MARCELO COELHO*
Imagem da Internet
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Neste domingo, a Sinfônica Heliópolis entrou em cena,
e já na entrada deu um espetáculo
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VÁRIAS COISAS me incomodam nos concertos ao vivo. O maestro que entra e sai, a orquestra que se levanta e se senta, as tosses e os silêncios, tudo me parece de uma formalidade, de uma cerimônia e de um rigor insuportáveis.
Fui à Sala São Paulo neste domingo, entretanto, para ouvir uma orquestra diferente. Não era a Osesp, que tem alta qualidade, mas a de Heliópolis, formada por jovens que se beneficiaram, em sua maioria, dos programas sociais desenvolvidos pelo Instituto Baccarelli naquela comunidade de periferia.
Preparei-me para o pior. Uma vez ouvi no rádio não sei que orquestra de jovens carentes interpretando a "Nona Sinfonia" de Beethoven. Beethoven teria se revirado na tumba, não fosse surdo.
Mas tudo foi diferente neste domingo. A Sinfônica Heliópolis entrou em cena, e já na entrada deu um espetáculo. Quatro percussionistas apareceram, um começou uma espécie de afinação na cuíca, que no fim não era afinação, mas prelúdio para um número curto, pelo qual se convocavam os demais instrumentistas a entrar no palco.
Eles entraram, na ordem de seus naipes, num passo dançado, seguindo o ritmo da percussão. Acenaram para o público como uma espécie de comissão de frente de escola de samba, enquanto a plateia e uma garotada atrás do palco (eram os membros de um coral que se apresentaria depois) davam gritos de torcida.
Os músicos se sentaram, fazendo uma "ola"; os violoncelistas giraram seus instrumentos como um pião. As luzes abaixaram, e entrou uma mocinha negra, com uma trompa. Tocou o começo de "Terezinha de Jesus", e disse ao microfone que um sonho que se faz sozinho é apenas um sonho. Já um sonho que se faz coletivamente, continuou, "vira realidade".
A orquestra respondeu ao solo da trompa, a luz aumentou de novo e só depois disso entrou o maestro. Como a afirmar a preponderância daqueles jovens, e de seus sonhos, sobre o papel, que nem por isso ficou menos destacado, do regente Roberto Tibiriçá.
"Quem tem "paixão" pelo que faz costuma
ser cego para os resultados que atingiu."
A formalidade das apresentações de música clássica não foi negada nessa entrada emocionante da Orquestra de Heliópolis. Ao contrário, toda a coreografia do "entra-e-sai", do "aplaude-e-espera", foi até intensificada. Mas para se tornar não um ato vazio, mas um momento de paixão.
Desconfio muito da banalização desse último termo. Do escritor ao chefe de cozinha, não existe quem não recomende "paixão" a quem almeja sucesso profissional.
Pessoalmente, prefiro termos como seriedade, persistência, gosto e vocação. Quem tem "paixão" pelo que faz costuma ser cego para os resultados que atingiu. Às vezes, o uso do termo representa mesmo uma espécie de modéstia: o "apaixonado" pela profissão de fotógrafo ou de sushiman diminui o próprio sucesso ao se descrever como uma vítima do que faz.
Poderia falar em "destino", então; mas "destino" conota uma passividade que, a despeito da etimologia, "paixão" não tem. Estranhamente, hoje em dia "paixão" aparece como uma coisa voluntária, como um misto de coragem e de capricho individual.
Acima de tudo, é algo que não admite crítica; o sujeito vitimado pela mania de criar cachorros de raça ou colecionar relógios de ponto ganha a dignidade de quem possui o direito inquestionável de se dedicar à própria obsessão.
A apresentação da orquestra de Heliópolis não se mostrou, naturalmente, acima de qualquer crítica. A "Quarta Bachiana Brasileira" correu lindamente, mas a "Oitava Sinfonia" de Beethoven sofreu com as cordas, um bocado sem brilho. Em todo caso, era uma orquestra completa, em seus fagotes, oboés e trompas, sem desafinação, entregue às próprias forças, dominando-as, afirmada, sem precisar da condescendência de ninguém.
A orquestra de Heliópolis se prepara para uma turnê europeia; Alemanha e Holanda estão no roteiro. Não terá a pretensão de rivalizar com as orquestras de lá.
Mas não será recebida, pelo que vi, com o mero assentimento caridoso que merecem as boas iniciativas sociais. Será recebida com o respeito que cada instrumentista, e o maestro, dedicam a si mesmos: não se trata da retórica habitual em torno da paixão, mas de uma paixão verdadeira; aquela que só nos sonhos, quem sabe, somos capazes de entrever.
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*Jornalista. Escritor. Graduado em ciências sociais com mestrado em sociologia. Assina uma coluna semanal no caderno "ilustrada" da Folha de São paulo.
Fonte: Folha online, 29/09/2010
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