quinta-feira, 30 de setembro de 2010

À maneira de introdução fraterna

Pedro CASALDÁLIGA*



Que Deus? Que religião?

A “Latino-americana” vem abordando temas importantes, ano após ano. Assuntos de candente atualidade humana. Pensando na vida, assumindo os desafios que a realidade nos apresenta. Objeto de realidade candente é a religião; temática realmente importante: Deus. Talvez alguém duvide da atualidade deste tema, pensando em certas áreas do Primeiro Mundo para as quais Deus e a religião “já eram”. Na realidade, dá-se a contradição desconcertante de ver e sentir mais religiosidade do que nunca, e mais descrença também; com todas as ambiguidades e todas as oportunidades.
O fenômeno da mundialização agita também especificamente o tema, porque as populações migrantes, chegando “sem papéis” ao Primeiro Mundo, não entram nele sem seu Deus; carregam consigo o Deus de suas vidas, das vidas dos antepassados.
Hoje, culturas e religiões, conhecidas antes por algumas leituras e imagens de televisão, são vivência e conflito nas famílias, nas ruas, nas escolas, no trabalho, na política de todos os países. Nietzsche, finalmente na paz merecida por sua desesperada busca, já tinha retificado seu axioma categórico: chega-se à conclusão de que Deus não está morto.
O problema está em saber de que Deus falamos. Saber também evidentemente o que entendemos por religião e como pensamos que deveria ser uma religião verdadeiramente libertada e libertadora.
Refletindo sobre essas duas perguntas, “que Deus?”, “que Religião?”, as respostas são as mais sérias e as mais desconcertantes.
Falando de Deus, precisamente, um amigo sertanejo de nossa região, tão distante de categorias metafísicas, respondia com a maior simplicidade e devoção: Deus é um bom homem. Já o profeta Oseias põe na boca de Deus (o Deus Javé) esta categorical identificação, sem réplica possível: Eu sou Deus, e não um homem (11,9). O escritor Saramago, Prêmio Nobel de Literatura, ateu assumido e militante, mas que fez da religião material frequente de seus escritos, nos deu uma poética e contemplativa definição de Deus: Deus é o silêncio do Universo e o homem, o grito que dá sentido a esse silêncio. Outro Prêmio Nobel, o poeta espanhol Jun Ramón Jiménez, dizia que a dúvida de fé não é contra Deus, mas a favor de Deus. Nossos teólogos da libertação nos fazem recordar que o contrário da fé não é a dúvida, mas o medo (medo de Deus, com frequência). Que Deus, que religião, que salvação… Uma vizinha pentecostal ponderava: Os bons se salvam porque são bons, e os maus também se salvam, porque Deus é bom e perdoa.
Este livro, que ocasionou muitos intercâmbios com respeito ao tema e às implicações que o tema traz consigo, oferece um elenco bastante completo de aspectos. A história das religiões e do ateísmo ou a descrença. A diferença e complementariedade entre espirititualidade e religião. A religião que fomenta e justifica guerras. O espiritualismo, o fundamentalismo, a alienação, denunciados tantas e persistentes vezes ontem e hoje. A necessidade do diálogo inter-religioso. O macroecumenismo. Sacralização do poder, do consumismo. A queda, então, de velhos deuses substituídos por deuses novos. A necessidade, a sede vital, de resposta às interrogações maiores do coração humano. A busca de sentido para a vida pessoal e para a sociedade humana como um todo.
Estamos chegando, depois de guerras e inquisições, a nos perguntar se uma religião verdadeira pode existir atacando, fechando-se, forçando um assentimento de fé (que é gratuidade, assunto de coração, busca de toda uma vida e de toda uma história). Todas as religiões podem ser verdadeiras e todas podem abrigar, simultaneamente, muita falsidade. (Deve-se agradecer à declaração do Cardeal Jean Louis Tauran, Presidente do Conselho Pontifício para o Diálogo inter-religioso, que diz que todas as religiões têm a mesma dignidade e importância.)
"Nada possuir, nada carregar, nada pedir, nada calar e,
 sobretudo, nada matar."
Lema do Bispo Pedro CASALDÁLIGA

Procurou-se fazer um esquema dividido em três partes para classificar as características fundamentais da religião segundo culturas e épocas. As religiões afro-indígenas seriam religiões da Natureza. Hoje, evidentemente, essa Natureza seria vista e venerada ecologicamente.
As religiões orientais seriam as religiões da interioridade, contemplativas, gratuitas inclusive. E as religiões judeo-cristãs seriam as religiões da História, do Amor-Justiça, da profecia, da política. Logicamente, todas as religiões seriam a busca por Deus, a acolhida de Deus, a espera por Deus. De um Deus que sempre está à nossa busca, acolhendo-nos, e revelando-se, cada dia, em qualquer ângulo da geografia humana. Nenhuma religião tem a exclusividade desse Deus de todos os nomes, que perdoa e salva porque é o Amor.
A “Latino-americana” não quer ser proselitista e, sim, estimular todas as riquezas humanizadoras trazidas pelas religiões. Sem cruzadas e sem supermercados. Deixando que Deus dialogue com Deus, o Deus da família humana e do Universo inteiro. Sempre pensando holística e pessoalmente. Deus não é um conceito, não é um dogma, é mais que uma causa. De que Deus falamos? Com que Deus sonhamos? Santa Teresa de Ávila tem aquele pequeno poema, conhecido mundialmente, que diz: Só Deus basta. Com um respeitoso carinho, eu o digo à grande Teresa:

Só Deus basta, Teresa
sempre que for aquele Deus
 que é ele e todos e tudo
em comunhão.
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*Bispo emérito. Ingressou na Congregação Claretiana em 1943, sendo ordenado sacerdote em Montjuïc, Barcelona, no dia 31 de maio de 1952. Em 1968, mudou-se para a Amazônia Brasileira.
Foi nomeado administrador apostólico da prelazia de São Félix do Araguaia no dia 27 de abril de 1970. O Papa Paulo VI o nomeou bispo prelado de São Félix do Araguaia (Mato Grosso), no dia 27 de agosto de 1971. Sua ordenação episcopal deu-se a 23 de outubro de 1971, pelas mãos de Dom Fernando Gomes dos Santos, Arcebispo de Goiânia e de Dom Tomás Balduíno, OP e Dom Juvenal Roriz, CSSR. Foi bispo da sé titular de Altava até 1975.
Adepto da teologia da libertação, adotou como lema para sua atividade pastoral: Nada possuir, nada carregar, nada pedir, nada calar e, sobretudo, nada matar. É poeta, autor de várias obras.
Fonte: Agenda Latino-americana 2011 (Apresentação da Agenda) - http://latinoamericana.org/Brasil/  

Os caminhos da Filosofia Política

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Em tempos de confusão e mudanças,
 é até certo ponto lógico que
os olhos se voltem para a filosofia da teoria política,
em busca de pistas e inspiração.
Aqui está Hobbes,
um pouco sobre republicanismo e
anarquismo na entrevista
 com Andrés Rosler,
 filósofo e pesquisador do Conicet.

A entrevista é de Leonardo Moledo e publicada no jornal Página/12, 29-09-2010. A tradução é do Cepat e revisada pela IHU On-Line.

Estávamos falando de temas realmente muito interessantes. Tão interessantes que esqueci de ligar o gravador. Assim que vamos começar in medias res, se não lhe parecer ruim. Você estuda Hobbes, um dos filósofos políticos fundamentais para pensar a Modernidade. E estava para me dizer...
O que estava para lhe dizer é que, para Hobbes, o Antigo Testamento é um caso típico de contrato político, de contrato que permite sair do estado de natureza. O povo de Israel celebra um pacto com Deus que é, em última instância, político: em troca de obediência e da terra de Canaã, Deus lhe entrega a salvação, a redenção.

O que é a redenção?
A ideia de salvação tinha um sentido metafísico-religioso e para nós se converteu em uma noção tipicamente medicinal: estar a salvo, cuidar da saúde.

Mas, o que era a redenção para um judeu da época de Moisés?
Que sua alma fosse terminar com Deus. O mais importante é o uso político que Hobbes faz dessa ideia de salvação: a mesma salvação que Israel outorga mediante o antigo pacto é a que o Leviatã dá aos indivíduos. O Estado outorga proteção e salva o povo da guerra própria do estado de natureza. A Bíblia conta que por alguma razão os judeus não concordaram com esse pacto inicial, mas que queriam uma monarquia como os demais povos tinham; Deus, então, os abandona e lhes dá um rei e aí começa o caminho dos judeus que, segundo Hobbes, desemboca na necessidade de um segundo pacto.

Por quê?
Os judeus, ao quererem se afastar de Deus, ficam entregues à sua morte. Acreditavam (e ainda acreditam) que o redentor está para chegar. A diferença no segundo pacto é que já não é um pacto peculiar de um povo com Deus, mas que é muito mais universal, mais abrangente. Em vez de pedir a circuncisão como selo da aliança, a única coisa necessária é um batismo. Isso é mais universal, mesmo que siga havendo pessoas que fiquem fora. Essa é uma boa maneira de começar a pensar o conflito político: pode-se pensar o conflito político incluindo todo o mundo?

Você deveria sabê-lo...
Pensemos no terremoto no Chile: todos os Estados ajudaram, mas a responsabilidade principal era do Estado chileno. A ordem política é particular, tem fronteiras, tem limites. A única maneira de resolver os problemas humanos, na realidade, é desfazer-nos do Estado. Entre o anarquismo e o particularismo político não há muitas alternativas. A única maneira de deixar de lado a exclusão produzida pelos particularismos políticos é desfazendo-nos dos Estados.

Você se dedica à filosofia política de Hobbes, que é um tema delimitado. O que faz, ali, é história da filosofia. Faz também filosofia?
É que creio que, mesmo que não me propusesse isso, em meus estudos de história da filosofia estou fazendo ao mesmo tempo filosofia. Para que se faz a história da filosofia política? Uma primeira razão seria recuperar conceitos, ideias, argumentos esquecidos. O maior especialista em Hobbes, hoje, é um fervoroso republicano, a tradição do pensamento que obnubilou a teoria hobbesiana. A teoria política de Hobbes é inimiga do republicanismo.

Por quê?
O Estado moderno é uma invenção histórica do século XVI cujo primeiro grande representante é Hobbes. Antes, o grande debate era entre a pessoa do monarca e a comunidade de cidadãos. Esse esquema não podia resolver um problema como o da guerra civil. Faltava uma instituição que estivesse acima tanto da pessoa que ocupa o cargo como da comunidade de cidadãos. Essa é a grande invenção do Estado moderno. Isso acaba ao mesmo tempo com a monarquia absoluta e com a ideia republicana de que os cidadãos podem escolher o seu representante de maneira direta e a seu próprio arbítrio. Hoje, por exemplo, vivemos em um regime representativo, e você me dirá que o que se faz é exatamente isso: que a comunidade escolha a seu próprio arbítrio. Mas creio que não é bem assim: há eleições, mas o eleito é um soberano. Antes, quando se era contrário ao que o eleito fazia era possível tirá-lo do cargo, e isso era legal. A tirania era uma forma moral à qual o povo tinha o direito de resistir. Hobbes defende que essa discussão entre monarquia e republicanismo, entre formas corretas e incorretas de governo, moralizava o discurso político: alguns chamam tirano o monarca com o qual não estão de acordo e alguns chamam anarquia a democracia com a qual não estão de acordo. Deve-se propor uma instituição (o Estado) que seja soberano. Essa ideia de soberania hobbesiana é algo que permaneceu. Mesmo que pareça que o Estado está dando seus últimos passos sobre a terra.

E se pensamos nos estados que provêm da dissolução do Império? Carlos Magno, por exemplo, tem um Estado, frágil mas tem...
Mas o Estado moderno tem uma característica peculiar em relação aos proto-Estados mais antigos: quem está em cima ocupa um cargo do qual não é o dono. É simplesmente um empregado da hierarquia. O lema de Luis l’état c’est moi [o estado sou eu] não funciona mais na modernidade. O que fez o czar russo, de vender o Alasca e ficar com o dinheiro, não funciona mais.

Mas o imperador romano também não podia fazer isso...
A verdade é que não sei como funcionava isso.

Quando se chega ao poder pessoal em Roma há toda uma burocracia enorme por trás.
Sim, tem razão. O Estado moderno tem como um dos seus pilares o direito romano e a Igreja Católica como o outro. Quando cai o Império, a Igreja Católica o suplanta e depois serve como base para a implantação do Estado político. Curiosamente, a Igreja, que era o grande inimigo do Estado, acabou por lhe prover o aparelho institucional.

Claro, porque a instituição eclesiástica transcende muito a figura do Papa.
E a característica do Estado moderno é a distinção entre a pessoa e quem ocupa o cargo e, evidentemente, a comunidade de cidadãos. Isto lhe granjeou uma oposição em duas pontas: não só dos republicanos, mas também dos monarquistas. Os monarquistas, com efeito, se deram conta de que Hobbes não defendia uma monarquia de direito divino, mas um Estado contratual. Já não é Deus, mas o povo quem delega. Para Hobbes há uma assembleia que estabelece o pacto e instantaneamente se dissolve.

Você também tem um projeto de republicanismo e liberalismo. O que estuda ali?
A ideia é pesquisar as origens dessas duas grandes teorias. O liberalismo e sua concepção negativa de liberdade (a liberdade consiste na ausência de impedimentos externos à ação, o que é uma ideia muito hobbesiana) e o conceito de liberdade do republicanismo (que em vez de achar que o problema é a interferência, acredita que o problema seja a dominação: alguém pode ser dominado sem ser interferido e interferido sem ser dominado). O exemplo clássico disto é o do escravo com um senhor gentil. Para o republicanismo, nenhuma pessoa é absolutamente confiável para governar, por mais boa gente que seja: quem tem que governar é a lei, que interfere, mas não domina. O liberalismo supõe que uma pessoa que vive uma vida sem interferências será livre; para o republicanismo, obviamente isso não é suficiente. A intuição de viver uma vida com a menor quantidade de interferências, teoricamente já não é mais muito defendida, é muito própria do senso comum.

E o que acontece agora com essas coisas?
Há um renascimento importante da filosofia política republicana, que quer recuperar o que o Estado deixou tapado. Sem dúvida, o republicanismo merece nossa simpatia (quem pode negar a ideia de uma cidadania participativa, que toma decisões sobre a base da deliberação pública?), mas tem seu lado negativo, que é a moralização do conflito político. Se sou republicano e represento a virtude, quem se opuser, por definição, não é virtuoso.

Para onde acredita que estamos indo?
No fundo, eu sigo acreditando na possibilidade do debate. A teoria política, no fundo, é um diálogo, uma discussão. Mas creio que é preciso ter cuidado para não confundir quem está em desacordo com a gente com alguém que é simplesmente imoral.
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Fonte: IHU online, 30/09/2010

Um Jesus Cristo hipster


Os "hipsters" são adultos jovens, bem educados, urbanos,
de classe média e alta e de esquerda.

A revista norte-americana Christianity Today publicou um artigo sobre a forma pela qual os jovens de hoje interpretam o cristianismo. Na capa, pode-se observar um Jesus Cristo "hipster" que usa óculos escuros.
Os "hipsters" são "adultos jovens, bem educados e urbanos, de classe média e alta, com pontos de vista esquerdistas e sociais e interesses não predominantes na moda e na estética cultural".
A capa da revista utiliza a imagem de um Jesus Cristo de óculos escuros para ilustrar uma matéria sobre a "Fé Hipster", em que se relata a nova interpretação afastada do fundamentalismo religioso que se adonou do cristianismo nos EUA durante a década passada e que os jovens dão à sua religião.
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A reportagem é do sítio Religión Digital, 29-09-2010. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: IHU online, 30/09/2010

Carta revela desprezo por "mãe" do DNA

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Nos anos 1950, colegas questionavam
o trabalho de Rosalind Franklin;
ela morreu sem crédito pela descoberta
Só nos anos 2000 James Watson confirmou que
o modelo de dupla hélice não seria possível
sem os dados de Franklin

Cartas reveladas agora ajudam a contar a história da mulher mais injustiçada da ciência moderna.
Nelas, Rosalind Franklin, cujo fundamental papel na descoberta da estrutura do DNA hoje é reconhecido, é atacada pelo próprio chefe do seu laboratório, o biólogo molecular Maurice Wilkins, nos anos 1950. Eles se odiavam e mal conversavam.
"Espero que a fumaça de bruxaria saia logo das nossas vistas", escreveu ele em 1953 para o colega Francis Crick, querendo se ver livre dela.
Havia, na época, uma corrida desesperada por mostrar como era o DNA. Franklin, com trinta e poucos anos, acabou sendo jogada para fora da pista pelos colegas.
Competiam dois grupos. De um lado, o de Wilkins, esse que a chamou de bruxa, no King's College de Londres, onde ela estava. De outro, Crick e James Watson, na Universidade de Cambridge.
A jovem Franklin avançava rápido. Em 1952, obteve com raio-X ótimas imagens de DNA, em especial uma delas, conhecida simplesmente como "a fotografia 51".
Ficou com essas imagens por meses, mas não teve o insight de perceber que se tratava de uma dupla hélice, como uma escada em caracol.
Um aluno de Franklin, intrigado com a questão em aberto, mostrou a foto 51 a Wilkins, sem que a sua orientadora soubesse, querendo saber se ele teria alguma proposta de estrutura. Wilkins compartilhou a imagem com os colegas de Cambridge.
Lá, Crick e Watson tiveram o lampejo que Franklin não teve. Em 1953, publicariam um artigo na revista "Nature" com a proposta de estrutura, hoje consagrada. Wilkins escreveu um comentário. Franklin não foi citada.
Ela viria a morrer em 1958, com câncer no ovário, aos 37, sem reconhecimento e sem saber que o trio que publicou na "Nature" tinha visto seus dados -achou, aliás, que as conclusões deles faziam sentido, e que tinham encontrado resultados parecidos com os dela independentemente.
Em 1962, ganharam o Nobel de medicina -o papel de Franklin ainda era desconhecido e, mesmo que não fosse, não há Nobel póstumo.
As cartas mostram, porém, que os três tinham consciência de que não conseguiriam o Nobel sem o trabalho dela.
Logo após a publicação na "Nature", Wilkins escreve para Crick: "E pensar que Rosie teve todas aquelas imagens em 3D por nove meses e não viu uma hélice. Cristo."
Só a partir do final dos anos 1960 ela começou a ser reconhecida. Em 2000, o próprio Watson citou o seu papel na descoberta. Segundo ele, ela só não soube interpretar seus próprios dados. Ficou para a história como a "dama sombria" da descoberta da dupla hélice.
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REPORTAGEM POR RICARDO MIOTO DE SÃO PAULO
FONTE: Folha online, 30/09/2010

Jerzy Skolimowski - Entrevista

Cineasta Skolimowski fala sobre admiração
por Babenco e prisão de Polanski

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De onde veio a inspiração para Essential killing?
Eu vendi minha casa em Malibu, na Califórnia, e me mudei para a Polônia. Fui morar em uma casa rodeada por uma floresta selvagem em um local chamado Masúria. Lá tem paz e sossego. Consegui filmar nas imediações e foi ótimo, pois não tive que viajar e ir para um hotel. Mas não queria repetir a mesma fórmula. Depois descobri que na vizinhança tinha um aeroporto que era usado secretamente pelos aviões da CIA para transportar prisioneiros do Oriente Médio. Um lugar para tortura. Nada disso é confirmado oficialmente. Somente o governo da Lituânia confirma isso. Tem rumores que esses locais existem na Romênia, na Polônia e na Noruega. Achei esse tema muito político para mim, mas uma noite andando de carro por uma estrada quase tive um acidente. Meu carro derrapou e parei a alguns metros de rolar um barranco. Percebi que era em frente a esse aeroporto. Foi disso que tive a ideia, pois se esse aeroporto estivesse sendo utilizado pela CIA, essa estrada seria usada por caminhões para transportar os prisioneiros. E se um deles derrapasse e caísse do barranco durante o inverno? Talvez um prisioneiro fugisse. Envolveria sua tentativa de sobrevivência em um lugar estranho cercado de inimigos. A história vem disso.

Qual a sua mensagem por trás da história?
Me impressiona que estamos no século 21 e em certas situações um ser humano pode se tornar em um animal. Um animal selvagem lutando pela sua vida. Quando um animal é atacado, matar é a única maneira de ele sobreviver. Esse filme conta a história de um homem reduzido a um animal selvagem.

Vincent Gallo foi sua primeira escolha para interpretar Mohammed?
Sim. Eu estava em Cannes ano passado quando exibiram Tetro, de Francis Ford Coppola, que Gallo faz o protagonista. Após a sessão, ele passou por mim. Eu comentei que tinha um roteiro e se ele estava interessado em ler. Ele perguntou se estava comigo. Eu entreguei e em duas horas ele me ligou dizendo que queria muito fazer o filme. Comentou que seria um desafio e que morava em Buffalo, onde é muito frio. Ficou bastante empolgado. Esse entusiasmo até me preocupou, pois tinha receio que ele exagerasse no papel.

A interpretação de Gallo e a maneira que sua câmera dialoga com ele sugerem que vocês já eram amigos.
Nós já nos conhecíamos da vida social na Califórnia. E ele se encaixava perfeitamente nesse papel, pois tem uma postura bastante visceral. Seu jeito lembra até um animal se movendo. Acho que a relação entre ator e câmera tem que ser como um balé. É a minha maneira de trabalhar.

Teve muita improvisação?
Não teve muita improvisação. Eu escrevi com muita precisão, pois foi filmado em condições extremas. A temperatura era 35 graus abaixo de zero e Vincent Gallo tinha que caminhar descalço na neve. Nessas condições você não improvisa. Você simplesmente faz o que tem que fazer e vai embora.

Cenas do filme Essential killing

 
Como foi trabalhar mais uma vez com o fotografo Adam Sikora, Com que trabalhara em Quatro noites com Anna?
Foi muito bom. Já nos conhecíamos e por isso nossa comunicação era por gestos e olhares e não por palavras.

Emanuelle Seigner, atriz que está em Essential, é mulher de Roman Polanski com quem o senhor colaborou artisticamente no começo da carreira na estreia dele em Faca na água. O senhor mantém contato e colaboração artística com Polanski e com um decano e maestro do cinema polonês como Andrzej Wajda, para quem escreveu o roteiro e atuou em The inocent sorcerers? Gostaria de trabalhar de novo com ambos?
Sou grande amigo de Emanuelle. Conheço-a há mais de 20 anos. Sempre nos falamos sobre trabalhar juntos quando tivesse o papel certo. Quando estava pronto para filmar Essential, infelizmente Roman foi preso. Imaginei que ela gostaria de ficar de fora do filme. Cheguei a ligar para ela dizendo que entendia se ela decidisse não participar do projeto. E ela me disse o contrário. Era uma maneira de ficar de fora de toda a confusão envolvendo a absurda prisão de Roman. Sobre trabalhar com ele ou com Andrzej, cada um tem seus projetos pessoais. Nunca se sabe. Somos muito amigos e tudo é possível. Quem sabe eles podem me usar como ator.

Interessa-se por algum cineasta brasileiro?
Hector Babenco. É meu amigo e adoro seus filmes. Ele ficou muito feliz com os prêmios em Veneza: “Jerzy parabéns pelo prêmio. Isso prova que ainda existe espaço para o nosso trabalho” (risos).

O senhor disse que, se pudesse, só filmaria na Polônia, perto de casa. E se aparecesse um convite para fazer um filme no Brasil?
Se o tema envolvesse o Brasil e aqui fosse o lugar certo para filmar, lógico que viria. Essa é a minha primeira vez no Brasil e estou adorando. Tem um ótimo clima. As pessoas são muito amigáveis e o país é bastante casual.

E a perda do amigo o ator Dennis Hopper, que faleceu esse ano?
Dennis foi uma perda irreparável. Era um ótimo amigo e um grande ator. E cada vez mais essa geração vai desaparecer. Mas ainda temos representantes. Pessoas fortes como o Roman, que passou por uma enorme dificuldade. Uma injustiça.

Sobre a retrospectiva no Brasil, vão ter raridades entre os filmes do senhor que passarão nesta homenagem: Rysopis, Walkower e Bariera. Há quanto tempo o senhor não vê estes filmes?
Assisti a esses filmes há muito tempo atrás. Tem uns vinte anos que não os vejo. Uma mostra é sempre uma oportunidade para quem não assistiu.

Bariera é um filme de uma liberdade extraordinária que ecoa o melhor do cinema dos anos 1960 da Europa, como Godard, Resnais, Fellini e Antonioni. Há uma atmosfera de fábula, de dança, de sonho.
É uma parte da nouvelle vague. Nos anos 60, em toda a Europa estávamos fazendo filmes assim. Em todo festival que eu ia, encontrava os mesmos realizadores e conversávamos.

Deep end está fazendo 40 anos de lançamento e está fora de circulação há muitos anos. Apareceram boatos sobre um lançamento especial em DVD por esses 40 anos. O que o senhor sabe disto?
A Bavarian Studios estará lançando em uma edição recheada de entrevistas comigo, o elenco e diversos membros da equipe técnica. Talvez até o músico Cat Stevens participe, pois ele fez a trilha sonora.

Como foi trabalhar como ator em Senhores do cirme, de David Cronenberg?
Foi maravilhoso. David tinha um ótimo roteiro e um elenco fabuloso. Eu trabalhei com Viggo Mortensen e Naomi Watts. Foi um prazer trabalhar com essas pessoas.

Depois de ter morado tantos anos nos EUA qual sua opinião sobre o cinema de Hollywood?
Eu não sou um homem de Hollywood. Meus dois últimos filmes foram feitos na Europa. E talvez nunca mais volte lá para morar. Para ser honesto, eu assisto a poucos filmes. Quando a Academia me envia todos aqueles filmes para assistir, já que sou membro, vejo alguns. Atualmente, o cinema não me dá tanto prazer. E foi por isso que meus dois últimos filmes são bem diferentes do normalmente se vê nas telas.
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REPORTAGEM POR : Mario Abdabe Especial para o Correio
FONTE: Correio Braziliense online, 30/09/2010

Marcelo Piñeyro - Entrevista

“A ditadura atrapalhou o cinema”

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Cineasta argentino culpa o
regime militar do seu país pelo isolamento de diretores
e de suas produções

Rio de Janeiro — Apesar da rivalidade no futebol, argentinos e brasileiros são antenados quando o assunto é cinema. Existe um interessante intercâmbio entre as duas nações. Prova disso é a escolha da Argentina como país homenageado no Festival do Rio que acontece até 7 de outubro. Um dos convidados para prestigiar a mostra é o cineasta Marcelo Piñeyro, diretor de filmes como Prata queimada e O método, entre outros. Ele traz na bagagem seu novo filme Viúvas sempre às quintas. Muito simpático, Piñeyro falou com o Correio Braziliense sobre o cinema argentino, seus filmes e também sobre os novos talentos brasileiros.

Nesta última década, têm surgido vários cineastas argentinos com destaque internacional. Qual a razão?
Porque os filmes não viajavam para os festivais. Hoje em dia também há muito mais festivais do que nas décadas passadas. Também tivemos o advento da internet. A informação chega quase que instantânea. Nos anos 1960, às vezes, demorava anos para um filme conseguir chegar a um outro país. Tudo isso começou a mudar nos anos 1990. Filmes argentinos começaram a fazer sucesso na Espanha e na França. Outro fator que atrapalhou foram os anos de ditadura militar na Argentina. Não existia cinema nessa época. E os filmes que foram feitos não tinham nada haver com a realidade argentina e com o povo. Tinham poucos filmes interessantes na época da ditadura militar.
Pela estrutura policial, Viúvas sempre as quintas lembra Cinzas no paraíso,que você dirigiu em 1997. Parece sim, mas eu acho que tem mais haver com O método. Ambos os filmes têm o mesmo tipo de protagonista. Um personagem preocupado com vários tipos de valores sociais. São filmes que falam de um fim de uma era. Em Viúvas, o tema mais importante é a incerteza.

A decadência da família parece ser também um tema recorrente.
Meus filmes representam a minha visão da vida. Não falo sobre uma família específica. Eu acho que o conceito de família está em crise no mundo há tempos. Isso não quer dizer que não acredite no conceito de família. Mas acho que devemos encontrar um outro formato para que futuramente a família possa sobreviver.

Em Viúvas, você trabalha de novo com Leonardo Sbaraglia, depois de Tango feroz, Cavalos selvagens e Prata queimada. E também com Ernesto Alterio,que você fez Tango feroz e O método. Qual o motivo de convidar vários atores com quem já trabalhou antes?
Se procurar, você vai perceber vários atores em diversos dos meus filmes. Isso é confiança. Diretor e ator precisam ter essa relação. Às vezes, eu escrevo pensando no ator e outras não. Mas todos os atores que escolhi foram porque eles podiam expandir o papel. Isso é muito importante no projeto.

Face ao atual momento de crise financeira mundial poucos anos depois de a Argentina ter vivido uma forte crise interna, você tem tido dificuldade de conseguir financiamento para seus filmes?
Por sorte, nunca tive dificuldades (risos). Meu próximo filme terá investimento da Espanha, da França e da Inglaterra.

Pode falar algo sobre o seu novo projeto?
O título provisório é Ismael. Sobre um garoto africano tentando viver na Europa. E o filme já tem financiamento. Só tive dificuldade para financiar meu primeiro filme, mas depois todos eles não tiveram esse tipo de problema.

Tem algum cineasta jovem brasileiro que você gosta?
Dos novos diretores brasileiros, eu admiro o Karim Aïnouz. Tive a honra no Festival do Rio de 2006, quando fiz parte do júri, de premiar O céu de Suely. Seu ultimo filme, Viajo porque preciso, volto porque te amo, é sensacional. Eu vi três filmes dele, fora esses dois, também assisti Madame Satã. Ele é um artista. Eu também gosto muito também de Cinema, aspirinas e urubus, do Marcelo Gomes.


"Os filmes que foram feitos (durante o período militar)
não tinham nada haver com a
 realidade argentina e com o povo”
Marcelo Piñeyro, diretor

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REPORTAGEM POR Mario Abbade - Especial para o Correio
FONTE: Correio Braziliense online, 30/09/2010

Terra à vista!


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Cientistas norte-americanos anunciam ter descoberto
 primeiro planeta potencialmente habitável fora do Sistema Solar.
O Gliese 581g teria água,
temperatura média tolerável e
 gravidade aceitável



Carolina Vicentin
Laurie Hatch/Divulgação
"Nós tínhamos planetas dos dois lados da zona habitável,
 um muito quente e outro muito frio.
Agora temos um exatamente no meio,
no lugar certo”
Steven S. Vogt, astrônomo

Se as pesquisas espaciais fossem representadas por imagens terrenas, seria possível dizer que o homem encontrou um novo continente. Ou, pelo menos, indícios de outro lugar com características propícias à vida. Cientistas norte-americanos divulgaram ontem a descoberta do primeiro exoplaneta (fora do Sistema Solar) potencialmente habitável, com características semelhantes às da Terra (veja ilustração). O corpo celeste fica a uma distância de 20,3 anos-luz daqui, próximo a uma estrela-anã vermelha chamada Gliese 581.
Os pesquisadores da Universidade de Santa Cruz, na Califórnia, e do Instituto Carnegie, em Washington, passaram 11 anos observando a estrela — e seus planetas. Com a ajuda de telescópios instalados no Havaí, eles conseguiram identificar a massa e a órbita do chamado Gliese 581g, além da distância entre ele e a estrela. O estudo, que foi submetido à publicação no Astrophysical Journal, também apontou uma temperatura média na superfície do local variando entre -31°C e -12°C.
“Isso é apenas uma estimativa, uma vez que a temperatura depende da composição atmosférica do planeta, aspecto que nós não conseguimos observar com os atuais telescópios”, explica Douglas Galante, doutor em astrobiologia pela Universidade de São Paulo. Douglas ressalta que essa é a primeira vez que cientistas conseguem encontrar um planeta dentro da chamada zona habitável. Essa zona é encontrada a partir de cálculos da distância entre o planeta e sua estrela. Com isso, os cientistas conseguem prever a existência, ou não, de água em estado líquido, essencial à vida.
O astrônomo Steven S. Vogt, um dos líderes do estudo, ressaltou ao jornal inglês The Guardian a importância da descoberta: “Nós tínhamos planetas dos dois lados da zona habitável, um muito quente e outro muito frio. Agora temos um exatamente no meio, no lugar certo”.
Para concluir que o novo planeta tem condições para a vida, os pesquisadores observaram atentamente o comportamento da estrela Gliese 581. “Buscar exoplanetas é uma coisa mais complicada do que parece. Então, nós utilizamos técnicas para tentar perceber o movimento da estrela”, esclarece Douglas. Em sistemas solares, o astro principal não fica estático, e é isso que ajuda os pesquisadores. “Essa descoberta foi difícil, porque o planeta é tão pequeno que a variação da Gliese 581 também é baixa”, contou Eugenio Rivera, um dos autores do estudo, ao Correio. “Outro problema é que os outros planetas do sistema também exercem efeito sobre a estrela.”
Apesar da importância do achado, é pouco provável que o homem vá visitar o novo planeta. “Se andássemos na velocidade da luz, levaríamos 20 anos para chegar lá. Nossas sondas são ainda piores: se movem a um milionésimo da velocidade da luz”, compara o astrobiólogo da USP. Por causa disso, descobertas futuras sobre o “novo continente” dependem da evolução dos telescópios.
A colonização do espaço ainda pode estar distante da realidade, mas estudos como esse são essenciais para a ciência. “Com isso, podemos entender como acontece a formação de grandes e pequenos planetas”, destaca Douglas. A descoberta também permite que o homem observe como surgiu a vida. “Esse é um pequeno planeta que, muito provavelmente, tem uma superfície sólida e com água. Nós simplesmente vamos continuar observando o planeta e sua estrela. Novas tecnologias poderão, no futuro, nos ajudar a aprender mais sobre ele”, diz Eugenio Rivera.
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FONTE: Correio Braziliense online, 30/09/2010

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Bjorn Lomborg - Entrevista

'Eu não mudei de ideia', diz ex-cético Lomborg
Imagem da Internet

O cientista político dinamarquês Bjorn Lomborg ficou famoso dez anos atrás ao publicar O Ambientalista Cético. No best seller, acusava ONGs de manipular dados para que governos investissem pesado no combate às mudanças climáticas. O termo cético virou moda, mas Lomborg recuou. Em Smart Solutions to Climate Change (Soluções Inteligentes para as Mudanças Climáticas), elege o tema como prioritário. Ressalta, porém, que a solução não está no corte de emissões de carbono. Nesta entrevista ele fala do livro, já levado às telas - o filme estreou este mês no Canadá.

Eis a entrevista.

Por que o senhor mudou de ideia?
Eu não mudei de ideia! Desde o primeiro livro digo que as mudanças climáticas existem e são importantes. Mas, nestes primeiros anos de discussão, a solução mais aclamada foi a redução das emissões de carbono, forma tremendamente ineficiente de resolver o problema. Disse isso antes e confirmo no novo livro, chancelado por 28 dos maiores economistas do mundo que lidam com a questão.

Então, o que mudou?
O que digo no novo livro é que deveria haver um aumento significativo no investimento em pesquisa e desenvolvimento de tecnologias de "energia limpa". É verdade que não disse isso no primeiro livro, porque a possibilidade não estava em discussão. E mais interessante é ver que agora temos a confirmação, por alguns dos maiores economistas do mundo, de que esse é um dos melhores caminhos para lutar contra o aquecimento.

Por que o corte de emissões é ineficiente?
Se você olhar pelo lado político, vai perceber que estamos tentando cortar emissões desde a Conferência do Rio, em 1992. Não conseguimos. Do ponto de vista econômico, não é menos trágico: mesmo que conseguíssemos cortar emissões, estaríamos fazendo esse sacrifício para conseguir um benefício muito pequeno a um custo altíssimo. O único compromisso de corte de emissões em larga escala foi feito pela União Europeia, que prometeu redução de 20% até 2020. Mesmo que a UE consiga, os modelos econômicos mostram que o custo seria de US$ 250 bilhões ao ano. E qual o efeito disso? Ao final do século, teríamos reduzido a temperatura em apenas 0,05 grau. Para cada dólar gasto, evitaríamos só 2 centavos de prejuízo causado pelas mudanças climáticas. O fracasso de Copenhague deveria ter feito com que repensássemos esse modelo.

O sr. propõe no novo livro um imposto sobre emissões.
O CO2 é um problema quando emitido, provoca danos. O economista Richard Tall calculou esses danos em US$ 7 por tonelada emitida. Se você taxar em US$ 7 cada tonelada extra, terá uma receita maior do que aqueles US$ 250 bilhões ao ano para lutar contra efeitos do aquecimento. Agora, não há taxa no mundo que vá fazer as pessoas pararem de consumir combustível fóssil. Podem até consumir menos, mas vão continuar. A taxa sozinha não resolve. O mesmo vale para o mercado de carbono. Pode ajudar a reduzir, mas não será a parte mais eficiente da solução. Como fazer para reduzir em 80%? Com investimento em tecnologia! Estamos colocando o carro na frente dos bois: pedindo às pessoas que cortem emissões sem lhes dar ferramentas para isso.

Qual é a sua sugestão?
Em vez de gastar tentando cortar emissões, deveríamos investir pesado para baratear tecnologias de geração de energia solar, eólica e outras. Aí, todo mundo iria querer trocar de matriz energética. Tornar o petróleo caro para coibir o uso é politicamente complicado. Mas tornar energias verdes baratas a ponto de todo mundo querer usá-las é possível e mais barato que reduzir emissões. Para cada dólar gasto em pesquisa evitamos US$ 11 de prejuízos causados por mudanças climáticas.

Parece que muitas tragédias ambientais são interpretadas como resultado de mudanças climáticas. Há exagero?
O aquecimento tem efeitos cruéis, mas creio que às vezes exageramos perigosamente na interpretação deles. O perigo de exagerar é que nos faz esquecer o que devemos fazer: melhorar a infraestrutura para lidar com catástrofes, por exemplo. Do outro lado, há a questão do medo: se você assusta as pessoas, chama sua atenção. Mas aí terá de assustá-las cada vez mais para ter atenção. E corre o risco de que deixem de acreditar em você.

Qual seria a melhor abordagem para conscientizá-las?
Temos de ser honestos, porque estamos falando aqui dos próximos 90 anos. Você não pode amedrontar as pessoas por todo esse tempo.
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A entrevista é de Karina Ninni e publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 29-09-2010.
Fonte: IHU online, 29/09/2010

Gilles Lipoveysky

Bem-estar é o novo luxo


O sociólogo francês Gilles Lipovetsky
conta como a era do hiperconsumo
 está transformando nossos
 conceitos e vontades


O sociólogo francês Gilles Lipovetsky, 66, tornou-se popular por escolher o consumo, a moda e o luxo como objetos de estudo. De jeans e sandálias, o autor de "A Felicidade Paradoxal" e "O Império do Efêmero" recebeu a reportagem na cobertura de um prédio na zona sul de São Paulo, onde foi hospedado.
Na cidade para um fórum mundial de turismo, Lipovetsky veio falar sobre o "consumo de experiência".
Abaixo, fala também da obsessão pela saúde e afirma: bem-estar é o novo luxo.

Folha - O que é "consumo de experiência"?
Gilles Lipovetsky - Vai além dos produtos que podem me trazer esse ou aquele conforto, ou me identificar com essa ou aquela classe. As razões para escolher um celular, hoje, vão além das especificações. Queremos ouvir música, tirar fotos, receber e-mails, jogar. Ter vivências, sensações, prazeres. É um consumo emocional.

Então, o que é o luxo, hoje?
O luxo, apesar de ainda existir na forma tradicional, também está mudando.
Quando buscamos um hotel de luxo hoje, não queremos torneiras de ouro, lustres. O luxo está nas experiências de bem-estar que o lugar pode oferecer. Spa, sala de ginástica, serviço de massagem. O bem-estar é o novo luxo.

Como consumir bem-estar?
Nos anos 60 e 70, quando o consumo de massa possibilitou que famílias de classe média se equipassem com produtos, o bem-estar ainda era medido em termos de quantidade. Hoje, o que está na cabeça das pessoas é o bem-estar qualitativo: a tal qualidade de vida. O que inclui a qualidade estética.

Qual a relação entre busca de bem-estar e uma sociedade mais e mais "medicalizada"?
A obsessão com a saúde e a prevenção é o lado obscuro do hiperconsumismo, gerador de ansiedade quase higienista. A quantidade de informação disponível torna o consumo complicado. Na alimentação, os consumidores estão ávidos pela leitura dos rótulos: quais são os ingredientes, de onde vêm, podem causar câncer, engordar? Há 40 anos, íamos ao médico uma vez por ano, se muito.
Hoje, um indivíduo faz até dez consultas por ano. O consumo de exames, para nos fazer sentir "seguros", cresce exponencialmente. Sintoma do hiperconsumismo: queremos comprar nossa saúde.

Como vê as campanhas contra o cigarro e a obesidade?
O hiperconsumidor está preso num emaranhado de informações e ele tem muitas regras a seguir. Parar de fumar faz parte da lógica da prevenção. É um sacrifício do presente em prol do futuro.
No hiperindividualismo, a gestão do corpo é central. Esse autogerenciamento permanente explica, também, a onda do emagrecimento.
Expor-se ao sol é arriscado, mas é considerado bonito ter a pele bronzeada. Privar-se de comer é privar-se do prazer. É um paradoxo que todos vivem e, por isso, no caso dessas mulheres subjugadas ao terrorismo da magreza, elas sentem culpa. As regras são contraditórias.

Qual é a saída para toda essa ansiedade?
As compras. Antes as pessoas iam à missa, agora elas vão ao shopping center.
Comprar, ir ao shopping, viajar -são as terapias modernas para depressão, tristeza, solidão. Você pode comprar "terapias de desenvolvimento pessoal". Um fim de semana zen, um pacote de massagens. Todas as esferas de vida estão subjugadas à lógica do mercado.

Por que as pessoas não se sentem felizes?
O hiperindividualismo aparece quando nossa sociedade nega as instituições da coletividade. A religião, a comunidade, a política. Os deuses são os homens. O indivíduo é um agente autônomo que deve gerenciar a própria existência. Esse indivíduo pode fazer escolhas privadas -que profissão fazer, com quem se casar, o que comprar- mas está submetido às regras da globalização econômica de eficácia, de produtividade, juventude, consumo. O acesso ao conforto material, enquanto sociedade, não nos aproximou da felicidade. Há tanta ansiedade, tanto estresse, tanta angústia e tanto medo que a abundância não consegue proporcionar um sentimento de completude.

Consumimos para esquecer?
Também. Mas há um outro lado. Desenvolvemos o que eu chamei de "don juanismo" [ele cita o personagem "Don Juan", da ópera de Mozart, que "conheceu" 1.003 mulheres]. Todos nos transformamos em Dons Juans.
Somos todos colecionadores de experiências. Temos medo que a vida passe ao largo.
Existe um senso comum que nos diz que se não tivermos vivido tal ou tal experiência, teremos perdido nossa vida.
É uma luta contra o tédio, uma busca incansável e viciada pela novidade, pela fuga da rotina.
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Reportagem por: IZABELA MOI - EDITORA-ASSISTENTE DA ILUSTRÍSSIMA
Fonte: Folha online, 28/09/2010

O que acontece quando as pessoas não dizem o que pensam?

Joseph Grenny,
especialista em conversas decisivas e
autor de três livros que estiveram na lista dos mais vendidos
do The New York Times,
apresenta ferramentas para dialogar e negociar
quando há muito em jogo.

Imagine que você é o gerente geral de um grande hotel. Uma cliente de longa data é uma negociadora dura, que exigiu diárias a preços muito reduzidos. Você concordou, desde que ela lhe passasse 100% do negócio dela e fizesse um número mínimo de reservas. Devido à retração da economia, a empresa dela não cumpriu a cota mínima de reservas nos últimos dois anos. Você manteve os preços mesmo assim. Mas agora você soube que no último ano eles realizaram duas conferências em outro hotel na cidade. Agora a cliente está ao telefone com você neste exato momento. Ela começa dizendo: “Estou por aqui com a má qualidade de seu serviço! Na semana passada, seu pessoal mandou embora dez participantes da minha conferência dizendo que vocês estavam lotados!” E agora, pergunta Joseph Grenny, como você responderia?
“Discussões de alto risco não vêm com avisos e lembretes. Na maioria das vezes, vêm como surpresas desagradáveis”, comenta Grenny. Para ele, as emoções também não ajudam muito, porque as conversas decisivas são definidas por suas características emocionais. “Nossa capacidade de sairmos do conteúdo de uma discussão e focarmos no processo é inversamente proporcional ao nível de nossas emoções”. Ele explica que quanto mais nos importamos com o que está acontecendo, menor é a probabilidade de pensarmos como estamos nos comportando.
Grenny destaca que para falar honestamente, sem ofender alguém, temos de encontrar uma forma de preservar a segurança. É mais ou menos como dizer a alguém para dar um soco no nariz do outro, sem machucá-lo. Como podemos falar o execrável e ainda preservar o respeito? O professor afirma que podemos fazê-lo, se soubermos como misturar cuidadosamente três ingredientes: confiança, humildade e aptidão.

Detectando conversas decisivas

Joseph Grenny ensina que primeiro é preciso permanecer alerta para o momento em que a conversa passa de uma discussão rotineira ou inofensiva para decisiva. Da mesma forma, ao prever sua participação em uma conversa complicada, preste atenção ao fato de estar entrando em uma zona de perigo. Caso contrário, você será facilmente sugado por jogos tolos antes que perceba o que aconteceu. E quanto mais se afastar do caminho, mais difícil será de retomá-lo.
“Para ajudar a detecção rápida de problemas, reprograme sua mente para prestar atenção aos sinais que sugerem a participação em uma conversa decisiva”. O professor explica que algumas pessoas notam primeiro os sinais físicos, como o frio no estômago. Outros, percebem as emoções antes dos sinais físicos. Notam que estão amedrontados, magoados ou irados e começam a reagir a esses sentimentos ou a reprimi-los. O primeiro sinal de alguns indivíduos não é físico ou emocional, mas comportamental. “É como uma experiência extracorpórea. Eles se vêem alteando a voz, apontando o dedo como se fosse uma arma carregada ou mantendo o silêncio. Só então percebem como estão se sentindo”, descreve.
“Portanto, tire um momento para pensar em suas conversas mais difíceis”,aconselha. Quais são os sinais que podemos usar para reconhecermos que nosso cérebro está começando a falhar e que corremos o risco de nos afastarmos do diálogo positivo? Seria a questão do hotel uma questão de conteúdo, padrão ou relacionamento? Grenny aposta que se emoções fortes o mantêm preso ao silêncio ou à agressividade você deve tentar refazer o seu caminho, com as seguintes ações:

Observe seu comportamento – se você perceber que está se afastando do diálogo, pergunte-se o que está, de fato, fazendo.
Entre em contato com os seus sentimentos – aprenda a identificar minuciosamente as emoções por trás de sua história.
Analise sua história – questione suas conclusões e procure outras explicações possíveis por trás de sua história.
Retorne aos fatos – abandone sua certeza absoluta por meio da distinção entre fatos concretos e história inventada.
Preste atenção às histórias elaboradas – histórias de vítima, vilão e inútil encabeçam a lista.
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Fonte: HSM Online - 28/09/2010

O que é filosofia?

Paulo Ghiraldelli Jr*
O religioso olha para as coisas e fica maravilhado com a criação de Deus. Talvez até espere que Deus continue intervindo na natureza, fazendo mágicas ou, como o religioso diria, milagres.

O cientista olha para as coisas e tenta quantificá-las. Ele espera que Galileu esteja certo, que a Natureza fale a linguagem da matemática. Como Durkheim prometeu, ele, o cientista, espera que também a Sociedade fale algo matematizável.

O filósofo não pensa em milagres ou em matematização, ele se espanta a respeito do que está vendo e sentindo. No lugar da tranqüilidade dos outros, que enxergam tudo como banal, ele desbanaliza o banal ao dizer o que todos vêem e que, no entanto, não os levava a nenhuma angústia.

Muito mais pode ser dito sobre “o que é filosofia?”. Mas se, no ponto de partida, for dito isso, já se disse muito.

Pois é, o texto de hoje é curtinho. Mas valeu, não?
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© 2010 Paulo Ghiraldelli Jr, filósofo, escritor e professor da UFRRJ
Fonte: http://ghiraldelli.pro.br/2010/09/28/1384/
PS: É da Fran a idéia do desenho, eu apenas completei a idéia.

Quanto ter para ser feliz?

Economistas de universidade norte-americana concluem que o aumento da renda traz mais satisfação pessoal, mas só até certo ponto. Especialistas alertam para perigo de associar felicidade apenas aos bens materiais


Oswaldo Reis/Esp. CB/D.A Press
Márcia e Wellington, com os filhos, Bruno e Breno:
“Somos felizes”


Wellington e Márcia Dias se conheceram em 1996. Mesmo tendo apenas 19 anos e ainda estarem no ensino médio, os dois se casaram naquele ano. Foram tempos de muito trabalho. Ele era office boy e ela, recepcionista. Hoje, 14 anos depois, ele é gerente de contas de uma empresa de telefonia e ela, analista de finanças. Com os novos empregos, vieram o aumento da renda da família e uma nova forma de ver a vida. “Atingimos nosso objetivo e somos felizes”, diz Márcia.
Não é exagero da analista falar que maiores salários vieram acompanhados de felicidade. Um estudo de dois pesquisadores da Universidade de Princeton, nos Estados Unidos, publicado recentemente na revista Proceedings of the National Academy of Science, mostra que há sim uma relação entre renda e nível de satisfação pessoal. Daniel Kahneman e Angus Deaton analisaram as respostas de mais de 450 mil americanos com a ajuda da organização Gallup. As perguntas procuravam descobrir a satisfação apresentada por cada participante. O resultado: a felicidade aumentava proporcionalmente à renda, mas até certo ponto. Parava de crescer quando as pessoas tinham um ganho igual ou maior que US$ 75 mil anuais.
No caso de Wellington e Márcia, cuja renda no começo do casamento era pequena, os ganhos viraram conquistas importantíssimas, como a possibilidade de ter filhos e criá-los bem e uma casa própria. Depois de morar anos na casa da mãe do gerente de contas e economizar cada centavo, o casal vive com os filhos Bruno, 9 anos, e Breno, 5, em um apartamento do Sudoeste. “O que a gente planejou, a gente construiu. Conseguimos estudar, ter filhos, trabalhar e juntar dinheiro para uma vida melhor. Enfim, somos felizes”, contam.
No entanto, como o estudo dos americanos apontou, se a renda dos dois continuar aumentando, isso não vai garantir que eles se sintam cada vez mais felizes, infinitamente. “Altos salários não trazem a felicidade, mas dão uma vida que você pensa que é melhor”, afirma, por meio de sua assessoria, Kahneman, ganhador do Prêmio Nobel de Economia em 2002. Ou seja, ganhar muito dinheiro proporciona uma vida mais confortável, mas não garante que ela seja completamente feliz. A economista da Universidade de São Paulo Vera Rita de Mello não se surpreende com o resultado da pesquisa: “Você pode ser infeliz se faltar muito dinheiro, mas o oposto não é garantido”, diz.

Realização

O estudo de Kahneman e Deaton traz novos dados ao antigo debate sobre a relação entre bens materiais e satisfação pessoal. Para o professor de filosofia da Universidade de Brasília (UnB) Ubirajara Calmon, a felicidade é o equilíbrio entre o sentir e o ter. “Ser feliz seria a realização plena das necessidades da natureza humana”, define. E essas necessidades vão muito além do dinheiro.
Por isso, dizem os especialistas, existe um risco sério em associar a felicidade ao que se possui e embarcar em uma onda de consumo exagerado. “A nossa satisfação pessoal e social está muito vinculada ao consumo. Claro que é bom ter, mas dizer que estamos todos ótimos nessa fúria consumista soa estranho”, ressalta Vera Lúcia. O economista Otto Nogami acredita que o consumo gera uma eterna busca por satisfação. “Nesses casos, somos eternos insatisfeitos, com felicidades pontuais”, sentencia.
Não é de se estranhar, portanto, que mesmo pessoas que têm suas necessidades financeiras realizadas sintam vontade de se envolver em projetos que tragam novo sentido à vida. O estudante de desenho industrial Henrique Eira tinha tudo o que um jovem de 22 anos, em teoria, poderia querer: aluno de uma universidade pública, morava em um bairro de classe alta, tinha carro, emprego e já havia realizado várias viagens ao exterior. Mesmo assim, ele queria se dedicar a projetos que lhe parecessem mais recompensadores, algo que ele foi buscar no Peru.
Desde o ano passado, depois de trancar a universidade, o jovem partiu para a região de Trujillo, onde ensina fotografia a um grupo de adolescentes de baixa renda da região. Com as fotografias, os alunos criam produtos para vender, como cartões portais e calendários. Dinheiro é mais importante que felicidade? Henrique discorda. “Acredito que sou e serei mais feliz se perseguir as coisas de que mais gosto de fazer e que podem fazer alguma diferença para os outros”, diz.
Calmon, da UnB, faz coro com o jovem ao discordar que a posse é sinônimo de felicidade. Então, qual seria o caminho para ser feliz? O filósofo diz que não há um só, mas deixa a dica: “A felicidade é um conceito evolutivo, está sempre mudando com o passar das civilizações. A felicidade está em construção”.

A verdadeira felicidade está na própria casa, entre as alegrias da família”
León Tolstoi

“Na plenitude da felicidade, cada dia é uma vida inteira”
Johann Goethe

“Não existe um caminho para a felicidade. A felicidade é o caminho”
Mahatma Gandhi

“A felicidade nada mais é que o sentimento de potência, o poder em potência, a própria potência”
Friedrich Nietzsche

“Felicidade é ter o que fazer, ter algo o que amar, e algo o que esperar”
Aristóteles

Cuidados com as dívidas

Pelas conclusões de Kahneman e Deaton, o Brasil está vivendo um considerável salto em seu nível de felicidade. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 30 milhões de brasileiros saíram das classes D e E e chegaram à C entre 2003 e 2008. Ou seja, passaram a ter renda familiar mensal entre R$ 1.115 e R$ 4.807. “O brasileiro se privou de muitas vontades, por isso, agora, ele ainda está preenchendo sua caixa de desejos”, avalia o economista Otto Nogami.
A melhora no padrão de vida dos brasileiros, mesmo sendo uma notícia muito boa, traz algumas preocupações para os especialistas. Nogami ressalta que o risco de as pessoas se entusiasmarem com o aumento de renda é fazerem dívidas que não podem pagar. “A pessoa não quer mais um carro que sirva para a locomoção. Primeiro o carro zero, depois o carro maior. Insatisfeita, vai querer o carro de luxo. E não para aí: ainda vai querer o importado”, exemplifica.
“Quanto maior a renda, maior o acesso ao crédito. As pessoas ficam expostas a grupos de consumo maior, onde podem querer entrar. É aí que mora o perigo”, alerta Vera Rita de Mello, da Universidade de São Paulo (USP). Segundo ela, quando o aumento de renda é gradual, há mais chance de as finanças darem certo. “Com um aumento gradativo, é mais fácil a pessoa se organizar para saber o que fazer com essa renda nova”, explica.
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Fonte: Correio Brasiliense online, 29/09/2010

Sobre a paixão

MARCELO COELHO*

Imagem da Internet
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Neste domingo, a Sinfônica Heliópolis entrou em cena,
e já na entrada deu um espetáculo

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VÁRIAS COISAS me incomodam nos concertos ao vivo. O maestro que entra e sai, a orquestra que se levanta e se senta, as tosses e os silêncios, tudo me parece de uma formalidade, de uma cerimônia e de um rigor insuportáveis.
Fui à Sala São Paulo neste domingo, entretanto, para ouvir uma orquestra diferente. Não era a Osesp, que tem alta qualidade, mas a de Heliópolis, formada por jovens que se beneficiaram, em sua maioria, dos programas sociais desenvolvidos pelo Instituto Baccarelli naquela comunidade de periferia.
Preparei-me para o pior. Uma vez ouvi no rádio não sei que orquestra de jovens carentes interpretando a "Nona Sinfonia" de Beethoven. Beethoven teria se revirado na tumba, não fosse surdo.
Mas tudo foi diferente neste domingo. A Sinfônica Heliópolis entrou em cena, e já na entrada deu um espetáculo. Quatro percussionistas apareceram, um começou uma espécie de afinação na cuíca, que no fim não era afinação, mas prelúdio para um número curto, pelo qual se convocavam os demais instrumentistas a entrar no palco.
Eles entraram, na ordem de seus naipes, num passo dançado, seguindo o ritmo da percussão. Acenaram para o público como uma espécie de comissão de frente de escola de samba, enquanto a plateia e uma garotada atrás do palco (eram os membros de um coral que se apresentaria depois) davam gritos de torcida.
Os músicos se sentaram, fazendo uma "ola"; os violoncelistas giraram seus instrumentos como um pião. As luzes abaixaram, e entrou uma mocinha negra, com uma trompa. Tocou o começo de "Terezinha de Jesus", e disse ao microfone que um sonho que se faz sozinho é apenas um sonho. Já um sonho que se faz coletivamente, continuou, "vira realidade".
A orquestra respondeu ao solo da trompa, a luz aumentou de novo e só depois disso entrou o maestro. Como a afirmar a preponderância daqueles jovens, e de seus sonhos, sobre o papel, que nem por isso ficou menos destacado, do regente Roberto Tibiriçá.

"Quem tem "paixão" pelo que faz costuma
ser cego para os resultados que atingiu."

A formalidade das apresentações de música clássica não foi negada nessa entrada emocionante da Orquestra de Heliópolis. Ao contrário, toda a coreografia do "entra-e-sai", do "aplaude-e-espera", foi até intensificada. Mas para se tornar não um ato vazio, mas um momento de paixão.
Desconfio muito da banalização desse último termo. Do escritor ao chefe de cozinha, não existe quem não recomende "paixão" a quem almeja sucesso profissional.
Pessoalmente, prefiro termos como seriedade, persistência, gosto e vocação. Quem tem "paixão" pelo que faz costuma ser cego para os resultados que atingiu. Às vezes, o uso do termo representa mesmo uma espécie de modéstia: o "apaixonado" pela profissão de fotógrafo ou de sushiman diminui o próprio sucesso ao se descrever como uma vítima do que faz.
Poderia falar em "destino", então; mas "destino" conota uma passividade que, a despeito da etimologia, "paixão" não tem. Estranhamente, hoje em dia "paixão" aparece como uma coisa voluntária, como um misto de coragem e de capricho individual.
Acima de tudo, é algo que não admite crítica; o sujeito vitimado pela mania de criar cachorros de raça ou colecionar relógios de ponto ganha a dignidade de quem possui o direito inquestionável de se dedicar à própria obsessão.
A apresentação da orquestra de Heliópolis não se mostrou, naturalmente, acima de qualquer crítica. A "Quarta Bachiana Brasileira" correu lindamente, mas a "Oitava Sinfonia" de Beethoven sofreu com as cordas, um bocado sem brilho. Em todo caso, era uma orquestra completa, em seus fagotes, oboés e trompas, sem desafinação, entregue às próprias forças, dominando-as, afirmada, sem precisar da condescendência de ninguém.
A orquestra de Heliópolis se prepara para uma turnê europeia; Alemanha e Holanda estão no roteiro. Não terá a pretensão de rivalizar com as orquestras de lá.
Mas não será recebida, pelo que vi, com o mero assentimento caridoso que merecem as boas iniciativas sociais. Será recebida com o respeito que cada instrumentista, e o maestro, dedicam a si mesmos: não se trata da retórica habitual em torno da paixão, mas de uma paixão verdadeira; aquela que só nos sonhos, quem sabe, somos capazes de entrever.
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*Jornalista. Escritor. Graduado em ciências sociais com mestrado em sociologia. Assina uma coluna semanal no caderno "ilustrada" da Folha de São paulo.
Fonte: Folha online, 29/09/2010

terça-feira, 28 de setembro de 2010

Por que não vivemos para sempre?

Ao envelhecer, as células começam a nos trair.
Desvendando os segredos do envelhecimento,
 cientistas podem tornar a vida mais longa e saudável

por Thomas Kirkwood

SE VOCÊ PUDESSE PLANEJAR como sua vida terminará – suas últimas semanas, dias, horas e minutos –, o que escolheria? Iria, por exemplo, ficar em boa forma até o último momento, para então ir rapidamente? Muitas pessoas dizem que escolheriam essa opção, mas vejo um detalhe importante. Se você se sente bem em um momento, a última coisa que deseja é cair morto na sequência. E para sua família e seus amigos, que sofreriam a perda, sua morte seria um golpe cruel. Mas lidar com uma doença terminal longa e arrastada também não é muito bom, assim como o pesadelo de perder um ente querido na escuridão da demência.
Preferimos evitar pensar sobre o fi m da vida. Mesmo assim, é saudável fazer essas perguntas, ao menos de vez em quando, e defi nir corretamente os objetivos da política e pesquisa médicas. Também é importante perguntar até onde a ciência pode ajudar os esforços para enganar a morte.
Costuma-se dizer que nossos ancestrais lidavam melhor com a morte, ao menos porque a viam com muito mais frequência. Há 100 anos, a expectativa de vida no Ocidente era 25 anos mais curta que hoje, resultado de muitas crianças e jovens adultos morrerem prematuramente por várias causas. Um quarto das crianças morria de infecções antes do quinto aniversário; mulheres jovens sucumbiam às complicações do parto; e mesmo um jovem jardineiro, ferindo a mão em um espinho, poderia ser vítima de envenenamento.
Durante o último século, o saneamento e a medicina reduziram as taxas de mortalidade nos primeiros anos da vida tão drasticamente que a maior parte das pessoas está morrendo muito mais tarde, e a população como um todo é mais velha que antes. A expectativa de vida está aumentando em todo o mundo. Nos países mais ricos, cresce cinco horas ou mais por dia e, em muitos países em desenvolvimento que estão se livrando do atraso, aumenta ainda mais. A principal causa de morte hoje é o processo de envelhecimento e os vários desastres que ele provoca: o câncer, que leva as células a proliferar fora de controle, ou a doença de Alzheimer, no polo oposto, pela morte prematura dos neurônios.
Até a década de 90, demógrafos previam com confiança que a tendência histórica de aumento da expectativa de vida logo cessaria. Muitos pesquisadores acreditavam que o envelhecimento era prefixado – um processo programado em nossa biologia que resultava em um momento predeterminado para morrer.
Ninguém previu a continuidade do aumento da expectativa de vida. Essa conquista pegou políticos e planejadores de surpresa. Os cientistas ainda estão se acostumando com a noção de que o envelhecimento não é fi xo, que ainda não chegamos ao limite do prazo de vida. Ele muda e continua a mudar, prolongado por razões que ainda não compreendemos bem. O declínio das taxas de mortalidade dos muito velhos está levando a expectativa de vida das pessoas a um território inexplorado. Se as certezas prevalentes sobre o envelhecimento humano desabaram, o que sobra? O que a ciência sabe mesmo sobre esse processo?
Nem sempre é fácil aceitar essas novas ideias, porque os cientistas são humanos, e crescemos com concepções rígidas sobre o envelhecimento do corpo. Há alguns anos, enquanto dirigia com minha família pela África, uma cabra pega sob as rodas do nosso veículo morreu na hora. Quando expliquei à minha fi lha de 6 anos o que acabara de acontecer, ela perguntou: “A cabra era jovem ou velha?”. Fiquei curioso sobre a razão daquela dúvida. “Se ela estava velha, não é triste, porque não teria mais muito tempo para viver, de qualquer jeito”, foi a resposta. Fiquei impressionado. Se atitudes tão sofi sticadas quanto à morte se formam tão cedo, não surpreende que a ciência lute para aceitar a realidade de que a maior parte do que sabíamos sobre o envelhecimento está errado.
Para explorar o pensamento atual sobre o que controla o envelhecimento, vamos começar imaginando um corpo no fi nal da vida. O último suspiro é dado, a morte chega e a vida acaba. Nesse momento, a maioria das células está viva. Sem saber o que acaba de acontecer, elas conduzem, tão bem quanto possível, os processos metabólicos que suportam a vida – usando o oxigênio e os nutrientes à sua volta para gerar a energia necessária à síntese de proteínas e outros componentes celulares e ao suporte a suas atividades (a principal atividade das células).
Em pouco tempo, privadas de oxigênio, as células morrem e, com isso, algo imensamente antigo chega a seu fi m silencioso. Cada célula do corpo que acaba de morrer poderia, se houvesse registros, traçar sua ancestralidade por uma cadeia ininterrupta de divisões celulares iniciada há 4 bilhões de anos com as primeiras formas de vida celular neste planeta.

QUANTO A EXPECTATIVA DE VIDA PODE AUMENTAR?A longevidade média humana vem aumentando há mais de um século no mundo todo (gráfi co). Evidências sugerem, no entanto, que amarras biológicas impedem a maioria das espécies de ultrapassar limites de idade específi cos (abaixo). Pesquisadores esperam que intervenções para o afrouxamento dessas amarras aumentem a idade máxima a que se pode chegar ou, ao menos, ajudem as pessoas a permanecer saudáveis por mais tempo.

A morte é certa. Mas pelo menos algumas de nossas células têm uma propriedade espantosa: são dotadas de algo tão próximo da imortalidade quanto pode ser alcançado na Terra. Quando você morre, apenas um pequeno número de suas células continuará essa linhagem imortal rumo ao futuro – e só se você tiver filhos. Apenas uma célula do seu corpo escapa à extinção – um espermatozóide ou um óvulo – por filho. Os bebês nascem, crescem, amadurecem e se reproduzem, continuando o ciclo.
O cenário que acabamos de imaginar revela não apenas o destino de nosso corpo mortal, ou “soma”, constituído de todas as células não reprodutivas, mas também a quase milagrosa imortalidade da linhagem celular a que pertencemos. A questão principal da ciência do envelhecimento, que dá origem a todas as outras, é: por que a maioria das criaturas tem um corpo mortal? Por que a evolução não levou nossas células a aproveitar a aparente imortalidade da linhagem genética representada pelo espermatozoide e o óvulo? Essa questão foi levantada pela primeira vez pelo naturalista alemão do século 19, August Weismann, e uma solução me ocorreu durante o banho, em uma noite de inverno no início de 1977. Acredito que a resposta, hoje chamada de teoria do soma dispensável, explica muito sobre por que o envelhecimento das diferentes espécies acontece como vemos.

POR QUE ENVELHECEMOS ASSIM

A teoria é mais bem compreendida considerando os desafios que as células dos organismos complexos enfrentam enquanto tentam sobreviver. Elas são danificadas o tempo todo – o DNA tem mutações, as proteínas sofrem danos, moléculas altamente reativas chamadas radicais livres rompem as membranas e a lista segue. A vida depende da cópia e tradução constante dos dados genéticos, e sabemos que o maquinário celular que lida com todas essas coisas, por melhor que seja, não é perfeito. Considerando todos esses desafios, a imortalidade da linhagem genética impressiona.
As células vivas funcionam sob constante ameaça de quebra, e a linhagem não fica imune. A razão por que ela não se extingue em uma catástrofe de erros tem a ver, por um lado, com seus mecanismos altamente sofi sticados de manutenção e reparos e, por outro, com sua capacidade de se livrar dos erros mais sérios por meio de rodadas contínuas de competição. Os espermatozoides são produzidos em quantidades excessivas; normalmente, apenas um deles consegue fertilizar o óvulo. As células que originam os óvulos são produzidas em números muito maiores do que podem ser liberadas; um rigoroso controle de qualidade elimina aquelas que não forem boas o bastante. E, finalmente, se erros passarem por todos esses testes, a seleção natural dá a última palavra sobre quais indivíduos são mais aptos a transmitir seus genes às gerações futuras.
Após o feito aparentemente milagroso de gerar um corpo inteiro a partir de uma única célula – o óvulo fertilizado –, deveria ser relativamente simples sua manutenção indefinida, como o evolucionista americano George Williams apontou. Realmente, para alguns organismos pluricelulares, a ausência de envelhecimento parece ser a regra. A hidra de água doce, por exemplo, mostra um poder de sobrevivência impressionante. Aparentemente não envelhece, já que não mostra aumento de mortalidade ou decréscimo de fertilidade ao longo do tempo, assim como parece capaz de regenerar todo um corpo novo a partir de um pequeno fragmento se for cortada em pedaços. O segredo de sua juventude eterna é o fato de seu corpo ser permeado de células germinativas. Se elas estão em toda parte, não surpreende que um indivíduo possa sobreviver indefi nidamente se não for vítima de danos ou predadores.
Na maioria dos animais multicelulares, no entanto, a linhagem genética é encontrada apenas no tecido das gônadas, onde espermatozóides e óvulos são formados. Esse arranjo tem muitas vantagens. Durante a longa história da evolução, permitiu que outros tipos de células se especializassem – células nervosas, musculares, hepáticas, entre outras necessárias para o desenvolvimento de qualquer organismo complexo, um Triceratops ou um humano.
A divisão de trabalho teve consequências duradouras sobre o envelhecimento e a expectativa de vida dos organismos. Assim que as células especializadas deixaram o papel de continuar a espécie, também abandonaram qualquer necessidade de imortalidade; elas poderiam morrer depois que o corpo passasse seu legado genético para a próxima geração.
Então, por quanto tempo essas células especializadas podem viver? Em outras palavras, por quanto tempo nós e outros organismos complexos podemos viver? A resposta para qualquer espécie tem relação com as ameaças ambientais enfrentadas por seus antecessores enquanto evoluíam e com os custos energéticos da manutenção do corpo em boas condições de operação.
A grande maioria dos organismos morre relativamente jovem por causa de acidentes, predação, infecção ou fome. Ratos selvagens, por exemplo, estão à mercê de um ambiente muito perigoso. Eles são mortos rapidamente – é raro chegarem ao primeiro aniversário. Os morcegos, por outro lado, estão mais seguros porque podem voar.
Enquanto isso, a manutenção do corpo é custosa e os recursos costumam ser limitados. De todo o consumo de energia, uma parte pode ir para o crescimento, outra para os trabalhos físicos e para o movimento e outra para a reprodução. Um pouco dessa energia, no entanto, pode ser armazenada sob a forma de gordura para proteção contra a fome, mas boa parte dela é consumida apenas para reparar os inúmeros danos que surgem a cada segundo de vida do organismo. Outra parte desses escassos recursos vai para a conferência do código genético envolvido na síntese contínua de novas proteínas e moléculas essenciais. E outra ainda movimenta os mecanismos de eliminação de dejetos celulares, ávidos por energia.

EVOLUÇÃO POR ADAPTAÇÃO

É aqui que a teoria do soma dispensável entra: ela afirma que, assim como o fabricante humano de qualquer produto – um carro ou um casaco, por exemplo – espécies que evoluem têm de fazer adaptações. Não compensa investir na possibilidade de sobreviver indefinidamente se o ambiente talvez traga a morte em um intervalo de tempo previsível. Para que a espécie sobreviva, seu genoma deve basicamente manter um organismo em boa forma e permitir-lhe se reproduzir com sucesso nesse intervalo de tempo.
Em todas as fases da vida, até o seu fim, o corpo faz o máximo para se manter vivo – em outras palavras, não é programado para o envelhecimento e a morte, mas para a sobrevivência. Mas, sob a intensa pressão da seleção natural, as espécies acabam priorizando o investimento em crescimento e reprodução – a perpetuação da espécie – em vez da construção de um corpo que possa durar para sempre. Então o envelhecimento é provocado pelo acúmulo gradual durante a vida de diversas formas de danos celulares e moleculares não reparados.

PODEMOS RETARDAR O PROCESSO DE ENVELHECER?
Ninguém sabe ainda como desacelerar o envelhecimento. Mas a pesquisa básica do processo pode render drogas para a longevidade. Alguns compostos podem mexer com o metabolismo celular (uso de energia) para imitar os benefícios vistos em animais; outros podem mudar a forma como as células danifi cadas se comportam.

EM FORMA E COM VIDA LONGA: Certas terapias poderiam redirecionar o metabolismo celular, fazendo a balança pender para o lado das funções de manutenção e reparo em vez de reprodução, mantendo assim os órgãos saudáveis por mais tempo. A restrição calórica aumenta a longevidade média das moscas, vermes e ratos quando comparados a animais submetidos a uma dieta normal (gráfico). Ainda não está claro se isso funcionaria em humanos.

Nenhum programa biológico, então, define precisamente a hora de morrer, mas há cada vez mais evidências sugerindo que, apesar disso, alguns genes possam infl uenciar o quanto vivemos. Tom Johnson e Michael Klass, trabalhando com vermes nematoides, descobriram um gene com esse efeito sobre a longevidade nos anos 80. A mutação de um gene que os pesquisadores denominaram age-1 produziu um aumento de 40% no tempo de vida. Desde então, pesquisadores de muitos laboratórios encontraram vários outros genes capazes de aumentar o tempo de vida dos nematoides, e mutações similares apareceram em outros animais, das moscas-das-frutas até os ratos.
Esses genes costumam alterar o metabolismo de um organismo, a forma como ele usa a energia para suas funções corporais. É comum os pesquisadores descobrirem como os genes desempenham funções nos caminhos de sinalização da insulina, essenciais à regulação metabólica. As cascatas de interações moleculares que constituem esses caminhos mudam os níveis gerais de atividade de literalmente centenas de outros genes responsáveis pelo controle de todos os intrincados processos responsáveis pela manutenção e o reparo das células. De fato, parece que o alongamento do tempo de vida requer a mudança exatamente desses processos que protegem o corpo contra o acúmulo de danos.
A quantidade de comida disponível também interfere no metabolismo. Já na década de 30, pesquisadores descobriram que ratos de laboratório que comiam menos viviam mais. Mais uma vez, a modulação do metabolismo parece ter efeito sobre a taxa de acúmulo de danos, porque os ratos sujeitos a restrição diária aumentam a atividade de uma gama de sistemas de manutenção e reparos. À primeira vista, pode parecer estranho que um animal com pouca alimentação gaste mais, e não menos, energia na manutenção corporal. Um período de fome é, no entanto, um momento ruim para a reprodução e evidências apontam que nesses períodos alguns animais “desligam” sua fertilidade, liberando uma grande fração de sua energia para a manutenção celular.

SOBRE RATOS E HOMENS

ESSA NOÇÃO de restrição calórica – e a aparente capacidade que ela tem de aumentar a longevidade – chamou a atenção de pessoas que desejam viver mais. Humanos que passam fome na esperança de uma vida mais longa deveriam notar, porém, que nosso metabolismo lento é bem diferente daquele de organismos em que essa estratégia foi testada.
Um grande aumento da longevidade realmente foi conseguido em vermes, moscas e ratos. Esses animais, com suas vidas curtas e rápidas, têm necessidade urgente de gerenciar seu metabolismo de modo a adaptá-lo rapidamente às circunstâncias diferentes. Nos vermes nematoides, por exemplo, a maior parte dos efeitos mais espetaculares sobre o tempo de vida resultou de mutações que evoluíram para permitir-lhes mudar seu desenvolvimento de uma forma resistente ao estresse quando se encontrassem em um ambiente hostil e provavelmente precisassem viajar muito para encontrar melhores condições de vida. Nós humanos, em todo caso, podemos não ter a mesma flexibilidade na alteração de nosso controle metabólico. Efeitos imediatos, é claro, ocorrem em humanos que passam por restrições nutricionais voluntárias, mas só o tempo – e muitos anos de fome – dirão se elas têm algum impacto benéfico sobre o processo de envelhecimento e, em particular, sobre a longevidade.
O objetivo da pesquisa gerontológica em humanos, no entanto, é sempre melhorar a saúde no final da vida, e não permitir seu prolongamento indefinido.
Outro fato também está evidenciado: animais que tiveram suas vidas prolongadas também passaram pelo processo de envelhecimento. Ele ocorre porque os danos ainda se acumulam e, com o tempo, levam ao colapso das funções do corpo. Por isso, se quisermos que nosso fim seja realmente melhor, precisamos procurar em outro lugar. Em particular, precisamos focar em descobrir como limitar ou reverter com segurança o acúmulo de danos que leva à fragilidade, à defi ciência e às doenças ligadas à idade. Esse objetivo representa um grande desafi o e demanda pesquisas interdisciplinares rigorosas.

SEM RESPOSTAS SIMPLES

ENVELHECER É COMPLICADO. Afeta o corpo em todos os níveis, das moléculas às células e órgãos. Também envolve vários tipos de danos. E, apesar de ser verdade que, em geral, eles se acumulam com a idade e ocorrem mais devagar em alguns tipos de células que em outros (dependendo da eficiência dos sistemas de reparos), ocorrem aleatoriamente e a extensão pode variar mesmo em duas células do mesmo tipo no mesmo indivíduo. Assim, todos envelhecem e morrem, mas o processo varia consideravelmente – confi rmando novamente que o envelhecimento não deriva de um programa genético que especifi ca a rapidez com que nos tornamos frágeis e morremos. Para entender o envelhecimento de maneira detalhada o bastante para intervir de modo preciso que suspenda ou retarde a morte de determinados tipos de células, precisamos saber a natureza dos defeitos moleculares que conduzem o processo em escala celular. Quantas dessas falhas devem ocorrer para que a célula deixe de funcionar? Quantas células defeituosas devem se acumular em dado órgão antes que ele dê sinais de doença? E se concordarmos que é mais importante mirar em alguns órgãos que em outros, como teremos a precisão necessária?
Pode ser possível combater o envelhecimento alterando mecanismos importantes que as células usam para reverter o acúmulo de danos. Uma forma como a célula responde a muitos problemas é simplesmente se matando. Em algum momento, os cientistas viram esse processo de suicídio celular, chamado apoptose, como prova de que o envelhecimento obedece a um programa genético. Em tecidos envelhecidos, a frequência com que isso acontece aumenta, e esse processo realmente contribui. Mas agora sabemos que ele age principalmente como um mecanismo de sobrevivência que protege o organismo contra células que poderiam causar danos, notavelmente algumas que se transformaram em malignas.
A apoptose ocorre mais em órgãos velhos porque suas células sofreram mais danos. Devemos lembrar, no entanto, que, na Natureza, é raro os animais chegarem à velhice. A apoptose evoluiu para lidar com as células danifi cadas nos órgãos mais jovens, quando muito menos delas teriam de ser eliminadas. Se muitas células morrem, o órgão começa a falhar ou se debilita. Então, ela é boa, quando exclui células potencialmente perigosas, e ruim, quando elimina muitas delas. A Natureza se importa mais com a sobrevivência dos mais jovens que com o declínio na velhice, então nem toda apoptose pode ser necessária no fi m da vida. Em algumas doenças, como no derrame, os pesquisadores esperam que, suprimindo a apoptose no tecido menos danifi cado, a perda de células resultante possa ser reduzida, ajudando assim na recuperação.
Em vez de morrer, as células danifi cadas, que normalmente conseguem se reproduzir, podem tomar uma atitude menos drástica e simplesmente parar de se dividir, destino conhecido como senescência celular. Há 50 anos, Leonard Hayflick, hoje na University of California em São Francisco, descobriu que as células tendem a se dividir um número defi nido de vezes – chamado limite de Hayflick – e depois param. Trabalhos posteriores mostraram que elas param quando os telômeros, que protegem as extremidades dos cromossomos, ficam desgastados demais, mas outros detalhes desse processo continuam obscuros.
Recentemente, meus colegas e eu fizemos uma descoberta emocionante: cada célula tem um circuito molecular bastante sofisticado que monitora o nível dos danos em seu DNA e nas estruturas formadoras de energia chamadas mitocôndrias. Quando a quantidade de danos supera determinado ponto, a célula “trava” em um estado em que ainda consegue desempenhar funções úteis no corpo, mas não pode mais se dividir. Assim como com a apoptose, a inclinação da Natureza em favor da sobrevivência dos mais jovens provavelmente significa que nem todos os travamentos são estritamente necessários. Mas para destravá-las, devolvendo-lhes a capacidade de se dividir, sem desencadear a ameaça de um câncer, precisamos compreender os detalhes do funcionamento da senescência celular.
A ciência complexa necessária para essa descoberta demandou uma equipe multidisciplinar, incluindo biólogos moleculares, bioquímicos, matemáticos e cientistas da computação, assim como instrumentos de ponta que fornecem as imagens dos danos nas células vivas. Ainda não sabemos aonde essas descobertas podem levar, mas é por meio de estudos desse tipo que podemos esperar encontrar novas drogas capazes de combater as doenças relacionadas à idade de formas completamente diferentes e, assim, encurtar o período de doenças crônicas experimentado no fi nal da vida. Por causa do grau de dificuldade desse tipo de pesquisa básica, muitos anos, talvez décadas, podem passar até que essas drogas cheguem ao mercado.
Usar a ciência do envelhecimento para melhorar o fim da vida é um desafi o, talvez o maior ainda a ser encarado pela ciência médica. As soluções não virão facilmente, apesar dos argumentos usados pelos mercadores da imortalidade, para quem a restrição calórica ou os suplementos alimentares como o resveratrol podem permitir viver mais. A mais alta engenhosidade humana será necessária para superar esse desafio. Acredito que podemos e iremos desenvolver tratamentos para facilitar nossos últimos anos. Mas, quando o fim chegar, cada um de nós, sozinho, terá de se entender com nossa mortalidade. Ainda mais razão para se concentrar em viver – em aproveitar ao máximo o tempo que vivemos, porque nenhum elixir mágico nos salvará.
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*Thomas Kirkwood Thomas Kirkwood é professor de medicina e diretor do Institute for Ageing and Healthcare da Newcastle University da Inglaterra. Seus livros incluem o premiado Time of our lives: the science of human aging, escrito para o público em geral, e Chance, development and aging (com Caleb E. Finch), que mapeia como o acaso, assim como os genes e o ambiente, moldam a forma como o corpo cresce, se desenvolve e envelhece.
Revista SCIENTIFIC AMERICAN BRASIL - edição 101 - Outubro 2010http://www2.uol.com.br/sciam/reportagens/por_que_nao_vivemos_para_sempre_.html