MÁRION STRECKER*
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Melhorar a usabilidade de produtos exige
igualmente arte e ciência,
pois não é tarefa para qualquer um
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JÁ ASSISTI a muitos ataques de fúria motivados por máquinas que não funcionam como os humanos esperam. A culpa é quase sempre dos humanos. Quando não é dos humanos que usam as máquinas, e às vezes se esquecem de pô-las na tomada, certamente é dos humanos que as inventam e as fabricam.
Veja o caso do computador. Uso esse tipo de máquina há 26 anos.
Em memória e capacidade de processamento, a evolução foi brutal.
Mas até hoje os computadores estão bem longe de ter a usabilidade de um eletrodoméstico como uma geladeira, por exemplo. Tipo põe na tomada e pronto. Computadores em geral vêm com um monte de fios e peças externas, que precisam ser conectadas, instaladas e mantidas.
Frequentemente, profissionais precisam ser chamados, humilhando a autonomia do comprador.
Depois vêm as dificuldades de uso. No Windows, até hoje para desligar o computador precisamos primeiro clicar o botão Iniciar. É irritante. É estúpido. Não é possível que não tenham tido uma ideia melhor.
Que tal só o botão liga-desliga? É pedir demais? Vão retrucar dizendo que é possível programar e blá-blá- -blá, na submissão habitual a que nos obrigam os técnicos.
Por isso o iPad, novo computador de mão da Apple, está fazendo tanto sucesso. Finalmente um computador ficou razoavelmente fácil de usar. Longe da perfeição, mas o melhor a que se chegou até aqui. Com WiFi (rede sem fio) e 3G (rede por chip telefônico), o iPad realiza o sonho da internet portátil, na casa, no carro ou na praia.
Por falar em 3G, a indústria dos telefones celulares jogou no mercado uma quantidade e variedade tal de aparelhos que, a cada novo equipamento comprado, temos de passar por um -muitas vezes- penoso processo de adaptação para conseguir fazer uso da parte que julgamos essencial do produto. Nada disso acontece com geladeiras.
Um dia desses, num ataque de fúria, minha mãe ligou para uma operadora de celular e informou que estava literalmente jogando o aparelho, que não recebia chamadas, "no fundo da lata de lixo". A operadora ficou sem cliente, mas quem pagou a conta foi minha mãe, claro.
Veja agora o caso da televisão. Quanto mais novo o aparelho, mais buracos diferentes aparecem para a conexão de fios de variados tamanhos, formatos e encaixes, alguns redundantes, cumprindo a mesma função. Nem vamos falar de "home theater", mas se temos um leitor de DVD e um receptor de TV por assinatura, então são no mínimo três controles remotos diferentes para usar, sendo que um pode perfeitamente boicotar o trabalho do outro, num momento de distração no sofá.
Claro, crianças são mais exploradoras, não têm o medo adulto de quebrar os aparelhos, e com isso testam com mais leveza de espírito e com mais intensidade todos os botões, virando os auxiliares dos pais no mundo tecnológico.
Antes tínhamos uma tomada por cômodo da casa (e nem todos os ambientes precisavam de tomada), depois passamos a ter uma tomada por parede. Agora precisamos ter várias tomadas em cada parede, se não quisermos conviver com as precárias, perigosas e balouçantes esculturas de benjamins ou filtros de linha ou ambos conjugados, como já aconteceu na minha casa.
A fúria dos humanos com as máquinas mostra que a maior oportunidade de negócios do mundo tecnológico é melhorar a usabilidade de produtos e serviços. O sucesso do iPhone e do iPad são a prova viva dessa oportunidade, que outras empresas deveriam abraçar. Fazer com que o uso do equipamento seja algo intuitivo para o leigo e eliminar fios e peças externas é o básico.
Só que melhorar a usabilidade exige igualmente arte e ciência. E fazer mudanças em produtos e serviços já conhecidos do grande público é mais delicado ainda, pois pode implicar meter goela abaixo do consumidor a tal da curva de aprendizado de uso, ou seja, obrigá-lo a reaprender coisas que já sabia fazer antes.
Fazer o que já sabemos fazer, mesmo que seja complicado, é muitas vezes mais fácil do que fazer o mesmo de uma maneira nova, ainda que mais simples.
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*MÁRION STRECKER, 49, jornalista, é diretora de conteúdo do UOL. Escreve mensalmente, às quintas, neste espaço.
Fonte: Folha online, 23/09/2010
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