domingo, 19 de setembro de 2010

Uma simples epifania

Affonso Romano de Sant’Anna*


É com uma exposta humildade que lhes digo: um dia supus ter entendido tudo. Digo quase pedindo desculpas pelo que vou narrar. Mas um dia me pareceu ter entendido, fragorosamente, o sentido essencial das últimas questões.
A isso os entendidos chamam de epifania.
Aconteceu numa pequena cidade do Oeste americano. Não, eu não palmilhava no entardecer uma estrada de Minas como o Drummond no poema “A máquina do mundo”, mas, em compensação, estudava dia e noite a poesia daquele poeta, vasculhando um textos de Heidegger, Bergson, Poulet, Cassirer, Einstein, Heisenberg, Sófocles, Borges, Joyce e quantos mais, quais os segredos da consciência humana diante do tempo e do espaço. Muitos desses autores, com efeito, falaram e viveram epifanias, a exemplo de Descartes, o racionalista que numa noite de novembro de 1619 teve um sonho em que o Espírito da Verdade o visitava e a partir daí começou a escrever O discurso do método.
Pois eu estava em Iowa e lá fora nevava. Nevava há vários meses. E eu lia. E eu lia desvairadamente. E beneditinamente anotava tudo o que podia. Não tinha computador, senão milhares de fichas onde compulsava teorias e poesias. Já sabia a obra do poetão praticamente de cor. E lá fora nevava. Eu estava num programa internacional de jovens escritores de todo mundo. E nevava. E eu sequer namorava, não que não quisesse, mas porque a libido estava toda na metafísica.
Vai, então, lá pelas tantas, centenas de páginas escritas, escrevendo até às cinco da manhã, aconteceu-me o explicável inexplicável. De repente, pareceu-me entender todos os mistérios. E o digo humildemente. Não apenas os mistérios dos textos do poeta, não apenas dos livros teóricos que lia, mas todos os indevassáveis mistérios.
Aconteceu numa noite, de repente.
Estava procurando as pontas do pensamento para fechar o novelo das ideias. Me lembro, havia, há alguns dias, interrompido o trabalho por não conseguir ligar racionalmente a última parte, exatamente a que falava da epifania poética. Bem que eu havia lido em James Joyce o pensamento tomista, segundo o qual a epifania se dá pela integração entre integritas (integração do tempo e do espaço numa visão única); proportio (conhecimento da imagem pelo conhecimento dos seus elementos e partes); e claritas (manifestação sólida, clara e tangível da harmonia formal). Eu tinha na cabeça o roteiro, mas não conseguia o salto, o grande salto. Era como se tivesse o mapa e a estrada, mas as pernas não mais quisessem andar. Então, como não conseguisse, parei tudo. Estava escrevendo contra o tempo, tinha que apresentar o trabalho na universidade, mas num gesto heroico e suicida, me disse: paro por aqui, não adianta insistir. Se não conseguir juntar as partes, entrego o que tenho. Será uma pena, mas é o que pude.
E parei.
Durante uma semana perambulei pela neve. Não lia. Não escrevia. Fiquei bestando, perplexo, como quem, não podendo pensar o que devia e podia pensar, se conforma em não pensar.
E aí, aconteceu. Uma noite olhei os papéis e fichas displicentemente, mas parecia que algo me conduzia. (Ao lembrar ainda me arrepio). Tomei das fichas, reli os papéis e, de repente, o pulso disparou, o coração começou a ecoar forte em sua caixa, as veias da cabeça dilataram-se, achei que ia morrer. E comecei a escrever, escrever furiosamente. E se não fosse arrogância, eu diria que uma luz imponderável jorrou dentro e fora de mim. Súbito, entendi tudo. Súbito tudo o que me faltava sobreveio como dádiva.
Se alguém entrasse naquele momento e me perguntasse qualquer das irrespondíveis questões, eu responderia em plenitude beatífica. A consciência havia extrapolado todas as barreiras.
Então, tive medo. Tive pânico em meio à claridade concentrada na porção minúscula de tudo o que eu era. Ia explodir. Ia morrer ao peso de tanta revelação.
E eu escrevia, já não sei o que escrevi, eu escrevia enquanto o pulso continuava exorbitando e as veias na testa pareciam crescer perigosamente.
Não aguentei. Na verdade, o gozo da verdade é fulminante. Temi morrer. Eu ia morrer se continuasse a ser habitado pela Resposta. Agora entendi por que estava escrito que o homem não pode ver a face de Deus. É que sua finitude não suporta a esmagadora revelação.
Então, me levantei sôfrego, me olhando assombrado diante do espelho. Fui à pia e comecei a molhar os pulsos. E como isso só não resolvesse, enfiei a cabeça debaixo de torneira da pia.
E a febre passou.
Eu não suportei minha modesta epifania mais que uns simples e infinitos segundos. Eu a entrevi e a deixei escapar.
A revelação se foi.
Mas algo ficou.
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* Escritor. Colunista do Correio Braziliense

**Texto apresentado em palestra com o professor Marcelo Perine, no Centro de Cultura Loyola, no Rio, no último dia 14.

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