer entender melhor? Então vejamos: Deus nos deu a liberdade. Quando nascemos, recebemos d'Ele o sopro da vida, mas Ele não é um Deus ciumento, egoísta ou possessivo, pelo contrário, nos dá plena liberdade para seguirmos o caminho que quisermos, até mesmo para renegá-lo, virar as costas para Ele, desprezá-lo, criticá-lo, zombar dEle. Enfim, Ele acata as nossas escolhas, porque nos ama e nos respeita. Isso é alteridade. Isso é amor. Você seria capaz de aceitar que a pessoa amada agisse assim com você? Qual seria a sua reação? O que você faria?

Se Deus é assim conosco, por que não podemos agir da mesma forma com os nossos semelhantes? Por que temos tanta dificuldade em entender o óbvio? Por que tanto desamor e tanta intolerância? Por que um coração tão duro? E cada um de nós é, exatamente, aquilo que traz dentro do seu coração.

A parábola do filho pródigo, contada por Jesus, nos mostra quem é Deus, na figura e no amor misericordioso do pai naquela história. E para nós, cristãos, é a melhor forma de compreensão do significado da “salvação”, que muitos têm dificuldade em compreender e sempre perguntam:


- Mas, o que é a salvação? Eu devo ser salvo de quê?

Se o Reino já está no meio de nós, eu quero ser salvo sim, claro! Mas salvo de quê? Da minha própria arrogância, prepotência, presunção, ganância, egoísmo, ambições, medo, insegurança, apego, abusos, preconceito, maldade, quero me livrar de tudo isso. Quero deixar isso aqui neste mundo. É preciso, então, agir agora. Deixar para depois, quando a morte chegar, não será tarde demais?

Quando a morte chegar, e ela sempre chega sem nos avisar, eu quero surpreendê-la e não ser surpreendido por ela. Quero recebê-la em minha casa, com a sala bem arrumada, toda florida, os quartos limpos, o banheiro cheiroso, a cozinha brilhando, a garagem organizada e nada de sujeira debaixo dos tapetes. Quero recebê-la de alma lavada, quero estar pronto, com a minha bagagem arrumada, para voltar para a casa do Pai.

Mas o interessante é observar que, ainda aqui, a liberdade divina está presente. Só serão “salvos” aqueles que assim o quiserem, pois a salvação é dom de Deus e não imposição. É preciso optar por isso, caso contrário Ele respeitará a sua decisão. Se você prefere ficar no vazio, abandonado na ilusão das drogas, da corrupção, do poder, das mentiras e do desamor, assim será feito.

Mas, um detalhe importante: é preciso decidir-se antes da morte chegar, pois depois que ela abrir a porta, colocar as malas no chão e se instalar, nada mais poderá ser feito. É como o amor, é uma página virada na vida e definitiva. Não tem volta, ou você conhece alguém que tenha voltado para arrumar as malas?

O amor é tão fundamental em nossas vidas que Jesus nos impôs:

- … Eu vos ordeno, amai-vos uns aos outros como Eu vos amei …
Postado Centro Loyola de Fé e Cultura, acesso 30/10/2009

"Internet foi mais importante do que viagem à lua"


Peter Salus,
principal historiador do mundo da tecnologia acredita que o principal passo dado pelo homem nas últimas décadas foi a rede mundial de computadores Quando o assunto é software livre, Peter Salus é referência mundial. Ele foi vice-presidente da Free Software Foundation e é autor de diversos livros sobre o tema, inclusive "A Quarter Century of UNIX". O historiador esteve no Brasil no mês de outubro para participar da 6ª Conferência Latino-americana de Software Livre - Latinoware 2009, realizada em Foz do Iguaçu e declarou que o ano de 1969 foi marcado por muitas coisas boas: o nascimento da internet, do sistema operacional Unix e do Linus Torvalds (criador do Linux).

Logo no começo da sua palestra na Latinoware, Salus apresentou três itens primordiais para o desenvolvimento humano: comunicação, computação e cooperação. Segundo ele, o principal passo dado pelo homem nas últimas décadas foi o investimento de "parcos" US$ 1 milhão por parte do governo norte-americano para a criação do projeto que seria o nascimento de uma pequena rede de computadores. “A ida do homem à Lua foi uma aventura efêmera, visto que não rendeu frutos grandiosos à humanidade”, comparou o estrangeiro.

O tema de sua palestra, é claro, foi o uso de softwares livres e sua relevância histórica. “O software livre hoje é uma realidade só possível em virtude da colaboração de milhares de pessoas dispostas”, declarou. Salus também relacionou os avanços tecnológicos à pressão exercida peloLinux sobre outros sistemas de gerenciamento e comparou a plataforma à Pelé.

"Comparo o feito do software livre aos seis gols marcados por Pelé em seis partidas de uma mesma Copa do Mundo. Sempre brilhante, o maior jogador da história só conseguiu o feito porque teve a ajuda dos seus colegas de equipe", afirmou o palestrante.

Ele concluiu a palestra com outra provocação ao lembrar que, anos atrás, 4 kybtes de memória custavam 12 mil dólares. Hoje, um pen drive de quatro gigbytes custa menos de 30 reais. “A evolução tem um ritmo frenético, por isso é imprudente fazer profecias. A minha bola de cristal é opaca", brincou.

A Latinoware 2009 reuniu cerca de 4 mil usuários das mais diversas linguagens, tecnologias, sistemas operacionais e outras correntes tecnológicas relacionadas ao software livre.
HSN - digital - 30/10/2009

O latim ainda está entre nós

Deonísio da Silva*

O dia dos mortos é parecido com a Quarta-Feira de Cinzas, quando nos dizem: “Memento, homo, quia pulvis es et in pulverem reverteris” (“Lembra-te, homem, que és pó e ao pó voltarás”).

O filme Quo vadis, de 1951, baseado em romance de Henryk Sienkiewicz, manteve o título em latim. Refere a pergunta que São Pedro faz a Jesus: “Quo vadis, Domine?” (“Para onde vais, Senhor?”). O diálogo dá-se na Via Ápia. Ao discípulo, que está fugindo, o Mestre responde que vai a Roma para ser crucificado outra vez. São Pedro pergunta em latim, mas Jesus responde em inglês.

Antigamente, todos os alunos, mesmo os pouco brilhantes e os desinteressados, aprendiam vários provérbios, versos e trechos antológicos de prosa em latim, bem antes de chegarem à universidade.

Um dos mais conhecidos era este, de Cícero: “Quousque tandem abutere, Catilina, patientia nostra?” (“Até quando, Catilina, abusarás de nossa paciência?”). É a abertura de uma das Catilinárias. E este trecho inicial terminava com a exclamação: “O tempora, o mores!”. (“Oh tempos, oh costumes!”).

Cícero uniu a reflexão filosófica à ação política. Escreveu diversos tratados sobre o conhecimento, a velhice e a amizade, bebidos em fontes gregas. Ele e Demóstenes são os maiores exemplos da oratória clássica. Com as quatro Catilinárias que pronunciou no Senado, na presença, aliás, de Catilina, questor e pretor romano que tinha a ambição de ser cônsul, Cícero evitou um golpe de Estado.

Outra expressão muito conhecida era “ab ovo”, desde o ovo, com o significado de “desde o começo”. Era ensinada com o exemplo de Horácio, que louva Homero porque este, para escrever a Ilíada, não chegou ao nascimento de Helena, gerada num ovo, segundo a mitologia. “Nec gemino bellum Trojanum orditur ab ovo”. (“Para contar a guerra de Tróia, não começa com o ovo”).

“Gula plures occidit quam gladius” (“A gula mata mais do que a espada”). Esta é de São João Crisóstomo, ensinando moderação nas refeições. Terenciano dizia que “habent sua fata libelli” (“os livros têm seus destinos”), combatendo, já naquele tempo, o esquecimento de obras fundamentais. E Plínio, o moço, recomendou a especialização: “Multum, non multa” (“Muito, não muitas”). Ler muito, mas não sobre muitos assuntos. O conselho tem o fim de combater a dispersão.

A herança latina ainda se faz presente em expressões como habeas corpus, que tenhas o corpo (instrumento jurídico que garante a liberdade diante do abuso dos poderosos); pro forma, por formalidade; pro labore (recebimento) pelo trabalho; ex officio, do ofício (por obrigação); in memoriam, em lembrança (homenagem); ad referendum, para ser aprovado; a priori, antes (da experiência), a posteriori, depois (da experiência); a fortiori, com razões mais fortes. Etc.

O crítico literário Fábio Lucas conta que um escrivão, depois de ouvir tantas expressões latinas de advogados que frequentavam seu cartório, repreendeu assim a pressa de um deles, que puxava com força um processo no meio da pilha: “A fortiori, não”.

Há uma sabedoria resumida nos provérbios, mas nos latinos parece ter havido um resumo dos resumos, de que é exemplo este, sobre a condição para a paz pública: “Concordia civium murus urbium” (“A concórdia entre os cidadãos é a muralha das cidades”).

E, por fim, o provérbio que ainda aparecia no fundo de vários relógios, no tempo em que eles davam pancadas: “Feriunt omnes, ultima necat” (“Todas nos ferem, a última nos mata”).
*Deonísio da Silva é escritor e professor da Universidade Estácio de Sá, doutor em letras pela USP e acaba de relançar De onde vêm as palavras (16ª edição, Editora Novo Século).
Jornal do Brasil, online - 29/10/2009

Deus existe

Carlos Alberto Rabaça*



O romancista português José Saramago, ao promover o lançamento de seu livro Caim, lançou mão da controvérsia religiosa como estratégia de marketing, tão em moda como nos recentes ensaios de Richard Dawkins e Daniel Dennet. Em suas últimas entrevistas tem afirmado que “Deus não existe fora da cabeça das pessoas que nele creem”. Sua pregação ateísta afirma que “o cérebro humano é um grande criador de absurdos. E Deus é o maior deles”. Saramago volta no tempo e relembra a capa da revista Time que, em abril de 1966, circulou com a pergunta perturbadora: “Deus está morto?”. O escritor retoma a questão afirmando a inexistência de Deus para provocar indignação em almas religiosas. Segundo ele, todo absurdo é possível, pois o culpado é Deus – ou melhor, “deus”. Há, nesse desatino, uma tremenda contradição. Ora, se Deus é culpado, ele admite sua existência.

Intacto, em seu silêncio, que pensará Deus de nós, pobres seres furtivos e ávidos de explicações? E cegos. Tão cegos. Sob gestos e equívocos, alimentamos nossa insolúvel sede de tudo o que não somos e não sabemos. Nunca pressentimos a presença de Deus, ou sequer o sonhamos sob o tremor dos tempos. Vivemos o sentimento da dúvida ou da certeza inútil da inexistência do Senhor. Há musgo e trevas em nós. Não ouvimos o sussurro do Espírito que lateja e vibra com entranhas de misericórdia.

Cecília Meireles, na poesia Falai de Deus com clareza, aqui parcialmente reproduzida, nos transmite sua contribuição nessa questão tão delicada: “Falai de Deus com a clareza da verdade e da certeza: com um poder de corpo e alma que não possa ninguém, à passagem vossa, não o entender. Falai de Deus brandamente, que o mundo se pôs dolente, tão sem leis. Falai de Deus com doçura, que é difícil ser criatura: bem o sabeis. Falai de Deus de tal modo que por Ele o mundo todo tenha amor à vida e à morte, e, de vê-lo, o escolha como modelo superior (...)”.

Saramago, em sua invectiva contra Deus, não apresenta qualquer novidade e tem um quê de coisa velha, tão antiga quanto o filósofo Nietzsche que viveu no século 19. Este considera o cristianismo “a religião dos fracos”. Os “super-homens”, isto é, os que se superam como indivíduos, não devem se deixar dominar pela “mentalidade escrava” dos cristãos. Portanto, conclui Nietzsche, se Deus está morto, vale tudo. Esse tipo de atitude moral não permite que nenhuma norma ética atrapalhe a autorrealização do indivíduo. No livro de Saramago a consciência não transmite o que é certo ou errado, há apenas o que chamamos de “relativismo moral” ou o que Freud pensou sobre o “caráter abissal da existência”. Que sua obra, inocentando o fratricida Caim e transferindo a culpa para Deus, seja mais um desses escritos esquecidos sob a ação do tempo. Este, sim, não perdoa. No limiar do humano, o tempo é que lançará e graduará a coerência de Saramago, materialista desde criancinha.
*Carlos Alberto Rabaça é sociólogo.

Pensamento evolucionista


"Não serão humanos que verão a morte do Sol, daqui a 6 bilhões de anos.
 Quaisquer criaturas que irão existir nessa época
serão tão diferentes de nós
quanto nós somos diferentes
de bactérias
 e amebas."
(Martins Rees - Astrônomo evolucionista.

PHILIP ROTH: O autor do lado sombrio

                                          Em seu 30º livro,
Philip Roth retoma personagens em agonia e
 relações que se desfazem,
mas surpreende.


Philip Roth, um dos favoritos para o Nobel de literatura, não levou o prêmio e diz que não liga: "Não espero nada deles. E eles normalmente atendem minha expectativa"
O 30º livro de Philip Roth faz parte de um projeto incomum: uma série de quatro histórias curtas. Sua nova obra, "The Humbling", a terceira novela do quarteto [a última, "Nemesis", será publicada no próximo ano] é uma das mais lúgubres que ele já escreveu.
Assim como suas duas novelas recentes - "Everyman", de 2006, e "Indignation", de 2008 [publicadas no Brasil pela Companhia das Letras como "Homem Comum" e "Indignação"] -"The Humbling" é de uma melancolia profunda, uma meditação em que todas as coisas se esvaem, a felicidade é uma fraude e a saúde, mental e física, é frágil. O livro se concentra em Simon Axler, ator famoso que perde o talento. Sua mulher o abandona, ele é internado num hospital psiquiátrico e, depois que recebe alta, mergulha em uma rotina sombria. Nesse momento, conhece uma mulher mais jovem que o revitaliza e lhe devolve a esperança.
Aos 76 anos, Roth continua a explorar os temas que definiram sua obra: o desgaste dos laços de família, a luta do homem contra a depressão e a solidão enquanto envelhece e as expectativas que moldam e isolam os parceiros sexuais. Embora uma casa de apostas britânica o tenha colocado entre os favoritos para o Nobel de literatura deste ano, não lhe deram o prêmio. "Não espero nada deles", afirma. "E eles normalmente atendem minha expectativa."
Numa entrevista de uma hora no escritório de seu agente literário em Nova York, Andrew Wylie, Roth falou sobre grandes atores, literatura, a compra de livros antigos pela internet e a vida de pessoas casadas.

Valor: O que o sr. está lendo?
Philip Roth: Principalmente, releio coisas que li aos 20 anos, escritores que foram grandes na minha formação e que eu não lia há 50 anos. Estou falando de Dostoyevsky, Faulkner, Turgenev, Conrad. Estou tentando reler o que há de melhor antes de... morrer.
Valor: O sr. recomendaria algum escritor novo?
Roth: Não acompanho o que acontece na ficção moderna.
Valor: A quem o sr. considera seus pares?
Roth: Algumas pessoas. Don DeLillo, Ed Doctorow, Reynolds Price, Joyce Carol Oates, Toni Morrison. É uma geração muito boa. Perdemos três gigantes nos últimos dois anos. Saul Bellow, Norman Mailer e John Updike. A literatura americana é poderosa. Essas pessoas são todas de primeira linha.
Valor: Há algo errado com a literatura americana hoje?
Roth: A literatura americana é hoje a mais vigorosa do mundo.
Valor: O sr. navega na internet? Quais sites costuma visitar?
Roth: Só uso para fazer o supermercado e comprar livros. Compro da FreshDirect. Também uso a Amazon e compro muitos livros usados da AbeBooks e da Alibris. É maravilhoso quando você tenta encontrar algo obscuro e consegue por US$ 3,98. É o maior bazar de livros que já existiu.
Valor: Mas não é tão divertido quanto a 4ª Avenida em Nova York.
Roth: É, aquilo era maravilhoso. Foi como me iniciei na vida. Eu me formei no ensino médio em janeiro de 1950 e fui trabalhar na S. Klein on the Square, na 14ª. Trabalhei na Klein como auxiliar de estoque. Almoçava em cinco minutos, ia para a Quarta Avenida e comprava livros da Modern Library por US$ 0,25. Os livros comuns custavam US$ 0,25 e os gigantes, US$ 0,75. Ainda tenho muitos desses livros. Era maravilhoso. Comecei a fazer minha própria biblioteca. Acho que ganhava US$ 0,75 por hora. Em 40 horas semanais dava para tirar US$ 30.
Valor: Em "The Humbling", Simon, deprimido, descreve-se como "um homem repulsivo que não é nada mais que o inventário de seus defeitos". E o que dizer da sugestão de Camus de que o propósito da vida é continuar rolando a pedra até o topo da montanha?
Roth: Ele está falando do estado de depressão. Não é incomum as pessoas deprimidas serem inventários de suas deficiências. Você não pode dizer a uma pessoa deprimida o que ela deve fazer. O problema é que elas não conseguem fazer nada. São incapazes de exibir sua força, assim como ele.
Valor: Simon acredita que sua estada no hospital psiquiátrico teve alguma valia? Não consegui descobrir se o sr. estava zombando do tratamento ou o elogiava.
Roth: Nenhum dos dois. Apenas relatei o que ocorreu com ele da melhor maneira que pude apresentar. Como ele não melhora, e como melhora, e as pessoas que conhece no hospital. Não existem atitudes nos hospitais psiquiátricos. A terapia artística é uma coisa de criança, mas feita de modo deliberado.
Valor: Inicialmente, o sr. escreve: "O que ele fazia bem, fazia por instinto. Agora ele pensava em tudo, e tudo que era espontâneo e vital estava morto". O autoconhecimento é paralisante?
Roth: Estou falando de um ator. E esse ator age por instinto. Quando ele pensa demais é dominado por seu pensamento.
Valor: Um personagem menor, professor aposentado que está se recuperando no hospital psiquiátrico, analisa os suicidas: "Então há os puristas. A questão para eles é: foi justificado, houve motivo suficiente?" Quando o suicídio se torna uma escolha socialmente aceitável?
Roth: Para o suicida, é. Há muita gente com tendências suicidas que discute os prós e contras de um suicídio. A aceitação social não tem nada a ver com isso. Eles são os analistas de suas próprias inclinações suicidas.
Valor: O suicídio representa a perda da inocência?
Roth: Se você tem sorte, perde a inocência muito antes. O suicídio é a representação final do desespero, quando não se tem mais motivos para viver.
Valor: O agente de Simon o encoraja a voltar a atuar. Como o sr. fez para entender a experiência de atuar?
Roth: É o que se chama de imaginação do escritor. Observei atores durante anos. Sempre me interessei por eles. Acho que conheço alguma coisa sobre a maneira como trabalham. Li alguns livros. Menciono um deles, de Harold Guskin ("How to Stop Acting"). Mas não posso dizer que aprendi muita coisa com as pesquisas. Fui basicamente intuitivo.
Valor: O que diferencia uma grande atuação de uma atuação medíocre?
Roth: O instinto é a diferença entre o ator comum e o grande ator. É outra palavra para mágica. As quatro primeiras palavras de meu livro são: "Ele perdeu sua mágica". Acho que os grandes atores possuem um instinto que nos atinge como mágica.
Valor: Quem o sr. colocaria nessa categoria?
Roth: Temos grandes atores de cinema. Robert De Niro, Al Pacino, Meryl Streep, para citar apenas alguns.
Valor: Eles têm um entendimento mais profundo de seu ofício?
Roth: Sabem instintivamente como fazer. Pode não ter a ver com entendimento. Tem a ver com o dom da atuação. Simon é um homem reflexivo. Mas não é a reflexão que faz o ator. Você não pode ser um bom ator sem pensar, mas, paradoxalmente, não é a reflexão que faz a atuação. O que faz a atuação é o ator, não o pensador, embora um bom ator estúpido seja uma contradição em termos. Não existe essa coisa de ator bom e idiota. A inteligência é importante.
Valor: O que escritores populares como James Patterson e Nora Roberts têm que atraem um número tão grande de leitores?
Roth: Não conheço seus livros. São "entertainers", não escritores. "Entertainers" têm grande apelo. As pessoas adoram entretenimento. Eles têm uma mágica diferente.
Valor: Onde Charles Dickens se encaixa? Ele escrevia para publicações mensais.
Roth: É um daqueles que têm grande apelo popular... e é um gênio. São os espécimes mais raros. Nossos grandes escritores não tinham isso. Melville morreu na obscuridade. Faulkner não era muito lido. Bellow não era muito lido. Raramente os melhores são muito lidos... Sempre existe um romance popular e de vez em quando acontece de um gênio ser um romancista popular. Mas não é a regra.
Valor: Quando o casamento de Simon termina, o sr. descreve o acontecimento como "acabado, mas mesmo assim mais uma entre milhões de histórias de homens e mulheres infelizes no relacionamento". É essa a situação do casamento moderno, um mar de almas amargas unidas de maneira desconfortável?
Roth: A vida das pessoas casadas é frequentemente difícil. Há muitos casais infelizes.
Valor: O que faz Simon querer tornar-se pai? É algo surpreendente.
Roth: Era para ser surpreendente. A gente sempre quer surpreender o leitor perto do fim do livro. Ele acha que é uma forma de concluir sua reabilitação e domesticar seu relacionamento com Pegeen. Para livrar a relação de seu lado perverso, torná-la convencional, domesticá-la. É por isso que ele quer aquilo. Ele se sente perto da recuperação quando embarca na ideia, não é? Ela vai ajudá-lo na recuperação.
Valor: No fim, Simon inspira-se em uma peça de Chekhov. É falha dele não ser original, ser talentoso mas emocionalmente vazio?
Roth: Não sei qual é o defeito dele. Quando sua vida se esvazia e ele fica sem sua profissão, ele está vazio. Quando tem o amor e a paixão de Pegeen, ele começa a sentir-se completo novamente. Quando ela se retira, ele se torna vazio outra vez. E acha isso intolerável.
Valor: Mas ele está ciente de que as coisas poderão acabar mal.
Roth: Acontece que mesmo que você saiba que alguma coisa acontecerá, e acontece, ainda assim você pode ficar arrasado. Não existe a proteção necessária no conhecimento. Às vezes há, e às vezes não.
Valor: O sr. está trabalhando em um novo livro?
Roth: Acabo de terminar um. Será publicado dentro de um ano. Chama-se "Nemesis". É a quarta dessas pequenas novelas que escrevi: "Everyman", "Indignation" e "The Humbling". Formam um quarteto. Quero ter o menor tempo possível entre meus trabalhos. Não posso ficar sem trabalhar.
Reportagem de Jeffrey A. Trachtenberg. "The Wall Street Journal"

A pílula da inteligência



Já existem medicamentos capazes de
turbinar o cérebro
 - para você pensar,
estudar e
trabalhar mais e melhor.
Mas até que ponto é seguro tomá-los?

“EU tinhas que preparar para um trabalho e resolvi tomar um comprimido. O resultado foi incrível. Consegui estudar 12 horas sem parar”.
“Era uma época agitada na minha vida. Eu fazia faculdade de direito, trabalhava num escritório e ainda estudava para concursos públicos. Comecei a usar um remédio que o neurologista havia recebido para a minha tia. Não tive nenhum efeito colateral e senti um belo aumento na minha concentração. Na época das provas, eu aumentava a dose.”
“Fiquei mais inteligente, tudo o que estudo é mais bem aproveitado. Graças ao remédio, passei no vestibular de química e virei um dos melhores alunos da classe. Agora decidi prestar vestibular para economia. Consegui uma bolsa em um cursinho depois de fica em 1º e 2º lugar em vários simulados. Tenho consciência de que outros estudantes também usam o remédio. Mas espero que ele não se popularize. Afinal, se todo mundo tomar como vou me destacar?”
Esses relatos são reais. São os depoimentos de Augusto (26 anos, doutorando, Recife), Henrique (25 anos, advogado, Brasília) e Marcos (21, estudante, Rio de Janeiro). Eles são pessoas normais, sem nenhum problema de cérebro. Mas decidiram tomar medicamentos tarja-preta, desenvolvidos para tratar disfunções neurológicas – mas que, em pessoas saudáveis, podem provocar uma espécie de turbo mental: intensificar a atenção, a concentração, a memória ou certos tipos de raciocínio. Ou simplesmente ajudar a pensar mais, por mais tempo, sem cansar. E quem não quer isso, afinal? Um estudo recém-publicado no jornal científico Nature revela que 25% dos universitários tomam ou tomaram algum tipo de remédio para tentar aumentar seu desempenho congnitivo. E uma nova geração de medicamentos, supostamente mais segura, acendeu de vez o interesse pelas pílulas da inteligência – que cada vez mais médicos, executivos e até cientistas estão tomando. Tanto é que um grupo de neurologistas das Universidades de Califórnia da Pensilvânia, de Cambridge e Harvard escreveu um manifesto explosivo, que está dividindo a comunidade científica. Ele defende que certos medicamentos, que hoje são tarja-preta (de vendas e uso controlados), sejam totalmente liberados – para que todo mundo possa tomá-los e aumentar o próprio QI. “A engenhosidade humana nos deu meios de aprimorar nosso cérebro, com invenções como a escrita, a imprensa e a internet. Essas drogas deveriam se encaradas da mesma forma: são coisas que a nossa espécie inventou para melhorar a si mesma”, afirmam os cientistas. Loucura?
Talvez. Mas a verdade é que a maior parte das pessoas já consome substâncias para turbinar a cabeça. Quando você toma uma xícara de café para ficar mais ligado, está ingerindo cafeína – e, com isso, provocando alterações nos próprio cérebro. Se acorda doente e toma um antigripal para trabalhar melhor, idem (vários remédios do tipo contém um estimulante, fenilefrina). E tudo isso é plenamente aceito pela sociedade. Pode ser que, no futuro, as pílulas da inteligência sejam consideradas tão corriqueiras e inofensivas quanto um cafezinho.

MENOS BARATO E MAIS COGNIÇÃO

Fim dos anos 70. Um laboratório francês começa a procurar soluções para a narcolepsia, um distúrbio que causa sonolência excessiva durante o dia e afeta 0,2 a 0,5% da população mundial. Depois de muitos anos de pesquisa, os cientistas chegam a uma droga promissora, que aparentemente não tem os efeitos colaterais dos outros tratamentos. Ninguém sabe exatamente como ela funciona ( parece alterar os níveis de vários neurotransmissores, como dopamina, serotonina e noradrenalina, e com isso facilitar a comunicação entre os neurônios), mas o fato é que funciona. E o melhor: não provoca euforia, não dá barato e não vicia – os grandes problemas dos remédios até então em usados para tratar a narcolepsia. O novo medicamento é batizado de modafinil e lançado na França em 1994. Logo atrai o interesse dos militares. O Exército francês, e depois o americano, começaram a testar o remédio. O objetivo não é criar uma safra de guerreiros superinteligentes – é simplesmente evitar que durmam. E funciona. “ O modafinil permite que indivíduos saudáveis fiquem acordados por mais de 60 horas, sem efeitos colaterais”, conclui um estudo do governo francês, imagine só. Um soldado que consegue ficar quase três dias sem dormir, sem nenhuma perda de desempenho mental. Ideal para a guerra. E o modafinil foi se espalhando. Hoje, ele é distribuído de forma rotineira aos militares americanos (principalmente pilotos da aeronáutica e soldados que precisam trabalhar durante a noite).
Com tanta popularidade, a droga começa a atrair a atenção dos cientistas civis. Em 2003, pesquisadores da Universidade de Cambridge decidem testar o remédio em 60 voluntários saudáveis e descansados. E descobrem um efeito surpreendente. Sob efeito da droga, eles tiveram desempenho bem melhor em alguns testes cognitivos. Ou seja: tecnicamente, o remédio fez com que os voluntários ficassem mais inteligentes. Eles se sentiram muito bem e não sofreram nenhum efeito colateral. Um remédio seguro, que não tem consequências ruins e melhora o funcionamento do cérebro?
Foi o suficiente para explodir o interesse no modafinil, que começou a ser apresentado pelo fabricante ( a empresa americana Cephalon, que comprou o remédio dos cientistas franceses) como uma solução para quem vive cansado e deseja ter mais energia no dia-a-dia – o laboratório tentou aprovar sua droga até como remédio para jet lag. Essa ofensiva de marketing foi considerada irresponsável pelo governo americano, que aplicou uma multa milionária no laboratório. Mas isso não foi o suficiente para brecar a mania da modafinil, cujas vendas quintuplicaram e bateram um US$ 1 bilhão anuais. E isso só nos EUA, sem contar os outros países (entre eles o Brasil, onde a droga foi lançada este ano).
Apesar de tudo esse entusiasmo – ou exatamente por causa dele –, você deve estar se fazendo algumas perguntas. Será que, com o uso contínuo, a longo prazo, drogas como a modafinil não podem fazer mal? E será que é uma boa ideia mexer com a química do cérebro? Muitos cientistas têm levantado essas questões, ainda sem respostas definitivas. Quem toma remédios para turbinar a própria cabeça está assumindo um risco sério. Mas não é difícil entender por que cada vez mais pessoas fazem isso. Afinal, a busca por substâncias capazes de nos tornar mais espertos é um sonho que se perde na noite dos tempos. Sem exagero: desde que a civilização existe, tem gente querendo melhorar seu desempenho intelectual.
Veja o caso dos soldados do Império Romano, por exemplo. Eles comiam alho puro, porque acreditavam que lhes dava inspiração (sem falar na prova de coragem que devia ser comer aquilo). Entre outros povos, o costume era beber cerveja – sim, cerveja! – na expectativa de que o álcool conferisse aos soldados a bravura necessária para combater. Conforme a química evoluiu como ciência, as drogas foram se sofisticando. E os intelectuais, caindo nelas. No século 16, o famoso filósofo Francis Bacon admitidamente consumia uma série de produtos – de tabaco a açafrão – na expectativa de tornar a mente mais afiada. O escritor Honoré de Balzac, o início do século 19, tomava café aos montes para produzir, porque a bebida “afasta o sono e nos dá a capacidade de nos manter por mais tempo no exercício de nosso intelecto”. E Sigmund Freud acreditava que a cocaína pudesse ser um poderoso auxílio para a mente. Mas os estimulantes só entraram na era moderna em 1929, quando o químico Gordon Alles introduziu o uso médico das anfetaminas (para tratar asma e bronquite). Na 2ª Guerra Mundial, elas já tinham feito a cabeça das pessoas – tanto os nazistas quantos os aliados distribuíam a droga a seus soldados no front. Deve ter sido, além de a mais violenta, a guerra mais insone e neurótica de todos os tempos. Afinal, como você já dever ouvido falar, as anfetaminas são estimulantes fortíssimos – e tão viciantes quanto as piores drogas ilegais.
Excerto da reportagem de Salvador Nogueira - Revista SUPERINTERESSANTE, Ed.271 - Nov/2009, pp.63-71

O dandismo na política

GaudêncioTorquato*

O dandismo, maneira afetada de uma pessoa se comportar ou se vestir, “é o prazer de espantar”. Essa definição, do poeta francês Baudelaire, um dos precursores do simbolismo, explica a extravagante performance que o senador Eduardo Suplicy exercitou, há dias, nos corredores do Senado, após vestir uma sunga vermelha sobre as calças e assumir o papel de Super-Homem no teatrinho produzido por um programa cômico de TV. O dândi é incapaz de resistir quando o desafiam, principalmente quando divisa a possibilidade de se tornar estrela no palco midiático e atrair a atenção das massas. Se o protagonista pertence ao mundo competitivo da política, a atração pelos holofotes é fatal.
Nesse caso, os limites da liturgia do cargo costumam ser rompidos. E os atores, motivados a participar de encenação que tem mais que ver com estripulia circense e comédia farsesca. A vontade de aparecer na mídia é tão obsessiva que a cognição sobre os limites entre atos convenientes e inconvenientes, normais e ridículos, se torna esmaecida na mente dos personagens. Brandir a espada do He-Man, lutar jiu-jitsu, imitar o berro de Tarzan ou assumir o papel de cantantes românticos, mesmo que tais desempenhos tenham ocorrido nos antigamente respeitados espaços das casas legislativas, são, para eles, simples esquetes que não ferem o decoro parlamentar. Afinal, onde se cruza a linha do bom senso com a ridicularia política?
Essa fronteira, vale lembrar, sempre apresentou bifurcação. A estreita relação entre a arte dramática e o artifício da política data dos tempos antigos. Luiz XIV costumava assumir o papel de ator em encenações e bailes nos jardins de Versalhes. Napoleão, para compensar a pequena estatura, vestia-se com muita pompa. Hitler ensaiava a representação para as massas, incluindo aulas de declamação e postura dadas por um ator provinciano, de nome Basil. Bem antes, em 64 a.C., Cícero, o mais eloquente advogado do ciclo de César, guiou-se por um manual de representação, produzido por seu irmão Quintus Tullius, para vencer a campanha ao Consulado de Roma contra Catilina. O roteiro sugeria modos de se apresentar e falar. Coisas assim: "Seja pródigo em promessas, os homens preferem uma falsa promessa a uma recusa seca".
Entre nós, a arte da representação também tem sido bastante cultivada. Jânio Quadros dava ênfase à semântica por meio de estética escatológica: olhos esbugalhados, cabelos compridos, barba por fazer, jeito desleixado, caspa sobre os ombros, sanduíches de mortadela e bananas nos bolsos, que comia nos palanques, depois de anunciar para a massa, com ar cansado: "Político brasileiro não se dá ao respeito. Eu, não, desde as seis horas da manhã estou caminhando pela Vila Maria e não comi nada. Então, com licença". E devorava a fruta, sob os aplausos da multidão. Não tinha nenhuma fome. O ator histriônico havia se refestelado com uma feijoada, tomado um pileque, dormido na casa de um cabo eleitoral e acordado quase na hora do comício.
*Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP e consultor político
Postado CORREIO POPULAR, Campinas, 30 de outubro de 2009.



Lideres religiosos querem salvar a "mae" Terra


Iniciativa das organizações não governamentais Vitae Civilis e IDEC, o Diálogo Interreligioso sobre Clima reuniu 14 lideranças religiosas em evento realizado na cidade de São Paulo. Após debates, os participantes redigiram e assinaram uma carta que será entregue ao presidente Lula, na qual pedem que ele compareça à Conferência das Partes da Organização das Nações Unidas, agora no fim do ano, onde deverá ser ratificado um novo acordo para mitigar as mudanças climáticas. O documento, assinado por representantes de instituições católica, judaica, baha’i, budista, messiânica, presbiteriana, hare krishna, espírita e do candomblé, também pede que o Brasil assuma posições mais firmes nas negociações.

“Reconhecer o sagrado que existe na vida é o que falta nos debates sobre clima”, afirma Rubens Harry Born, coordenador adjunto do Vitae Civilis. “Porque não se trata apenas de uma questão técnico-científica ou político-econômica. Quando falamos de clima, entramos na esfera ética das relações humanas”, completa.

Para o reverendo Elias de Andrade Pinto, da Igreja Presbiteriana Independente, “nos habituamos com o Sagrado Criador Pai. Agora, é hora de nos abrirmos para o Sagrado Natureza, a Mãe. Na integração entre o Pai e a Mãe, entre o Céu e a Terra, haverá Paz e Vida para todos e todas as gerações. E nós podemos colaborar com essa jornada”.
O monge Jô-Shinm, da Comunidade Zen Budista do Brasil, lembrou que há 2.700 anos Buda passou algumas instruções para seus discípulos antes de morrer: não derrubar nenhuma árvore, não matar nenhum ser e cuidar da Terra. “É isso que os monges e monjas da Comunidade Zen Budista do Brasil, sob a orientação de nossa abadessa monja Coen Hochi, vêm tentado implementar para o maior numero de pessoas através dos ensinamentos de Buda”, declarou.

Para o padre Tarcísio, da Pastoral Ecológica da Igreja Católica, “o resgate do humano requer o resgate da natureza”. E essa tarefa deve unir a todos: para ele, as diferentes religiões devem se religar para lidar com os novos desafios do mundo moderno. Uma percepção comum a vários dos participantes, que estão analisando a possibilidade de criar um fórum interreligioso permanente para debater as questões climáticas.

Parte da carta que será enviada ao presidente Lula:

Excelentíssimo Senhor Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva,

Vimos solicitar de Vossa Excelência o compromisso com um acordo climático com força de lei em Copenhague que corresponda à urgência de ações de combate às mudanças do clima que já vem trazendo inúmeras catástrofes no mundo todo, inclusive no Brasil.
Cada instante é determinante para assegurar a sobrevivência das atuais e futuras gerações. A Educação de todos, sobretudo no que tange às questões ambientais, é fundamental para as transformações civilizatórias necessárias para proteger a Comunidade da Vida. (...)
Temos urgência em adotar decisões audaciosas para salvar a Humanidade e o Planeta, quando, em Copenhague, acontecerá a 15ª Conferência das Partes e com isso mitigar as causas do aquecimento global e implementar as medidas de adaptação aos efeitos inevitáveis de mudanças do clima. Trata-se de uma questão ética que transcende fronteiras: mesmo em proporções diferentes, somos igualmente responsáveis por construir uma solução comum. (...)
Pedimos que Vossa Excelência compareça em Copenhague e proponha um acordo que garanta a vida de milhões de seres humanos, que demonstre o respeito que o Brasil tem por toda as etnias, religiões e diversidade social. Temos uma tarefa de casa a ser cumprida e contamos com seu empenho. (...)
Por isso, organizações da sociedade civil e lideranças religiosas da Região Metropolitana de São Paulo, reunidas encaminham este pedido a Vossa Excelência.

Respeitosamente,

Comunidade Baha’i de São Paulo
Comunidade Católica da Cidade de São Paulo Região Leste – Paróquia São Francisco
Comunidade Católica da Cidade de São Paulo Região Sul – Paróquia Santos Mártires – Padre Jaime Crowe
Comunidade Shalom – Rabina Luciana Pajecki Lederman
Comunidade Zen Budista do Brasil – Monge Jô-Shin
Pastoral da Ecologia – Padre Tarcísio Marques Mesquita
Congregação Israelita Paulista – CIP
Federação Espírita do Estado de São Paulo – Zulmira Chaves Hassesian, Diretora da Área de Ensino
Igreja Messiânica Mundial do Brasil – Reverendo Rogério Hetemanek
Igreja Presbiteriana Independente – Reverendo Elias de Andrade Pinto
Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor – IDEC – Lisa Gunn – Coordenadora
Movimento Nossa São Paulo – Mauricio Broinizi Pereira – Secretário Executivo
Nação Angola – Candomblé
Ramakrishna Vedanta Ashrama de São Paulo (Hinduísmo ou Vedanta) – Swami Nirmalatmananda/Swami Sumirmalananda
Vitae Civilis Instituto para o Desenvolvimento Meio Ambiente e Paz – Percival Maricato – Presidente do Conselho Deliberativo

São Paulo, 28 de outubro de 2009.

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Death bonds: o investimento da morte


Bancos de Wall Street inventam um novo jeito de ganhar dinheiro: apostar na morte das pessoas.
por Marcos Ricardo dos Santos

Eles já apostaram em quase tudo. Depois de negociar em ações e petróleo, resolveram especular com financiamentos imobiliários - e quase quebraram a economia global. Agora os bancos de Wall Street inventaram um novo jeito de tentar ganhar dinheiro: apostar na morte das pessoas. Eles pretendem criar um novo tipo de investimento, que está sendo apelidado de death bond - "título da morte", em inglês - e basicamente consiste no seguinte. Os bancos compram os seguros de vida de idosos e revendem para investidores. Aí, quanto mais rápido os velhinhos morrerem, maior o ganho dos investidores.
Por incrível que pareça, já existem pelo menos 9 bancos, entre eles gigantes como Goldman Sachs e Credit Suisse, interessados na novidade. E os envolvidos dizem que isso não tem nada de mais. "Não há nada de imoral em oferecer uma oportunidade aos idosos que estejam precisando de dinheiro", afirma Will Menezes, gerente da Life Insurance Settlement Association (associação de empresas que negociam seguros de vida nos EUA). Mas o novo negócio tem detalhes de arrepiar. Com os avanços da medicina, no futuro os idosos poderão viver mais - o que faria os investidores perder dinheiro. Por isso, os bancos pretendem selecionar pessoas com as mais variadas doenças. Acredita-se que os death bonds possam atrair US$ 160 bilhões em investimentos. Mas o governo dos EUA, cuja negligência com os bancos de investimentoajudou a detonar a crise econômica mundial, jura que está de olho neles - e acaba de formar uma comissão especial que vai fiscalizar os títulos da morte.
Rendimento macabro
Quanto antes o velhinho morrer, melhor.

O IDOSO
Para conseguir dinheiro, um homem (ou mulher) de 60 anos vende seu seguro de vida ao banco, que paga 40% do valor total da apólice - neste exemplo, US$ 400 mil*.
O APOSTADOR
O banco compra milhares desses seguros e agrupa em títulos financeiros (bonds), que são revendidos a investidores do mercado financeiro.
Agora, existem 3 possibilidades.
MORTE NA IDADE ESPERADA
Vinte anos depois, o idoso morre. O valor total do seguro, US$ 1 milhão, vai para o investidor. Ele lucra US$ 600 mil, ou 130% do que havia aplicado. Isso dá 6,5% de ganho por ano.
MORTE PREMATURA
O idoso morre após 5 anos. O investidor recebe o US$ 1 milhão do seguro. Seu lucro foi de 130% em apenas 5 anos - equivalente a 26% por ano de investimento. Uhu!
MORTE TARDIA
O idoso vive mais 30 anos. Os 130% de lucro, divididos por 30, dão apenas 4,33% de rendimento por ano - menos do que o investidor teria ganho aplicando em outra coisa.
Reportagem de Marcos Ricardo dos Santos - Revista SUPERINTERESSANTE,, Ed.271 - NOV/2009

Manifesto: Ética Econômica Mundial - Consequências para os Negócios Globais*

Sede da ONU, Nova York
06 de outubro de 2009
Preâmbulo
Para que a globalização da atividade econômica leve à prosperidade universal e sustentável, todos aqueles que fazem parte ou são afetados pelas atividades econômicas dependem de trocas e cooperação comerciais baseadas em valores. Essa é uma das lições fundamentais da crise mundial atual dos mercados financeiros e produtivos.
Além disso, as trocas e a cooperação comerciais justas apenas irão alcançar objetivos sociais sustentáveis quando as atividades das pessoas percebam que seus interesses privados legítimos e sua prosperidade estão inseridos em um marco ético global que goza de ampla aceitação. Esse acordo sobre normas globalmente aceitas para as ações e decisões econômicas – em resumo, para "uma ética do fazer negócio" – ainda está em sua primeira fase.
Uma ética econômica mundial – uma visão fundamental comum do que é legítimo, justo e correto – baseia-se nos princípios e valores morais que, há tempos imemoráveis, têm sido compartilhados por todas as culturas e têm sido sustentados pela experiência prática comum.
Cada um de nós – em nossos diversos papéis como empresários, investidores, credores, trabalhadores, consumidores e membros de diferentes grupos de interesse em todos os países – detém uma responsabilidade comum e essencial, junto com as nossas instituições políticas e organizações internacionais, de reconhecer e aplicar esse tipo de ética econômica mundial.
Por essas razões, os signatários desta declaração expressam seu apoio ao seguinte Manifesto.

Manifesto por uma Ética Econômica Mundial

Nesta declaração, os princípios e valores fundamentais de uma economia mundial estão estipulados abaixo, de acordo com a Declaração sobre Ética Mundial, publicada pelo Parlamento das Religiões Mundiais, em Chicago, em 1993. Os princípios deste manifesto podem ser endossados por todos os homens e mulheres com convicções éticas, independentemente se forem religiosamente fundamentados ou não. Os signatários desta declaração comprometem-se a ser guiados por seu conteúdo e por seu espírito nas decisões, ações e comportamentos econômicos cotidianos gerais. Este Manifesto por uma Ética Econômica Mundial leva a sério as regras do mercado e da competição, com a intenção de pôr essas regras em uma base ética sólida para o bem-estar de todos.
Nada mais do que a experiência da crise atual que afeta toda a esfera econômica é o que subjaz à necessidade desses princípios éticos e padrões morais internacionalmente aceitos, aos quais todos nós temos que dar vida em nossas práticas de negócios cotidianas.
I. O princípio de humanidade
Marco ético de referência: Diferenças entre tradições culturais não devem ser um obstáculo ao engajamento na cooperação ativa pela estima, defesa e realização dos direitos humanos. Todo ser humano - sem distinção de idade, sexo, raça, cor de pele, habilidade física ou mental, língua, religião, visão política ou origem nacional ou social - possui uma inalienável e intocável dignidade. Cada um, tanto os indivíduos quanto os Estados, é, portanto, obrigado a honrar essa dignidade e protegê-la. Os seres humanos devem ser sempre os sujeitos dos direitos, devem ser fins e nunca meros meios e nunca devem ser objetos de comercialização e industrialização na economia, na política e na mídia, em institutos de pesquisa ou em corporações industriais.
O princípio fundamental de uma ética econômica mundial desejável é humanidade: O ser humano deve ser o critério ético para toda ação econômica: Isso se concretiza nos seguintes itens para o fazer negócio de uma forma que crie valor e seja orientada aos valores do bem comum.
Artigo 1
O objetivo ética de uma ação econômica sustentável, assim como o seu pré-requisito social, é a criação de um marco fundamental para a sustentabilidade, satisfazendo as necessidades básicas dos seres humanos para que possam viver em dignidade. Por essa razão, em todas as decisões econômicas o preceito mais elevado deve ser que essas ações sempre sirvam à formação e ao desenvolvimento de todos os recursos individuais e capacidades que são necessárias para um desenvolvimento humano verdadeiro dos indivíduos e para que vivam juntos em felicidade.
Artigo 2
A humanidade floresce apenas em uma cultura de respeito pelos indivíduos. A dignidade e a autoestima de todos os seres humanos - sejam eles superiores, colegas de trabalho, parceiros de negócios, clientes ou pessoas envolvidas - são invioláveis. Os seres humanos nunca podem ser maltratados, tanto por formas de agir individuais, quanto por condições comerciais ou de trabalho desonrosas. A exploração e o abuso de situações de dependência, assim como a discriminação arbitrária de pessoas são irreconciliáveis com o princípio de humanidade.
Artigo 3
Promover o bem e evitar o mal é uma obrigação de todos os seres humanos. Portanto, essa obrigação deve ser aplicada como um critério moral para todas as decisões e maneiras de agir. É legítimo buscar os seus próprios interesses, mas a busca deliberada de vantagem pessoal em detrimento do parceiro - isto é, meios antiéticos - é irreconciliável com uma atividade econômica sustentável de vantagem mútua.
Artigo 4
Não faça aos outros o que não quer que seja feito com você. Essa Regra de Ouro da reciprocidade, que, durante milhares de anos, tem sido reconhecida em todas as tradições religiosas e humanistas, promove a responsabilidade, a solidariedade, a equidade, a tolerância e o respeito mútuo entre todas as pessoas envolvidas.Tais atitudes ou virtudes são os pilares básicos de um ethos econômico global. A equidade na competição e a cooperação para o benefício mútuo são princípios fundamentais de uma economia global sustentavelmente desenvolvida que está em conformidade com a Regra de Ouro.
II. Valores básicos para uma atividade econômica global
Os seguintes valores básicos para a realização de negócios em escala global desenvolvem ainda mais o princípio fundamental de humanidade e fazem sugestões concretas para decisões, ações e comportamento geral para a esfera prática da vida econômica.
Valores básicos: não violência e respeito pela vida
Marco ético de referência: Ser autenticamente humano no espírito de nossas grandes tradições religiosas e éticas significa que, na vida pública e na vida privada, devemos nos preocupar com os outros e estar prontos para ajudar. Todas as pessoas, todas as raças, todas as religiões devem mostrar tolerância e respeito - de fato, uma elevada apreciação - por todas as outras. As minorias - sejam elas raciais, étnicas ou religiosas - requerem proteção e apoio da maioria.
Artigo 5
Todos os seres humanos têm a obrigação de respeitar o direito à vida e seu desenvolvimento. O respeito pela vida humana é um bem particularmente nobre. Portanto, toda forma de violência ou força na busca de objetivos econômicos deve ser rejeitada. Trabalho escravo, trabalho compulsório, trabalho infantil, punições corporais e outras violações das normas internacionais reconhecidas da lei trabalhista devem ser suprimidas ou abolidas. Com grande prioridade, todos os agentes econômicos devem garantir a proteção dos direitos humanos em suas próprias organizações. Ao mesmo tempo, devem fazer todos os esforços para ver se, dentro de sua esfera de influência, não estão fazendo nada que possa contribuir com as violações dos direitos humanos por parte de seus parceiros de negócios ou outras partes envolvidas. De nenhuma forma, eles devem tirar lucro dessas violações.
A deterioração da saúde das pessoas por causa de condições de trabalho adversas deve ser impedida. A segurança ocupacional e a segurança de produção de acordo com a tecnologia atual são direitos básicos em uma cultura de não violência e de respeito à vida.
Artigo 6
O tratamento sustentável do ambiente natural por parte de todos os participantes da vida econômica é um dos mais altos valores-norma para a atividade econômica. O desperdício de recursos naturais e a poluição do meio ambiente devem ser minimizados por meio de procedimentos de conservação dos recursos e tecnologias ambientalmente amigáveis. Energia limpa sustentável (com fontes de energia renováveis tanto quanto possível), água limpa e ar limpo são condições elementares para a vida. Todo ser humano neste planeta deve ter acesso a eles.
Valores básicos: justiça e solidariedade
Marco ético de referência: Ser um autêntico ser humano significa - no espírito das grandes tradições religiosas e éticas - não fazer mau uso do poder econômico e político em uma luta implacável pela dominação. Esse poder, pelo contrário, deve ser usado ao serviço de todos os seres humanos. O interesse próprio e a competição servem para o desenvolvimento da capacidade produtiva e do bem-estar de todos os envolvidos na atividade econômica. Para isso, o respeito mútuo, a coordenação razoável de interesses e o desejo de conciliar e de mostrar consideração devem prevalecer.
A justiça e o papel da lei constituem pressupostos recíprocos. Responsabilidade, retidão, transparência e equidade são valores fundamentais da vida econômica, que sempre devem ser caracterizados pela integridade que respeita a lei. Todos os envolvidos em atividades econômicas são obrigados a cumprir as regras vigentes na lei nacional e internacional. Onde existem déficits na qualidade ou na aplicação das normas legais em um país em particular, eles devem ser superados pelo autocompromisso e pelo autocontrole; sob nenhuma circunstância alguém pode se aproveitar deles em vista do lucro.
Artigo 8
A busca pelo lucro é o pressuposto da competitividade. É o pressuposto da sobrevivência dos empreendimentos de negócios e de seus compromissos sociais e culturais. A corrupção inibe o bem-estar público, prejudicando a economia e as pessoas, porque ela leva sistematicamente à falsa alocação e ao desperdício de recursos. A supressão e a abolição da corrupção e das práticas desonestas, como o suborno, os acordos fraudulentos, a pirataria de patentes e a espionagem industrial, demandam um engajamento preventivo, que é um dever que incumbe a todos aqueles que atuam na economia.
Artigo 9
Um objetivo principal de todo sistema social e econômico que está voltado a oportunidades iguais, justiça distributiva e solidariedade é superar a fome e a ignorância, a pobreza e a desigualdade, em todo o mundo. A autoajuda e a ajuda externa, a subsidiariedade e a solidariedade, o engajamento privado e público - todos esses são dois lados da mesma moeda: eles se concretizam nos investimentos econômicos privados e públicos, mas também nas iniciativas privadas e públicas para criar instituições que sirvam para a educação de todos os segmentos da população e para erigir um sistema integral de previdência social. O objetivo básico de todos esses esforços é um verdadeiro desenvolvimento humano dirigido à promoção de todas essas capacidades e recursos que permitam que homens e mulheres tenham uma vida de autodeterminação com total dignidade humana.
Valores básicos: honestidade e tolerância
Marco ético de referência: Ser autenticamente humano no espírito de nossas grandes tradições religiosas e éticas significa que não devemos confundir liberdade com arbitrariedade, ou pluralismo com indiferença à verdade. Devemos cultivar a integridade e a veracidade em todas as nossas relações, em lugar da desonestidade, da dissimulação e do oportunismo.
Artigo 10
Veracidade, honestidade e confiabilidade são valores essenciais para relações econômicas sustentáveis que promovam o bem-estar humano em geral. Elas são pré-requisitos para a criação de confiança entre os seres humanos e para a promoção de competitividade econômica justa. Por outro lado, também é imperativo proteger os direitos humanos básicos da privacidade e da confidencialidade pessoal e profissional.
Artigo 11
A diversidade de convicções culturais e políticas, assim como as diversas habilidades dos indivíduos e as diversas competências das organizações representam uma fonte potencial de prosperidade global. A cooperação para a vantagem mútua pressupõe a aceitação de valores e normas comuns e a prontidão para aprender uns dos outros e tolerar respeitosamente a alteridade do outro. A discriminação de seres humanos por causa de seu sexo, sua raça, sua nacionalidade ou suas crenças não pode ser conciliada com os princípios de uma ética econômica mundial. Ações que não respeitem ou violem os direitos de outros seres humanos não devem ser tolerados.
Valores básicos: estima mútua e colaboração
Marco ético de referência: Ser autenticamente humano no espírito de nossas grandes tradições religiosas e éticas significa o seguinte: precisamos de respeito, colaboração e compreensão mútuos, em vez de dominação e degradação patriarcal, que são expressões de violência e que engendram contra-violência. Cada indivíduo tem dignidade intrínseca e direitos inalienáveis, e cada um também tem uma responsabilidade inevitável por aquilo que faz ou não faz.
Artigo 12
A estima mútua e a colaboração entre todos os envolvidos - particularmente entre homens e mulheres - é, desde já, o pré-requisito e o resultado da cooperação econômica. Tal estima e colaboração repousam no respeito, na equidade e na sinceridade com relação aos parceiros, sejam eles executivos de uma empresa ou seus empregados, seus clientes ou outros envolvidos. A estima e a colaboração formam a base indispensável para o reconhecimento de situações em que consequências negativas não intencionais das ações econômicas apresentam um dilema para todos os envolvidos - um dilema que pode e deve ser resolvido por meio do esforço mútuo.
Artigo 13
A colaboração, igualmente, encontra sua expressão na habilidade de participar da vida econômica, das decisões econômicas e dos ganhos econômicos. A forma pela qual essa participação pode ser realizada depende dos fatores culturais diversos e das estruturas regulatórias que prevalecem em diferentes áreas econômicas. Entretanto, o direito de unir forças para buscar responsavelmente os interesses pessoais e grupais por meio da ação coletiva representa um padrão mínimo que deve ser reconhecido em todo o lugar.
Conclusão
Todos os agentes econômicos devem respeitar as regras internacionalmente aceitas de conduta na vida econômica; devem defendê-las e, dentro do marco de sua esfera de influência, trabalhar juntos para a sua realização. Fundamentais são os direitos humanos e as responsabilidades, assim como proclamados pelas Nações Unidas em 1948. Outras diretrizes globais divulgadas por instituições transnacionais reconhecidas - o Pacto Global das Nações Unidas, a Declaração dos Princípios e Direitos Fundamentais do Trabalho da Organização Internacional do Trabalho, a Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento e a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, apenas para citar algumas - todas concordam com as demandas expostas neste Manifesto por uma Ética Econômica Mundial.
Primeiros signatários:
Michel Camdessus, Presidente honorário do Banque de France
Hans Küng, Presidente, Fundação Ética Mundial
Mary Robinson, Presidente, "Realizing Rights: The Ethical Globalization Initiative"
Jeffrey Sachs, Diretor, "The Earth Institute", Columbia University
Desmond Tutu, arcebispo emérito e prêmio Nobel da Paz
A declaração foi composta por um comitê de trabalho da Fundação Ética Mundial:
Prof. Dr. Heinz-Dieter Assmann (Tübingen University)
Dr. Wolfram Freudenberg (Freudenberg Group)
Prof. Dr. Klaus Leisinger (Novartis Foundation)
Prof. Dr. Hermut Kormann (Voith AG)
Prof. Dr. Josef Wieland (Drafter, Konstanz University of Applied Sciences)
Prof. h.c. Karl Schlecht (Putzmeister AG)
Autoridades da Fundação Ética Mundial:
Prof. Dr. Hans Küng (Presidente)
Prof. Dr. Karl-Josef Kuschel (Vice-presidente)
Dr. Stephan Schlensog (Secretário-geral)
Dr. Günther Gebhardt (Conselheiro sênior)
Tübingen, 1º de April de 2009.
*Publicamos aqui a íntegra do Manifesto "Ética Econômica Mundial – Consequências para os Negócios Globais", promovido pela Fundação Ética Mundial e publicado durante um simpósio sobre ética nos negócios na sede da Organização das Nações Unidas (ONU), em Nova York, no dia 06 de outubro.
Desenvolvido pelo teólogo suíço-alemão
Hans Küng, presidente da Fundação, o documento busca apresentar “uma visão fundamental comum do que é legítimo, justo e correto” nas atividades econômicas. A tradução é de Moisés Sbardelotto para IHU/Unisinos, 29/10/2009
*