quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

Capitalismo virótico

 Por RICARDO ANTUNES*

O sistema de reprodução sócio-metabólico do capital, além de ter uma engrenagem destrutiva, com a pandemia tornou-se também um sistema letal

Sobre a pandemia

Logo nos primeiros meses de pandemia, recebi um convite da Ivana Jinkings, da Editora Boitempo, para publicar um pequeno livro sobre a pandemia. Agradeci e disse que não, pois já estava fazendo lives e nelas tinha falado tudo que estava pensando sobre a tragédia. Ela pediu para eu pensar uns dias. Um ou dois dias depois de refletir, acabei por aceitar e pensei: vou pegar entrevistas que dei na época e colocá-las no papel, sob a forma de um texto-síntese. Porém, quando comecei a escrever este pequeno livro, com o título Coronavírus: o trabalho sob fogo cruzado – publicado em e-book – foi quando, de fato, comecei a refletir sobre o que significava essa pandemia.

Lembrei que minha mãe, nascida em 1918, falava muito da gripe espanhola, era algo forte na memória dela. Durante décadas ela se referia a isso como uma expressão de horror. Fui, então, pouco a pouco, ao refletir e escrever esse pequeno texto, que comecei a entender o tamanho da tragédia, o que me levou a uma conclusão central: o capitalismo, ou de modo ainda mais abrangente, o sistema de reprodução sócio-metabólico do capital, além de ter uma engrenagem destrutiva – e aqui sou herdeiro de uma tese de Marx, que foi exponencialmente desenvolvida por Mészáros – com a pandemia tornou-se também um sistema letal. Foi aí que cunhei a expressão “capitalismo virótico” ou “pandêmico”. É essa, então, a minha síntese do que foram os anos de 2020 e especialmente, de 2021, quando ultrapassamos, no Brasil, a marca de 600 mil mortos.

De modo mais do que resumido: a pandemia não é um evento da natureza. Por exemplo, os degelos cada vez mais frequentes, que liberam os vírus antes congelados que se esparramam para a superfície, têm a ver com aquecimento global, energia fóssil, queimadas, extração mineral, produção desenfreada, agroindústria, expansão de área destinada ao gado, emissão de gases de efeito estufa, enfim, tudo isso nos levou a uma situação não só destrutiva como letal, por isso capitalismo pandêmico ou virótico. Não se trata de uma aberração da natureza, portanto, os mais de cinco milhões de mortos pela pandemia, dados que estão subnotificados (imagine a Índia, por exemplo; é impossível saber tudo que se passa num lugar com tamanha indigência humana. E o Brasil segue na mesma linha).

Quando se tem cinco milhões de mortos, além da taxa de mortalidade “normal” de cada ano, por doenças e questões diversas, é porque o sistema chegou num nível completo de destruição, no qual a letalidade começa a se tornar normalidade. Tudo isso me faz lembrar recorrentemente a tese de Marx e Engels de que “tudo que é sólido se desmancha no ar”. Agora tudo que é sólido pode derreter, fenecer.

Assim, a primeira constatação é essa: a pandemia não causou a tragédia, ela desnudou, acentuou e exasperou o que já vinha em andamento. Basta citar três pontos que são anteriores à pandemia:

(1) a destruição humana do trabalho atinge níveis inimagináveis – certamente muito superior ao que se reconhece oficialmente. No Brasil são uns 18 milhões de desempregados, considerando também os desalentados. A População Economicamente Ativa (PEA) que já foi superior a 100 milhões, reduziu-se expressivamente durante a pandemia. O nível de informalidade está em torno de 40%. E em maio de 2020 nos deparamos com uma nova tragédia relatada pelo IBGE: “a informalidade diminuiu”, informava o instituto. Boa notícia? Não, porque significava que o trabalho informal, que recolhia aquele bolsão de desempregados, não conseguia sequer cumprir tal função. Ao contrário, naquele mês a informalidade também estava desempregando. Portanto, no mundo do trabalho, a devastação é completa e mesmo irreversível, do ponto de vista do sistema dominante. Ele pode minorar, em épocas de expansão, e regredir, nas fases de recessão. Pensar seriamente em pleno emprego, no capitalismo global, é um completo absurdo.

(2) Sobre a natureza, dizíamos, há 15 anos, que o futuro estava comprometido. Agora não faz mais sentido dizer isso, pois é o presente que está comprometido. E não sabemos se é possível reverter o curso atual de destruição. Sabemos que dá pra estancar, e a pandemia já deu pistas. Quando houve o fechamento das cidades e as pessoas pararam de circular, o ar melhorou. O transporte privado e as indústrias destrutivas são elementos fundamentais da destruição da natureza diante de seu consumo de energia fóssil. E como vamos fazer para estancar a destruição? Será preciso eliminar tudo que for supérfluo e social e ambientalmente destrutivo.

(3) a igualdade substantiva entre gêneros, raças, etnias, nunca esteve tão longe, com a intensificação e aprofundamento das desigualdades e da miserabilidade. A luta antirracista, a revolução feminista em curso no mundo, as magistrais rebeliões indígenas mostram que o sistema do capital nos levou ao fundo do poço, pois já estamos num degrau abaixo da barbárie.

Daí a atualidade da frase “tudo que é sólido se desmancha no ar”, porque não é mais possível continuarmos sob este modo de vida. A COP-26 em Glasgow sintetiza perfeitamente. Só blá-blá-blá, como resumiu a jovem ativista sueca Greta Thunberg. O capitalismo não tem nenhuma possibilidade de enfrentar essas tragédias e, se quisermos tratar as coisas com rigor, esse cenário só tende a piorar. Basta um simples exemplo: o Jeff Bezos (ou será Bozos?), poucos meses atrás, depois de acumular ilimitadamente em todos os cantos do mundo (até na China o triliardário atua intensamente) agora sonha em acumular explorando o espaço. Não basta ter devastado o nosso território, é chegada a hora de acumular no espaço sideral… Assim, se há tanta destruição da natureza, destruição do trabalho e obstáculos à igualdade substantiva, termo cunhado por Mészáros, é porque esse mundo não se sustenta mais. Ao contrário do There is no alternative, o imperativo crucial de nosso tempo é “reinventar um novo modo de vida”.

E, para não parecer algo utópico, como se os (des)valores do capital fossem eternamente intocáveis, vale olhar um pouco para a história. O feudalismo, por exemplo, parecia um sistema poderosíssimo, com uma nobreza fortíssima, rica e armada. A igreja ultraconservadora e controladora. Ao lado, um Estado Absolutista e despótico. Tudo isso foi derrubado, em 1789, com a primeira revolução burguesa radical na França. Ruiu, assim como ruiu o czarismo russo em 1917. Tal como nestes momentos históricos, a sociedade chegou a seu limite. Em 1917 tínhamos uma potência revolucionária nascente e poderosa, a classe operária com seus organismos de luta, como os sovietes ou conselhos, os sindicatos de classe e os partidos operários. Cito só estas duas grandes revoluções, sem aqui entrar em seus tantos desdobramentos, cada uma delas ao seu modo. Mas vale recordar que também a revolução burguesateve de recorrer ao seu instrumental revolucionário para poder desmontar a ordem feudal.

O Brasil de hoje é um laboratório da experimentação, para se testar até onde a indigência humana pode ser levada, assim como a Índia, os países africanos, a exemplo da África do Sul. A própria exclusão desse imenso e maravilhoso continente da vacinação em massa é exemplo do que estamos aludindo. E o Brasil, se tudo isso não bastasse, tem um governo cujo presidente é ditatorial, semibonapartista e neofascista (gerando o que caracterizei como “governo-de-tipo-lumpen”) que combina sua forma autocrática com uma política neoliberal primitiva, do que resultou um negacionismo científico que foi propulsor vital para a expansão da pandemia. A ideia era: “vamos soltar a boiada” e o resultado são os mais de 600 mil mortos.

Para resumir: vivemos um estágio da humanidade onde não há mais conserto para o atual sistema. Nunca estivemos tão perto do fim da história da humanidade. O capitalismo, pouco a pouco, acabou por comprometer irreversivelmente a sobrevivência humana, de modo mais intenso nas periferias, onde vive a ampla maioria da humanidade que depende de seu trabalho para sobreviver. Mas esta questão vital não se resume ao Sul do mundo. Vimos caminhões do exército levando idosos para enterro na região mais rica e avançada da Itália, pois não havia estrutura de saúde suficiente para acolher os idosos que trabalharam décadas para manter o país. E há os exemplos de França, Inglaterra, Alemanha, para não falar dos EUA e seu sistema de saúde todo privatizado.

Parece até que adentramos em outro patamar da dicotomia “socialismo ou barbárie”. Novamente recorrendo a Mészáros: agora é “socialismo ou barbárie, se tivermos sorte”. Porque na barbárie já estávamos antes da pandemia, agora descemos ainda mais alguns degraus.

No Brasil

No plano mais conjuntural, esta tragédia vai nos cobrar muitas décadas até sairmos do atoleiro. O que chamei de “era de desertificação neoliberal” iniciada nos anos 1990 se estendeu pelo século que começou de modo horroroso. Os porquês desse quadro atual são difíceis de explicar, vão exigir que estudemos mais. Podemos iniciar dizendo que “no meio do caminho tinha uma pandemia”, algo que não tinha ocorrido, salvo em 1918. Não podemos culpá-la totalmente, mas não dá pra tirar sua importância, uma vez que o mundo se viu aterrorizado pelo risco iminente da morte em todas as famílias.

No Brasil isso foi ainda mais acentuado, porque este governo implementouuma política reconhecidamente genocida. Investiu na ideia de “liberar” a população, sem fazer lockdown e assim forçar a imunidade de rebanho. Os mais vulneráveis seriam contaminados em massa – negros(as), indígenas, assalariados(as) pobres, das periferias – e isso, segundo o negacionismo, imunizaria a população branca, das classes médias urbanasque poderiam se defender com estratégias cotidianas de trabalho remoto, menos precário etc. A grosso modo, essafoi a política de liberalização da pandemia, por certo, um traço da letalidade do sistema, como ocorreu durante meses nos EUA, sob Donald Trump e em tantos outros países. Assim, não podemos dizer que Jair M. Bolsonaro não sabia o que fazer. Sabia perfeitamente. Trump também sabia, fez isso e só mudou quando viu que iria perder as eleições. O mesmo se deu com Bolsonaro, que só mudou parcialmente, quando a CPI aflorou a possibilidade real do seu impeachment.

Em uma analise mais ampla e estrutural, nunca tivemos aqui sequer uma revolução democrática burguesa, como Inglaterra, França e outros países. Alemanha, Itália e Japão também acabaram consolidando longos períodos democráticos, sempre no sentido burguês do termo. Consequentemente, aqui não tivemos nem isso, o que ajuda a entender porque as instituições, frente a uma vitória inesperada do neofascismo, se intimidaram e em vários momentos se acovardaram. Recentemente também tivemos governos do PT, com Lula saindo com alto nível de aprovação em seu segundo mandato. Mas é bom recordar que houve muita flexibilização e precarização do trabalho, ainda que, paralelamente, foram criados 20 milhões de empregos e o país cresceu e se expandiu. É verdade também que Lula foi muito generoso com a agroindústria (quanta injustiça em empurrá-lo para o cárcere), assim como foi generoso com a grande burguesia, indústria, bancos etc.

Mas sua derrocada, em especial no segundo governo Dilma Rousseff, resultado também da enorme manipulação política da opinião pública, levada a cabo pela mídia, somado ao desgaste natural dos seus governos, a partir das rebeliões de 2013 e da ampliação da crise no Brasil e do PT, todo este cenário foi propicio à deposição de Dilma. Se não há dúvida de que havia corrupção nos governos do PT (alguém pode imaginar que um governo possa ter apoio do Centrão sem corrupção?), vendeu-se a ideia que se tratava do “governo mais corrupto da história”, como se a corrupção tivesse em algum momento deixado de existir no Brasil. Basta relembrar da ditadura, coisa que a parte da juventude não tem ideia. O que se sabia na época, de escândalos de corrupção, a censura da ditadura proibia a imprensa de publicar.

A corrupção, vale acrescentar, é traço, uma marca do capitalismo, ela pode ser maior ou menor. Mas a direita destaca esse fato quando quer depor um governo, como foi aqui, que não mais lhe interessava. A Dilma, no plano estritamente pessoal, é uma mulher corajosa, nunca roubou nada. Seu maior limite deve-se ao fato de que ela não era apta a manter a conciliação estruturada por Lula. Aqui vale um parêntese: Lula é um gênio da conciliação, assim como Getúlio Vargas o foi em seu tempo. Há, entretanto, uma diferença entre eles: Getúlio era um estancieiro dos pampas, um latifundiário, dotado de fortes atributos para conciliar (visando dominar) amplos setores da classe trabalhadora. Já Lula, o ex-metalúrgico, foi ainda mais além: mostrou invulgar capacidade de conciliação com a classe dominante, mas não foi capaz de compreender que jamais conseguirá “dominá-la”. E, pelo que vem fazendo no presente, não é difícil antever novas turbulências, um pouco mais adiante. A Dilma faltava esse perfil de conciliação para manter seu governo.

Uma última nota pra se tentar entender o tamanho da crise política aberta. Bolsonaro, entre outras causas e contingências, ganhou a eleição apresentando-se como o candidato contra o sistema. E isso lhe fez conquistar forte votação popular na classe trabalhadora mais empobrecida, para não falar das classes médias conservadoras e do decisivo apoio da burguesia brasileira, que é incapaz de viver sem predação. Mas, se o candidato de extrema direita se dizia (por certo falsamente) contra o sistema, a maioria dos candidatos que se apresentavam como sendo de esquerda, se esmerava em apresentar propostas para consertar o sistema. É impressionante a capacidade que a esquerda tem (e aqui não me restrinjo somente ao caso brasileiro) em se apresentar na batalha eleitoral e afirmar que vai arrumar o sistema.

Precisamos reinventar uma esquerda que tenha coragem de afirmar que este sistema é destrutivo e letal; que recupere o sentido de esperança que se esgarçou ao longo de décadas de neoliberalismo, que não será possível ter emprego para a totalidade da classe trabalhadora sem mudanças estruturais profundas, que não vai conseguir preservar a natureza e que será impossível avançar na luta pela igualdade substantiva entre homens, mulheres, negros, brancos, indígenas, sem ferir e confrontar os interesses do capital e da classe burguesa que hoje reina como intocável e inquestionável.

Veja-se o exemplo do Parlamento. Em meados do século XIX, quando houve o golpe de Luis Bonaparte na França, Marx escreveu (lembro aqui de memória): “o parlamento francês perdeu o mínimo da credibilidade que tinha diante da população”. Imagino o que escreveria se conhecesse o Brasil contemporâneo. Como proceder num país onde o Presidente da Câmara decide sozinho se tem impeachment ou não? A população percebeu que este parlamento está comprado pelo governo, de modo que os deputados só poderão abandonar Bolsonaro na reta final da eleição, se o barco chafurdar, quando os interesses do Centrão já estiverem totalmente garantidos. E não é difícil imaginar, então, se isso ocorrer, que esse mesmo pântano será a nova base de apoio do governo Lula. É por isso que o Brasil tem uma história interminável que combina e mescla farsa, tragédia e tragicomédia.

O princípio esperança

Por tudo isso, recordei de Ernst Bloch a necessidade de se resgatar o princípio de esperança. E isso não se faz com conciliação, mas através de mudanças estruturais profundas. Vejamos os exemplos das comunidades indígenas, em seus experimentos sociais que – antes de tudo – preservem a natureza não só para sua geração, mas para as gerações futuras, dos filhos, dos netos, para a humanidade. Apesar de todas as dificuldades, o MST como movimento coletivo sobrevive, tem escolas, experimentos cooperativos, realiza lutas femininas, da juventude, dos trabalhadores e trabalhadoras, assim como o MTST em suas lutas por moradia e por uma vida melhor.

Os partidos continuam nos devendo. Lamento ver o PSOL que parece cada vez mais repetir a trajetória do PT. Falo como filiado ao PSOL, e não como opositor ou inimigo. Mas parece esquecer que, em seu início, o PT lutou muito para não ser a cauda eleitoral do PMDB, que sempre defendia a frente ampla, alardeando muito mudar para de fato tudo preservar. O PT nasceu contra essa ideia de Frente, mas isso já faz mais parte do passado do que do presente, ainda que dentro do PT também se possa encontrar militância crítica e que se preocupa com esse cenário.

Por fim, para compor o quadro de tantas dificuldades, hoje não está fácil fazer lutas operárias. As pessoas sabem do risco ainda maior do desemprego causado pela pandemia e sabem que mesmo sem fazer luta ou greve já tem o risco de ver seu nome na lista de demissões. A conjuntura tem um caro lado adverso para o movimento operário. Assim, estamos obrigados a avançar nas lutas que fazem parte da história da classe trabalhadora e também ter ousadia para inventar novas formas de luta social e de classes, que florescem no Brasil, América Latina, África, Ásia. O que deve, entretanto, ser fortemente enfatizado que o caminho aparentemente mais seguro da conciliação de classes acaba por nos distanciar ainda mais da “reinvenção de um novo modo de vida” para além dos constrangimentos impostos pelo capital, que já atingiu um nível de devastação – e contrarrevolução – que converteu a “democracia” atual em um tabuleiro onde, em última instância quem manda é o capital, as grandes corporações financeiras que nos impõem uma realidade ficcional, cujo objetivo não é outro senão escamotear o domínio das burguesias globais, nativas e forâneas, que são as que detêm o controle das riquezas e também de todos os governos do mundo, com raríssimas exceções.

É por isso que não há nenhum país capitalista que não tenha sua economia sob controle direto do capital financeiro, o mais destrutivo, o mais desprovido de qualquer sentido anímico. Lembro aqui a formulação de Marx. O sonho do capital, desde sua gênese, é fazer com que dinheiro (D) vire mais dinheiro (D’). Mas para que o dinheiro vire mais dinheiro, Marx demonstrou que é preciso produzir mercadorias para, ao final, gerar acumulação de capital. Daí sua fórmula interminável: D-M-D’, seguida de D’-M’-D”, depois D’’-M’’-D”’ e assim segue o curso interminável da lógica da acumulação de capital, dado que sem produção não se cria mais dinheiro, a produção de mais valia é vital para a acumulação de capital e o ciclo se torna interminável. E hoje ele só pode se reproduzir, como indicamos anteriormente, devastando e destruindo tudo que lhe obsta e atrapalha.

Nesse sentido, o mundo vive um momento horroroso, como vemos na briga entre Apple e Huawei pelo mercado global do 5G, grande símbolo das disputas globais e do tamanho do imbróglio em que se encontra a humanidade. Não tenho dúvidas de que, em meio a tantas tragédias, entraremos em uma era de convulsões sociais profundas. Não tenho o segredo de como serão tais convulsões, mas elas vão acontecer.

A experiência chilena

O Chile tem sido um grande laboratório social. Pela primeira vez, no período mais recente, com a eleição de Salvador Allende e a tentativa de implantar o socialismo por meio eleitoral. E acrescento que esse experimento teve um traço sublime de grandeza, que na época não víamos, em razão de nossas reservas quanto às possibilidades do socialismo pela via eleitoral. Mas é preciso dizer que a experiência de Allende foi grandiosa e derrotada pelo velho golpe militar, ditatorial, repressor, que tanto macula a América Latina. O segundo experimento, tivemos com a fusão da ditadura militar de Pinochet com o neoliberalismo. O Chile foi o primeiro país neoliberal do mundo, antes mesmo que a Inglaterra, que foi a primeira na Europa, seguida pela Alemanha de Helmut Kohl e, claro, os EUA de Reagan. A ditadura chilena implantou um neoliberalismo primitivo e sanguinário, não é à toa que foi lá que Paulo Guedes foi experimentar seus aprendizados obtidos na chamada Escola de Chicago.

As explosões sociais de 2019 no Chile davam a impressão de que as esquerdas sociais viviam um pleno domínio sobre o país. E as eleições mostraram que não era bem assim, pois o candidato neonazista (Jose Antonio Kast, filho de um oficial alemão nazista) ganhou no primeiro turno e assustou. É aqui que entra a tragédia que a democracia burguesa impõe às esquerdas. Gabriel Boric é liderança jovem, nascida nas lutas sociais e estudantis de dez anos atrás, um pouco à margem dos partidos tradicionais. Mas agora começa a ser testado: ou fazia as concessões ao centro, para ganhar as eleições, ou corria o risco de perder as eleições.

A situação de hoje, com pequenas variações locais, é mais ou menos assim: a tendência eleitoral dominante na América latina tem sido mais ou menos assim: um terço de esquerda, um terço direita aberta e mesmo fascista e um terço de centro, que vai para um ou outro lado conforme os contextos. A expansão da extrema direita é mundial, e a partir da eleição de Donald Trump, ou do Brexit, ela cresceu, a exemplo do leste europeu, Filipinas, até na Índia. Ela cresceu e a influência de movimentos neonazistas aumentou.

A esquerda foi pouco a pouco abandonando o que era seu elemento mais forte, que era de ser radical em suas formulações. E digo radical em termos etimológicos, isto é, de buscar as raízes dos problemas. E hoje a extrema direita abraçou o discurso radical, perdeu a vergonha de se apresentar assim. Ela nem mais se define como direita e sim como extrema-direita, como fascista ou mesmo nazista. E ela quer mudar o sistema, ao seu modo, assim como o nazismo de Hitler e o fascismo de Mussolini também falavam em mudança do sistema. E em meio ao ressurgimento deste cenário, a esquerda majoritariamente, para defender o que resta de “liberdades democráticas”, vem se tornando a via de concertação do sistema. Não é difícil imaginar onde isso vai acabar.

No caso brasileiro, depois de 2013 não vimos nada parecido com os grandes levantes iniciados em 2019 no Chile e que se mantiveram mesmo na pandemia. A causa imediata foi o aumento do preço do transporte, tal como em 2013 por aqui. E o Chile vinha sendo um barril de pólvora há anos. Era certo que o país ia explodir em algum momento. Havia uma latência, algo parecido com um vulcão. Se você olhá-lo por cima verá que mesmo sem a erupção está tudo borbulhando lá dentro. Era assim que o país se encontrava já há anos. Pude estar várias vezes no Chile nesta última década. A privatização do país criou bolsões de pobreza num povo que cada vez mais buscava recordar e reviver a experiência de Allende.

As alternativas no Brasil

O Brasil vive algo parecido, embora ainda não se tenha dado conta plenamente (os primeiros sinais estão se evidenciando), depois de cinco anos de destruição, para citar somente os anos mais recentes. O povo olha hoje o período Temer-Bolsonaro e pensa: “quero Lula de volta”. Se chegamos num nível onde as pessoas põem o osso na panela pra ter o cheiro da carne… Isso começa a ser entendido, pois no governo Lula tinha carne ou frango na mesa de amplos setores da classe trabalhadora, ao menos uma vez por semana. Qualquer comparativo, então, é favorável ao PT, mesmo tendo sido um governo social-liberal e não antineoliberal. Sem nenhum traço reformista comparável ao governo João Goulart, que em 1964 caiu por isso. O PT não caiu por ser reformista. O PT caiu porque a conciliação não interessa mais. A democracia virou o tabuleiro das grandes corporações e, ou a esquerda joga de acordo com o que a burguesia quer, ou a burguesia aparece com a opção fascista pra colocar a faca no pescoço das esquerdas.

Temerosa, as esquerdas acabam aceitando esse jogo. Até o Alckmin é cobiçado para vice, assim como foi Temer anteriormente. E Lula diz que dorme tranquilo. Mas alguém acha que Lula imaginou um golpista em Temer? Não, até porque é a realidade que faz o golpista. Temer, com sua sutileza horripilante, se fez golpista na hora em que as classes dominantes dele precisaram. E foi assim que ele conseguiu, recentemente, segurar Bolsonaro, seu “companheiro de batalhas”, que assinou o papel que Temer escreveu sem hesitar. “Não quer cair? Vem comigo, faz assim”. E Bolsonaro respondeu: “escreve que eu assino”.

 

 "O PT caiu porque a conciliação não interessa mais. A democracia virou o tabuleiro das grandes corporações e, ou a esquerda joga de acordo com o que a burguesia quer, ou a burguesia aparece com a opção fascista pra colocar a faca no pescoço das esquerdas".

 

Reconheço que estamos numa situação delicada. O que eu não quero mais viver depois de quase quatro décadas? Não quero mais uma ditadura militar e menos ainda uma ditadura fascista. Na ditadura militar de 1964, não sabíamos se iriamos presos na calada da noite. Portanto, claro que numa eleição entre um fascista e um não fascista, se assim for o segundo turno, a nossa opção é obvia. Até pra poder salvar o mínimo e último resquício da Constituição de 1988. Ela foi resultado de um pacto social também conservador. Lembro de vastos setores da esquerda que éramos contra a Constituição Federal de 1988, não foi à toa que o PT não a assinou e parlamentares que o fizeram foram expulsos do partido.

É uma Constituição que hoje se mostra progressista, mas que na época sabíamos que podia ter sido muito mais avançada, bem melhor. Na hora final o Centrão – que já existia – foi lá e fez seus acertos e contrabandos. Era um avanço em relação à ditadura, claro, mas a luta de classe no Brasil dos anos 80 foi das mais fortes da história do século XX. A Constituinte foi um avanço, mas o pântano era poderoso ali também; os conservadores de então fizeram o que precisava para manter traços de clara conservação. Foi assim que chegamos até aqui.

Qual alternativa posta por Lula? Um repeteco ainda mais moderado de 2002. Se ele ganhar, vamos respirar a sensação de mais liberdade democrática, de que nos distanciamos um pouco do fascismo. No entanto, não dá para imaginar mudanças profundas. Qualquer governo de esquerda deveria revogar todas as medidas de governo de Temer pra cá: PEC dos gastos não financeiros, contrarreformas trabalhista e previdenciária, leis de terceirização, liberação geral de agrotóxicos, todo o desmonte social e ambiental. E também a lei antiterrorismo editada por Dilma, entre outras medidas até do governo do PT, reestatizaçãodas empresas estratégicas, ativos estratégicos como aeroportos… Vão fazer isso com Alckmin? Ele não é um boneco, tem expressão, sempre foi de centro-direita, ainda que não seja um fascista.

Não por acaso Bolsonaro teve apoio popular amplo. O profundo desgaste sofrido pelo petismo nas massas trabalhadoras encontrou em Bolsonaro o único candidato que se dizia contra o sistema. Assim, ainda estamos numa quadra histórica terrível, de contrarrevolução preventiva, para lembrar nosso querido Florestan Fernandes, e as esquerdas seguem ainda muito acuadas.

Só não é pior o quadro porque a situação do capitalismo é de crise profunda. Falamos da crise das esquerdas e dos massacres contra a classe trabalhadora. Mas é possível sustentar um sistema que destrói a humanidade e natureza em todas as suas dimensões, para enriquecer de forma brutal 1% ou pouco mais da população mundial, que por sua vez vai concentrar 90% da riqueza e levá-la ao espaço sideral, porque aqui já não tem mais espaço – inclusive físico – para saquear a humanidade e destroçar a natureza?

Portanto, volto ao início: “tudo que é sólido pode derreter”. E as esquerdas têm esse desafio pela frente, que não é consertar o sistema – que é, repito, “inconsertável” – mas “reinventar um novo modo de vida”. O desafio das esquerdas sociais, da revolução feminista anticapitalista, do movimento antirracista está em curso. Temos muito a aprender com as comunidades indígenas, que viveram sua história inteira sem propriedade privada, sem mercadoria, sem lucro. Por que tudo isso é indiscutível e intocável? Por que falamos tanto em diminuir os direitos da classe trabalhadora? Por que não falamos em diminuir os direitos da propriedade privada? Precisamos aprender com as comunidades à margem do capital, com as periferias e suas experiências de auto-organização, com os sindicatos de classe e espero que os partidos de esquerda sejam capazes de voltarem a ser abertamente contra a ordem. As esquerdasdevem recusar a batalha na linha de menor resistência, para recordar a metáfora de Mészáros. O capital apresenta o seu parlamento como tablado para a luta. E a esquerda vai lá. Apresenta as eleições e as esquerdas jogam todo o oxigênio nelas.

A pandemia nos mostrou que devemos reinventar um novo modo de vida. Estamos obrigados a isso, uma vez que o modo de vida atual é destrutivo e cada vez mais letal. Mas dizem “ah, o socialismo acabou”. É brincadeira dizerem isso. O socialismo teve 150 anos pra derrotar o capitalismo e ainda não o fez. É verdade. Do mesmo modo que o capitalismo demorou mais ou menos três séculos pra derrotar o feudalismo. As primeiras lutas capitalistas remetem à revolução comercial de Veneza, pra não irmos na Revolução de Avis em Portugal. O renascimento comercial data dos inícios do século XVI. E o capitalismo só foi vitorioso, na França e na Inglaterra, ao final do século XVIII. Na Alemanha, Itália e Japão, no final do século XIX. Por que o socialismo teria obrigatoriamente que derrotar o capitalismo em um século e meio?

O capitalismo não tem mais como se sustentar, senão pela via autocrática que tem a aparência de democrática. Se os seus interesses começam a ser deslocados, o capital remove o tabuleiro, e o jogo precisa começar de novo.

Em 2021 completamos 150 anos do mais belo experimento socialista. Durou 71 dias. Uma experiência monumental. A Comuna de Paris não caiu pelas suas deformações internas, como as repúblicas da antiga URSS. Caiu porque o exército de Versalhes, do absolutismo francês se aliou ao prussiano, pararam de lutar entre si e se uniram para massacrar e derrotar os comunardos. Uma experiência que caiu pelos seus méritos, não suas deformações. Que a Comuna seja nosso ponto de partida e não de despedida.

 

A questão militar

Se há alguma coisa hoje evidente que os governos petistas foram incapazes de enfrentar, foi a questão militar. Quando Lula foi eleito, em 2002, com mais de 53 milhões de votos, e os militares ainda eram lembrados pelos horrores da ditadura, era o momento de se enfrentar a questão militar. Na Argentina foi um liberal (Raúl Alfonsín) que iniciou os processos contra os militares da ditadura de 1976-82, acusados de torturas, assassinatos e crimes dos mais bárbaros, como apropriação de crianças filhas das militantes que eram adotadas pelos burgueses, que recebiam de presente de militares comprometidos até a medula com os crimes cometidos, coisa que tem clara semelhança com a desumanidade típica do nazismo. Foi um governo liberal e conservador quem fez tal enfrentamento.

No Uruguai também foram processados os militares praticantes de vilipêndios como censura e mortes de militantes. No Chile o horror do Exército “quase prussiano” e das Forças Armadas postergaram o acerto de contas. Aqui tem uma couraça que protege os militares, e grande parte do ódio dos militares ao governo do PT se deve às medidas tomadas pelo governo Dilma, com a implantação da Comissão da Verdade. O governo Lula sempre evitou medidas que descontentassem militares. Vemos o preço dessas ações hoje, quando militares da caserna descobriram que podem se locupletar no aparelho administrativo e civil, duplicando e às vezes triplicando seus salários.

As consequências nefastas são presenciadas a cada dia. Ao se ter como Ministro da saúde um chefe de tropa “especialista em logística” abriu-se o caminho para a tragédia que vimos, no descaso com a pandemia, da qual Pazuello é corresponsável. Mas há uma consequência positiva no meio de tantos horrores: está se derretendo a imagem “santificada” dos militares, como seres “incorruptíveis”. É só ter uma boquinha que tudo se mostra diferente, não necessariamente para o conjunto da tropa, mas para parcela expressiva, inclusive da ativa. E também está se desintegrando a ideia de que só político é corrupto, como creem os setores mais toscos e ignorantes das camadas médias, por exemplo.

Mas a resolução disso é difícil. O processo de politização das Forças Armadas terá que ser, mais dia ou menos dia, efetivamente enfrentado, assim como a reiteração da sua absoluta impossibilidade – sob pena grave – de atuar politicamente. Quem tem arsenal bélico, não pode exercer função política, deve sair da caserna, se assim quiser atuar. E Bolsonaro, sabendo que a generalização do sentimento popular de que ele faz o pior governo de todos os tempos, cada vez mais procura encontrar alternativas de apoio nas milícias e nas PMs; não à toa está tentando diminuir o controle dos governos estaduais sobre elas. Assim, a resolução da questão militar passa efetivamente pela ação popular, pela decisão soberana da população, ao deliberar o que pode e o que não pode ser feito.

Por certo, nada se pode esperar da classe dominante, que é predatória e sempre flertou com o fascismo. Sempre é bom lembrar que a burguesia brasileira encheu de recursos próprios o aparelho de repressão criado pela ditadura militar. Portanto, a questão militar será de difícil enfrentamento. E, francamente, não será sob o governo Lula que enfrentaremos essa questão. Ele não tem nem nunca teve estrutura política pra tal enfrentamento. Nunca teve postura ousada frente a militares, nem mesmo na época das grandes greves que o projetaram nos anos 1970. Nesse sentido Dilma Rousseff foi mais corajosa. Não à toa a Comissão da Verdade aconteceu sob seu governo, não com Lula, o que foi suficiente pra deixar os militares ensandecidos contra o PT de Dilma, uma vez que a Comissão reconheceu os crimes como tendo responsáveis dentro das Forças Armadas.

Se imaginarmos que nossa república nasce de golpe militar e ao longo de sua história as intervenções militares se sucederam, teremos dificuldades. Mas em algum momento isso terá de ser enfrentado.

Até nos EUA, onde existe uma clara separação jurídica dos militares, que não podem atuar na política interna, sabemos que Trump tentou desesperadamente, especialmente no final do seu mandato, incentivar os núcleos golpistas existentes nos EUA. Ele acreditou que a invasão do Capitólio contaria com apoio de setores importantes das forças armadas, o que não ocorreu. Assim, não será fácil enfrentar a questão militar, ainda mais depois da politização exacerbada que as FA sofreram, agora sob o governo Bolsonaro.

 

O novo mundo do trabalho

Eu não queria estar na pele de Lula em plena lula de mel com o santo Alckmin, se a dupla vencer a eleição e tomar o poder. Imaginemos o represamento presente nos que sentem fome, miséria, perda de direitos, informalidade, destruição da proteção social e trabalhista, desemprego, a frustração de trabalhadores e trabalhadoras que estão fora do sistema de previdência… Se a classe trabalhadora votar em Lula é na esperança de reconquistar uma situação anterior positiva. Como fazer isso com um governo que pretende reeditar, nesta situação gravíssima em que nos encontramos, a política da conciliação? Não será nada fácil.

Se Alckmin é um grande símbolo do conservadorismo, como avançar na reforma agrária, só pra dar um exemplo? Como revogar todas as medidas de devastação da era Temer-Bolsonaro?

Há um segundo ponto, importante, e mais conceitual: a nova morfologia do trabalho nos obriga a entender que adentramos em uma era de lutas sociais. Como enfrentar a questão do trabalho uberizado? Ninguém poderá falar de julho de 2020 sem falar no breque dos apps, a greve dos trabalhadores de aplicativos. Esse episódio já é parte da história da luta da nova classe trabalhadora brasileira. Daqui a 30 anos, quando escreverem a história da luta da classe trabalhadora no século 21, terão de citar o dia 1 de julho de 2020 e sinalizá-lo como uma greve das mais importantes, o #BrequeDosApps, que abriu um ciclo novo de revoltas em várias partes do mundo.

Recentemente, uma liderança chinesa desse setor sofreu forte perseguição; na Inglaterra, França, Itália, em vários países da América Latina as greves de apps se esparramaram… Há, por consequência, sinais de avanços nas lutas. A Comissão Europeia definiu recentemente que trabalhadores de Uber e assemelhados têm direitos protetivos, sim, não são autônomos, são assalariados. A Espanha já reconheceu, em 2021, que tais trabalhadores devem ser abarcados na legislação protetora do trabalho. A Índia teve greves de mais de 200 milhões de operários há cerca de 3, 4 anos, e mais recentemente de pequenos proprietários camponeses contra políticas neoliberais. São exemplos de distintas lutas que tendem a se expandir e se generalizar.

Temos ainda a proletarização do setor de serviços. Este deixou de estar à margem do capitalismo, uma vez que se encontra cada vez mais privatizado. A comoditização, mercadorização e privatização dos serviços os converteram em grandes empresas lucrativas que não param de crescer. Há uma imensidão de empresas, como a Amazon, que não param de crescer em cima da superexploração do trabalho.

Qual o pulo do gato dessas empresas? Converter o assalariado em aparente não assalariado. Transfigurar uma pessoa proletarizada em “autônoma”. Na medida em que isso avança, e trabalhadores e trabalhadoras viram “empreendedores”, isso ocorre para que sejam excluídos da legislação do trabalho. E o proletariado de serviços não para de se ampliar. Lembremos quantas greves tivemos em call-centers, na indústria hoteleira, nas cadeias de fast food, na última década.

Isso tudo ainda causará muitas explosões sociais, pois não houve nenhum período, nem nos mais difíceis, em que a classe trabalhadora não procurasse se organizar. Em seu início, como mostra Engels no livro A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, tivemos o ludismo, isto é, a quebra de máquinas. Seguiram-se inúmeras greves, depois veio a criação dos sindicatos, o movimento cartista etc. Foram assim as lutas do proletariado industrial ao longo do tempo e o mesmo vale para as lutas do proletariado rural.

Pouca gente lembra hoje, mas pouco depois do ciclo das greves do ABC houve espetaculares greves dos boias-frias na região de Ribeirão Preto e interior de SP, onde a agroindústria devastava tudo. Agora adentramos um período histórico que inclui o setor de serviços na dinâmica das grandes lutas.

Por fim, quero enfatizar aqui a crise atual do capitalismo, cujo sistema não oferece nenhuma perspectiva de futuro para a humanidade. E nenhuma perspectiva de presente que não passe por destruição e letalidade, algo tipificado pela atual fase pandêmica. Mudaremos tal estado de coisas na medida em que recuperarmos este mosaico de lutas sociais que se veem em todos os continentes. Entraremos em uma era de fortes turbulências. Quem diz ser impossível, despreza a história. O império romano caiu, a sociedade feudal caiu, os impérios teocráticos orientais também; a União Soviética, o segundo país mais potente do mundo na época, caiu sem nenhuma invasão de um exército capitalista. Caiu como castelo de cartas. Eu não sei quem de nós verá o mesmo sobre o capitalismo. Não tenho ilusão de que ter ei olhos para comemorar isso, mas entraremos numa era de muitas lutas sociais.

Pela primeira vez na história, a humanidade corre risco profundo. Portanto, se o fim da humanidade se apresenta como possível, o imperativo crucial do nosso tempo é reinventar um modo de vida onde o trabalho tenha sentido humano e social, autodeterminado; que a igualdade entre gêneros, raças, etnias e gerações seja substantiva e que a natureza seja preservada. E este novo modo de vida é incompatível com qualquer modalidade de capitalismo.

*Ricardo Antunes é professor titular de sociologia do trabalho no IFCH-UNICAMP. Autor, entre outros livros, de O privilégio da servidão (Boitempo).

Texto estabelecido a partir de entrevista concedida a Gabriel Brito para o jornal Correio da Cidadania.

Fonte:  https://aterraeredonda.com.br/capitalismo-virotico/?utm_term=2021-12-29&doing_wp_cron=1640801179.8399169445037841796875

"A universidade hoje é uma presa da superespecialização", diz Luís Augusto Fischer

Anselmo Cunha / Agencia RBS 

Fischer: "Uma coisa é a semana de arte moderna em si e outra é o processo histórico que se fez com ela"

Professor de Literatura Brasileira projeta para 2022 novo livro questionando a Semana de Arte Moderna de 1922 como "big bang da inteligência brasileira"

O mês de fevereiro será marcado pelo centenário da Semana de Arte Moderna de 1922. Ainda no primeiro semestre, deverá ser publicado pela editora Todavia um livro de Luís Augusto Fischer que busca redimensionar o episódio na história da cultura brasileira. Será a consolidação de uma crítica à Semana que o professor de Literatura Brasileira da UFRGS tem desenvolvido ao longo dos anos. Fischer pontua, como explica na entrevista a seguir, que o modernismo paulista é visto – indevidamente – como ponto de partida de tudo que houve de moderno na cultura do país, abordagem ensinada inclusive nas escolas. Seu esforço é o de descortinar a construção dessa ideologia. Um dos intelectuais do Rio Grande do Sul mais presentes na arena pública nacional, Fischer lançou em agosto o livro Duas Formações, uma História (ed. Arquipélago). Nesse estudo de fôlego, traça um mapa para repensar a forma como a história da literatura brasileira pode ser contada. 

A Semana de Arte Moderna de 1922 está completando cem anos. Tens sido uma voz crítica a esse movimento, identificando um superdimensionamento de sua importância na cultura brasileira. Que parte da Semana de Arte Moderna merece ser comemorada em 2022?
Falando bem genericamente, pode-se comemorar qualquer coisa. Certamente a Semana de Arte Moderna é um marco. Mas uma coisa é o evento em si e outra é o que o processo histórico faz com ele. Para dar um exemplo de outra ordem: a Guerra dos Farrapos. O que ela foi naquele contexto e o que se fez com ela? Quem são os herdeiros que reivindicam o espólio farrapo, verdadeiro ou não? Então, a primeira coisa nesse debate é dizer: uma coisa é a Semana e outra é o que ela virou com o tempo. Meu ponto principal é estudar o processo de consagração da Semana como sendo um big bang de tudo de moderno, bom e bacana que se fez no Brasil dali por diante. Essa ideia de que a Semana está no centro de tudo é uma construção histórica muito lenta, que demorou várias décadas até se estabilizar. Voltando à pergunta: dá para comemorar, porque foi legal, foi bacana. Um evento, três dias, barulho e tal. Mas, colocado nos seus termos, aquilo é um evento local, provinciano, na cidade de São Paulo, que – vou citar o Mário de Andrade – era uma cidade rica, mas provinciana. Ele diz isso com essas palavras em uma famosa conferência de 1942. Diz que, se a Semana tivesse ocorrido no Rio, não teria tido nenhuma repercussão. Porque o Rio, e essas agora são minhas palavras, já tinha muitas estratégias de modernidade, autores, compositores, cancionistas, gente que fazia cinema, feminismo. Tinha de tudo no Rio. Não porque era melhor que São Paulo; simplesmente era uma cidade mais cosmopolita, mais antiga. Era a capital do país. Este é um dado bem interessante: até a década de 1880, Porto Alegre e São Paulo tinham a mesma população e o mesmo padrão de crescimento populacional. Só a partir dali é que São Paulo explode. Então, dá para comemorar, mas não dá para ter a ilusão de que a Semana foi o big bang da inteligência brasileira. Essa transformação ocorreu por operações históricas que são detectáveis e analisáveis. É o que faço no novo livro que deve sair em 2022.

Uma coisa é a semana de arte moderna em si e outra é o processo histórico que se fez com ela. Por exemplo, a Guerra dos Farrapos: o que ela foi naquele contexto e o que se fez com ela? Não dá para ter a ilusão de que a Semana foi o big bang da inteligência brasileira.

O livro vai elaborar em profundidade a visão crítica sobre a Semana que tens pesquisado nos últimos anos?
A ideia foi juntar as coisas que eu já tinha escrito sobre a crítica à divinização da Semana. Mas aí acabei estudando e vendo que tinha uma estratégia melhor. Os capítulos se chamam 1922, 1932, 1942... até 2022. Década por década, o que fiz foi estudar, em torno dessas datas, o que ocorreu no debate a respeito da importância da Semana e do modernismo. Tem marcos importantes, como o artigo do Mário de Andrade de 1942. Era ele aos 20 anos da Semana fazendo uma conferência no Rio, dando um balanço da Semana. No mesmo ano, o Viana Moog, intelectual nascido em São Leopoldo, faz um estudo e afirma que não há literatura brasileira ainda. O que tem são sete ilhas que não se comunicam. Não sei se ele tem razão ou não, mas só para ilustrar. Em 1942, o Mário dizia naquela conferência que já existia literatura brasileira e que ela era o modernismo. É só um exemplo bem pontual de como em 1942 ainda tinha essa disputa. Também fui atrás de obras do Antonio Candido e do Alfredo Bosi. O Bosi, em 1966, publica O Pré-Modernismo. Ele diz que o pré-modernismo está definido há muito tempo por Alceu Amoroso Lima. E sai falando sobre o que é o pré-modernismo, que é o sentido que tem até hoje. Aí fui ler o Alceu, que nunca tinha lido. E ele não diz nada daquilo. Só usou o termo pré-modernismo para dizer que era antes do modernismo. O Bosi inventou a categoria do pré-modernismo e consolidou uma ideia que o Mário de Andrade já tinha. Mário chamava o Manuel Bandeira de São João Batista do modernismo. É uma metáfora cristã, porque São João Batista anunciou a chegada do suposto salvador, que era Jesus Cristo. Aí eu digo de maneira debochada que o Mário dizia isso porque ele, Mário, era o Jesus Cristo dessa história, ele era a verdade revelada. E o Bandeira reagia a isso. Catei na correspondência entre Mário e Bandeira. Ele dizia: “Não sou São João Batista coisa nenhuma”. O livro contará esses episódios.

Que condições possibilitaram que a Semana assumisse esse significado central no imaginário brasileiro?
O que faço no último capítulo do livro é um ensaio em que tento explicar quais são as condições objetivas, históricas, políticas, econômicas, sociais que sustentam essa entronização da Semana como centro de tudo. Em uma frase: a resposta é a economia de São Paulo. Voltei a estudar história econômica. Tem uma tese do Jorge Caldeira que diz que São Paulo conseguiu enriquecer porque ficava longe da sanha fiscalista da Coroa. São Paulo enriqueceu com a Guerra do Paraguai. A economia da província de São Paulo foi uma intermediária importante no abastecimento das tropas. E, quando veio o café, foi um negócio absurdo. Na década de 1910, quase 90% do café mundial passava pela cidade de São Paulo. É uma fábula de dinheiro que não tem tamanho. E isso se acentua. Na chamada Primeira República, foi o primeiro momento em que as províncias tiveram autonomia para taxar exportação. Isso muda tudo. Então, o imposto de exportação era cobrado pelos Estados, e o de importação era cobrado pela União. O café enriqueceu São Paulo. E, uma geração depois da Semana, nos anos 1950, há a explosão da indústria automobilística brasileira. A força da economia de São Paulo é irrepetível. Não tem outra região do Brasil que tenha vivido algo parecido com essa arrancada, que vai de 1880 a 1950, um processo de três gerações.

Acreditas que tua interpretação sobre o modernismo pode ser adotada nas universidades e no Ensino Médio?
Respondendo de trás para frente, primeiro a questão de chegar às escolas. O vestibular unificado quase acabou. A força que a ideologia modernista paulista teve correspondeu nos últimos 50 anos à lógica do vestibular unificado. Antes de 1970, o exame vestibular era feito em cada unidade. Os professores da Faculdade de Arquitetura, por exemplo, elaboravam provas para quem era candidato à Arquitetura. Então, o cara tinha que estudar história da arte, desenho, matemática. Porque era um momento em que a universidade no Brasil era para muito poucos. Muito pouca gente concluía o atual Ensino Médio. Então, ocorreu a revolução industrial brasileira, o êxodo rural, e, ao longo dos anos 1960, começou a haver mais gente nas cidades, mais gente demandando a universidade. Nesse momento, no miolo da ditadura, em vez de ampliar as vagas, o então Ministério da Educação e Cultura criou o vestibular unificado. E todos os candidatos a qualquer curso prestavam a mesma prova. Isso é um crime intelectual inominável que fez a gente ter um Ensino Médio enciclopédico. É bem diferente do que se faz, por exemplo, nos EUA. Agora, esse vestibular unificado acabou por causa do Enem. E o Enem não tem um programa explícito de literatura. Tem habilidades de leitura. Acho que por alguns anos ainda vamos ter a inércia dessa mentalidade da historiografia literária brasileira modernistocêntrica dominando sem aparecer, seguirá como favas contadas.

A universidade hoje é uma presa da superespecialização. A perspectiva de uma leitura de conjunto da história não é moeda corrente, quase ninguém se ocupa disso. O cara faz a carreira dele estudando um autor.

E quanto à repercussão da tua interpretação no meio acadêmico hoje?
É uma coisa muito irregular. Não sou só eu que faço essa crítica (ao modernismo), tem mais gente que faz. Tem um cara que não tem a ver com a academia, que é o Ruy Castro, que tem publicado muita coisa. Muitos dos meus colegas de universidade gostam, saúdam o que eu escrevo, mas ao mesmo tempo a universidade hoje é uma presa da superespecialização. A perspectiva de uma leitura de conjunto da história não é moeda corrente, quase ninguém se ocupa disso. O cara faz a carreira dele estudando um autor. No fundo, arriscaria dizer que a maior parte dos meus colegas professores de literatura em universidades simplesmente não vê isso como relevante. Por causa da superespecialização. A universidade permite, para o bem e para o mal, um relativo descompromisso com um debate como esse, que envolve ensino, ideologia. Estudei História, não me formei por poucas cadeiras. Às vezes, eu me encontro mais conversando com colegas que estudam história da cultura na (área de) História do que com colegas que estudam literatura.

O livro Duas Formações, uma História é como um roteiro para repensar a forma de escrever a história da literatura tendo em vista o advento de diferentes aportes teóricos, incluindo alguns que não têm origem na literatura, como Viveiros de Castro?
Sim. Tomo conselho com Viveiros de Castro, com Stephen Jay Gould, com teóricos da história. Com a nova geração de historiadores, que é a minha geração cronológica: João Luís Fragoso, Manolo Florentino, que são os caras que reviraram essa história. O número dois do título Duas Formações, Uma História tem a ver com minha condição de habitante do sul do Brasil ou, como se diz genericamente, gaúcho. Vivendo numa ponta do Brasil que nunca esteve no centro de nada, ao contrário dos baianos, cariocas e paulistas, que estão ou estiveram no centro da cultura brasileira. Então, a gente sempre desenvolve uma perspectiva, no fundo, dupla. Quem é intelectual aqui tem de pensar sobre o local e o não local o tempo todo. Escutamos o samba carioca e o tango platino e, de certa forma, as duas coisas nos dizem respeito. Porque realmente estamos numa ponta da história. E essa ponta costuma ser vista como problemática para os grandes enquadramentos. Eu postulo a ideia de que o Brasil tem essas duas formações: uma sendo a plantation, a grande propriedade escravagista monocultora exportadora, no litoral; e tem também o lado de dentro, e uso para isso a palavra sertão, num sentido genérico, como terra desconhecida. A gente aqui vive ouvindo poesia, lendo romance que tem a ver com esse mundo do “sertão” entre aspas. O Erico Verissimo de O Tempo e o Vento é sertão puro. E aí esses caras que falam desse sertão aqui no pampa ou no oeste do Rio Grande do Sul são vistos pela visão hegemônica – que é urbana – como um acidente de percurso. Daí, quando aparece um gênio como Guimarães Rosa, não dá para dizer que é um acaso. Ele não fica naquela gaveta de “outros”. Como tu lidas com esse cara? A visão modernistocêntrica diz: embora o sertão do Guimarães Rosa seja um assunto vencido, ele é um cara experimental. Aí vem a possibilidade de conversa dele com James Joyce, por exemplo. O que é uma forma possível de pensar sobre ele, mas, ao mesmo tempo, é uma visão que renega justamente essa profunda inscrição dele no mundo do sertão. Meu ponto: esse Brasil do litoral é o Brasil das grandes cidades, como Salvador e Rio de Janeiro. São Paulo já é boca do sertão. Acontece que há vida no sertão desde o século 17. É um mundo que no começo não é escrito, é ágrafo, mas que vai chegar na letra. Vai chegar pela via das tradições orais, do causo, do chamado romance regionalista do século 19. Só que de repente tu passas a ter monumentos literários aí. O exemplo superior é o Guimarães Rosa. No fundo, a conclusão é trivial: o Brasil não é só o litoral. Só que tento fazer isso dizendo: organicamente, mesmo a literatura brasileira, que é uma arte claramente urbana, depende de impressão, de escola... Mesmo a literatura alcança o sertão de maneira muito forte e efetiva.

A gente tem que ensinar as pessoas a ler, mostrar como é bom ler, como faz bem. tenho sempre essa sensação de que temos um produto maravilhoso para 'vender', entre aspas: ensinar as pessoas a ler.

Como vês o fato de sermos ainda um país de poucos leitores? Muitos o são por falta de oportunidade, e outros tiveram oportunidade e mesmo assim optam por não serem leitores. Com quem falamos quando falamos de livros?
Eu me sinto fazendo um negócio que tem muito futuro, no sentido de que tem um mercado potencial imenso. A gente tem que ensinar as pessoas a ler, mostrar como é bom ler, como faz bem. Antonio Candido mesmo afirmava num artigo dos anos 1970: o que está acontecendo é que as massas que estão chegando na cidade vão passar de uma etapa de folclore oral para um outro tipo de folclore – palavra usada aqui no sentido pejorativo – urbano dos meios de comunicação massivos. Hoje em dia, no ambiente digital, imagina. Tem uma força avassaladora dos meios de comunicação massivos que de certa forma impede a leitura, porque justamente a leitura é um negócio lento, que tem que fazer despendendo energia mental e emocional. Não tenho uma resposta muito boa nem muito esperançosa. Mas tenho sempre essa sensação de que temos um produto maravilhoso para “vender”, entre aspas: ensinar as pessoas a ler. Além disso, tem o fato de que para mim a canção é um elemento que faz parte do mundo da literatura. Assim como a telenovela. Não sei dizer nada de relevante sobre telenovela, mas a canção acho que pode ser incorporada a esse patrimônio. A canção é um negócio massivo. Não apenas essa canção de agora, mas a canção em geral. Certamente, no Brasil, do ponto de vista da população, a canção é muito mais importante na formação lírica do brasileiro do que a poesia de livro. Então nós, professores de literatura, temos que conversar com esse patrimônio. Nós que temos de nos habilitar nele. Porque essa habilitação para a sociedade já existe.

Há algum tempo, tens te debruçado sobre a canção como objeto de estudo. A canção seria a forma artística mais popular do Brasil?
Entre as formas que envolvem literatura? Certamente. Junto com a telenovela. A telenovela tem um problema complexo e talvez sem solução que é sua duração no tempo. É inexequível tu passares uma telenovela inteira para conversar com os alunos. Um pouco as séries têm feito o papel que a telenovela fez. Não acompanho muito, mas acho que tem a ver com isso. Tu consegues fazer um romance cíclico, um roman-fleuve numa série, contando uma história complexa, de uma família ao longo de várias gerações ou uma trama complexa. Isso não é narrativa escrita, mas é narrativa. Então, nós, professores de literatura, deveríamos nos habilitar nessa conversa. Falar sobre isso.

A canção está mais entranhada na universidade do que a telenovela?
Sabe que a cadeira de canção que inventei está fazendo 30 anos? Simplesmente foi uma coisa que me pareceu óbvio fazer. Porque eu já sou dessa geração que fez a sua formação lírica ouvindo canção. Nasci em 1958, então acompanhei os últimos festivais e os anos 1970 como jovem, entusiasmado. Então, me pareceu óbvio que isso ali tinha a ver com o mundo das letras. Ao mesmo tempo, do ponto de vista acadêmico tradicional nas Letras, a canção seria uma coisa problemática. Porque a tradição é de texto escrito e impresso. Mas basta fazer um pequeno movimento para o lado que tu enxergas como a canção é relevante para todos. Tu entrevistas as pessoas, especialmente de classe popular hoje em dia, e vês que os Racionais MCs estão no absoluto centro da vida de gente como o (escritor José) Falero. Como ignorar essa presença?

A canção é relevante para todos. Tu entrevistas as pessoas, especialmente de classe popular hoje em dia, e vês que os Racionais MCs estão no absoluto centro da vida de gente como o escritor José Falero. Como ignorar essa presença?

Mas ainda hoje se debate se canção é literatura. Esse assunto voltou, por exemplo, quando Bob Dylan ganhou o Nobel, em 2016. É um debate que ainda faz sentido?
Um argumento que uso nesse tema é a forma chamada romance. O romance, quando nasceu, era uma coisa vulgar, bagaceira. No século 18, era uma coisa trivialíssima, lida por todos, logo, não era muito considerada. Lá pelas tantas aparece o Balzac, e, duas gerações depois, o Flaubert – para ficar no exemplo francês, que no Brasil é mais influente. Ali o romance já é considerado grande arte. Mas um pouco antes não era. Os grandes autores ingleses neoclássicos achavam aquilo uma vulgaridade insuportável, escrita em língua cotidiana, com gente comum. No fim, o romance virou um grande negócio. Então, a canção é a mesma coisa. Nasceu como, sei lá eu, brincadeira de roda, como um jogo comunitário de pergunta e resposta, como sátira. Só que de repente entraram uns caras nessa brincadeira que elevaram o patamar da conversa. Noel Rosa, por exemplo. Com ele, e alguns outros, a canção adquire uma complexidade que a faz ser simplesmente incontornável.

Fonte:  https://gauchazh.clicrbs.com.br/cultura-e-lazer/noticia/2021/12/a-universidade-hoje-e-uma-presa-da-superespecializacao-diz-luis-augusto-fischer-ckxp4zggl00bm0188st7jsr6i.html

NATAL. Este sentimento oceânico.

 Tolentino Mendonça

 https://asset.skoiy.com/1a93bfdc2c745936d7e62efa3b843f01/getcxanw55kg.jpg?w=1140&q=90

27 dezembro 2021  

Para crentes e não-crentes, o Natal é uma estação de confronto consigo mesmos. Por aquilo que os símbolos desta quadra dizem ou não a cada um, por aquilo que as palavras acordam, pela presença ou pela ausência de uma transcendência nos dias que se avizinham. Cada um vive à sua maneira ou como interiormente pode. Mas uma coisa inegável é observar este silencioso sobressalto, esta espécie de “sentimento oceânico” que nos percorre em conjunto, que sem sabermos como nos transporta e que ganhamos em escutar, mesmo se no final as interpretações encontradas possam ser distintas. Recordo-me, a esse propósito, do debate que ligou, por exemplo, Sigmund Freud e o escritor Romain Rolland.

Um dos temas a que Freud prestou atenção foi, como é sabido, a experiência religiosa. O tema fez sempre parte das suas investigações, mesmo quando estas versavam diretamente outros assuntos. E não restam dúvidas sobre a importância que atribuía à religião no âmbito da economia psíquica do sujeito. É certo que a sua tese de fundo remove do fenómeno religioso toda a dimensão externa de revelação e explica-o unicamente à luz dos conflitos não-resolvidos que vêm da primeira infância (desse intrincado e gigante magma, feito, segundo ele, de medos, desejos e culpas a que se procurará a vida inteira dar respostas). Mas, ainda assim, Freud teve a oportunidade de realizar diálogos marcantes neste âmbito. Talvez o mais significativo tenha sido precisamente o que ficou registado na sua correspondência com Rolland. Este, que foi Prémio Nobel da Literatura em 1915, era um intelectual poliédrico, um arquiteto de pontes: entre o Oriente e o Ocidente, entre o ensino académico e a militância pacifista, entre o compromisso civil e a experiência espiritual. Definia-se a si mesmo como um viandante em busca da verdade, e o motor dessa busca era, segundo ele, um “instinto religioso”, que trabalhou com audácia e a modo seu.

Cada um vive o Natal à sua maneira ou como interiormente pode. Mas uma coisa inegável é observar este silencioso sobressalto, esta espécie de “sentimento oceânico” que nos percorre em conjunto

Foi Freud quem o procurou, enviando-lhe uma primeira carta, em fevereiro de 1923, e as trocas epistolares durariam até ao ano da morte do pai da psicanálise, em 1939. É curioso constatar como o debate privado que mantinham alcançava depois um eco na produção ensaística de ambos. Recebendo um exemplar de “O Futuro de Uma Ilusão” (dezembro de 1927), Rolland critica Freud por considerar uma mera ilusão supor que as respostas que a ciência não nos pode dar podemos consegui-las noutro lugar (e quando este diz “outro lugar” pensa sobretudo na religião). As representações religiosas não passam, para ele, de ficções que corporizam a necessidade infantil da proteção. A esta radical redução psicológica, Rolland contrapõe “o facto simples e direto” que continua a provar que a religião é uma experiência viva e inalienável: a “sensação de eterno” que ciclicamente assoma ao coração de cada um e nada cancela; a consciência de que somos o ponto de uma relação mais vasta do que nós próprios; a experiência de imersão num “sentimento oceânico”, transbordante e vital, que é uma grafia essencial da vida. Esta corrente espiritual que nos envolve pode-se adjetivar como “oceânica”, por analogia àquilo que o mar desperta em nós. Ao mesmo tempo traz ao coração humano a ressonância de algo primordial e a evidência sensível do que é maior, do que nos transcende, do que só tocamos com o desejo, do que tentamos nomear chamando de infinito. Para Roland, se não se encara de frente o impacto deste “sentimento oceânico”, não se compreende o caminho do humano.

Os dias 24 e 25 de dezembro passam depressa, mas as questões que colocam à nossa humanidade são mais do que lentas. São irremovíveis.

Fonte: https://www.imissio.net/artigos/53/4490/este-sentimento-oceanico-por-tolentino-mendonca/

Eu sou cagona, minha melhor amiga é fodona. Deu Match!

 Mirian Goldenberg*

 Fogos de artifício no céu da noite 

Fogos de artifício em Wellington, na Nova Zelândia - 10.jul.2021 - Zhang Jianyong/Xinhua

Uma amiga me chamou para cuidar da dor dela. Guardei a minha na bolsa. E fui...

29.dez.2021 

No meio de uma conversa telefônica de quase três horas, Irene me interrompeu quando eu estava desabafando sobre meus medos, angústias e ansiedades:

"Mirian, por que você se preocupa tanto com a opinião e aprovação dos outros? Eles pagam suas contas? Foda-se o que esses vampiros parasitas dizem, você tem que cagar para gente preconceituosa, arrogante e invejosa. Nunca me preocupei com a opinião dos outros, nunca dependi da aprovação de ninguém. Sou uma mulher livre, independente, pago minhas contas e ainda ajudo muita gente. Eu sou fodona!".

Concordei: "É verdade, Irene. Essa é a grande diferença entre nós: você é fodona, eu sou cagona!"

Ela deu sua risada gostosa que me lembra de Caetano Veloso: "Quero ver Irene rir, quero ver Irene dar sua risada".

Irene é corajosa, segura, autoconfiante, independente, extrovertida, generosa, forte, divertida, brilhante, carismática e alegre. Ela é fodona!

Eu sou medrosa, insegura, tímida, envergonhada, introvertida, carente, frágil, ansiosa, angustiada, introspectiva e triste. Eu sou cagona!

Irene é minha mentora, minha conselheira, meu exemplo de mulher admirável: corajosa, sábia, verdadeira, amorosa e generosa.

Desde os meus 17 anos, quando Irene me viu pela primeira vez na faculdade, ela resolveu me adotar como filha, apesar de ser só cinco anos mais velha.

"Eu queria te proteger, te cuidar. Você era a mais novinha da turma, a mais magrinha, a mais perdida, desamparada e carente. Ficava o dia inteiro no centro acadêmico lutando contra a ditadura militar. Eu tinha medo de que você fosse presa ou desaparecesse. A minha forma de te proteger foi te adotar como uma filha."

Quem foi o meu porto seguro quando meus amigos foram presos na invasão da PUC-SP em 1977? Irene. Quem me acolheu quando minha mãe teve câncer e morreu dois anos depois? Irene. Quem me abraçou quando meu pai teve câncer e morreu cem dias depois? Irene. Quem me deu colo em cada luto, perda, separação e divórcio? Irene. Quem me aconselhou quando eu precisei fazer difíceis escolhas profissionais e amorosas? Irene.

Irene sempre gostou de cuidar de todo mundo: da mãe, do pai, irmãos, sobrinhos, amigos, amigas, pacientes, alunos, gatos, cachorros... É a mulher mais generosa que conheci em toda a minha vida.

Eu, que vivi até os 16 anos em uma família extremamente tóxica e violenta, encontrei na minha melhor amiga tudo o que eu mais precisava para sobreviver física e emocionalmente. Foi a combinação perfeita: ela gostando de cuidar de seres abandonados, machucados e maltratados; eu mendigando por uma migalha de amor, atenção e carinho. Ela sempre gostou de cuidar, eu precisava ser cuidada. Deu Match!

Quando eu disse que me sentia uma bosta, Irene reagiu indignada: "Mirian, vou agora mesmo para o Rio de Janeiro te dar umas boas palmadas na bunda. Nunca mais repita que é uma bosta. Esqueça os seus traumas de infância. Você não é mais aquela menininha frágil e medrosa. Você não consegue enxergar tudo o que conquistou na vida? Eu te admiro muito. Mesmo se sentindo uma bosta, mesmo se achando uma formiguinha que sempre se escondeu no armário para não ser esmagada, você conseguiu sobreviver e realizar seus projetos de vida: ser professora, pesquisadora e escritora. E, mesmo tão carente de cuidado, aprendeu a cuidar de muita gente que precisa de você. Você é foda!".

Meu mantra de 2021 foi: "Um amigo me chamou para cuidar da dor dele. Guardei a minha no bolso. E fui...".

Adaptei a frase de Caio Fernando Abreu para: "Uma amiga me chamou para cuidar da dor dela. Guardei a minha na bolsa. E fui...". O meu propósito de vida é ter cada vez mais coragem, força e generosidade para escrever e "escutar bonito" meus amigos e amigas que precisam de compreensão, carinho e cuidado para sobreviver em tempos tão tristes e trágicos.

Desejo um 2022 com muita saúde, amor, coragem, generosidade e reciprocidade para todos que estão cuidando da dor de quem mais precisa de cuidado.

* Antropóloga e professora da Universidade Federal do Rio, é autora de "A Bela Velhice".

Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/miriangoldenberg/2021/12/eu-sou-cagona-minha-melhor-amiga-e-fodona-deu-match.shtml?utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=newscolunista

segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

Natal: a dignidade infinita de ser Homem

 Anselmo Borges*

Como se Comemora o Natal ao Redor do Mundo? | NetLinguae Idiomas

A festa do Natal tem de ser, é, mais do que o festival do comércio natalício. Há pessoas que chegam à noite de Natal cansadas e desfeitas, por causa dos presentes. No último instante, ainda tiveram de ir à última loja aberta, por causa de mais uma compra. Há inclusivamente pessoas para as quais o tormento das compras natalícias começa logo em janeiro, uns dias após o Natal: o que é que vão dar como presente àquele, àquela, no Natal seguinte?!...

A festa do Natal é infinitamente mais, e deve sê-lo. Porque o Natal é uma visita de Deus aos homens, às mulheres, aos jovens, às crianças. É Deus presente entre nós. E, ao contrário do que frequentemente fazemos com os nossos presentes, que pretendem ser uma manifestação de ostentação de poder junto dos outros, Deus veio, sem majestade, sem poder. Veio, humilde, na ternura de uma criança. De tal maneira que os mais pobres - os pastores - não se sentiram humilhados ao visitá-lo. Foram os pastores os primeiros que viram Deus visível num rosto de criança. Quem é que imaginaria que Deus, se algum dia viesse, viria assim: simples, pobre, precisamente para que ninguém se sentisse excluído?...

Quer se seja cristão quer não, quer se acredite quer não, é necessário reconhecer que foi através do cristianismo, isto é, mediante a fé no Deus feito Homem, que veio ao mundo a tomada de consciência explícita e clara da dignidade infinita do ser humano. Isso foi reconhecido por pensadores da estatura de Hegel, Ernst Bloch, Jürgen Habermas. Hegel afirmou expressamente que na religião cristã está o princípio de que "o Homem tem valor absolutamente infinito". Ernst Bloch, embora ateu, confessou que foi pelo cristianismo que veio ao mundo a consciência do valor infinito da pessoa humana, de tal modo que nenhum homem, mulher, jovem, criança, pode ser tratado como "gado". Jürgen Habermas, o mais importante filósofo vivo, escreveu que a democracia não se entende sem a compreensão judaico-cristã da igualdade radical de todos os homens, por causa da "igualdade de cada indivíduo perante Deus": o princípio de "um homem um voto" é a tradução política da fé cristã de que cada homem, cada mulher, é filho, filha, de Deus, valendo todos como iguais. A própria ideia de pessoa enquanto dignidade inviolável e sujeito de direitos inalienáveis veio ao mundo através dos debates à volta da tentativa de compreender a pessoa de Cristo e o mistério do Deus trinitário cristão. Embora, desgraçadamente, tenham tido de impor-se contra a Igreja oficial, foi em solo de base cristã que foram germinando e se deram as grandes Declarações de Direitos Humanos.

Afinal, é uma alegria enorme dar um presente e receber um presente, concretamente na época de Natal. Mas essa alegria não provém tanto do valor material do presente como desse saber que consiste em sermos e estarmos nós próprios presentes uns aos outros: ele lembrou-se de mim, eu lembrei-me dele; eu lembrei-me dela, ela lembrou-se de mim...

O pequeno presente oferecido é sinal, símbolo, dessa presença calorosa, e exprime a alegria de se ser pessoa, cuja dignidade infinita reconhecemos em cada ser humano. Assim, celebrar o Natal tem de ser também contribuir para que se concretize o anúncio dos anjos aos pastores, que constituíam a classe baixa dos pequenos e pobres e que inclusivamente viviam à margem da prática religiosa: "Nasceu para vós um salvador; Paz na Terra aos homens amados por Deus." É uma vergonha para a Humanidade que hoje mais de 800 milhões de pessoas passem fome enquanto os gastos com armamento não cessam de aumentar.

José Tolentino de Mendonça escreveu: "O Natal do comércio chega de um dia para o outro. Fácil, tilintante, confuso, pré-fabricado. É um Natal visual. Um amontoado de símbolos. Dentro de nós, porém, sabemos que não é assim. Para ser verdade, o Natal não pode ser só isto. Não pode ser apenas para uma emoção social, para um corrupio de compensações, compras e trocas. Para ser verdade, o Natal tem de ser fundo, pessoal, despojado, interpelador, silencioso, solidário, espiritual. Acorda em nós, Senhor, o desejo de um Natal autêntico."

Considero suicidário que os europeus menosprezem a sua herança cristã. Sinto como desastroso e ridículo, que, em nome da inclusão, uma vez que nem todas as religiões celebram a data, a comissária europeia para a Igualdade, Helena Dalli, tenha recomendado a abolição da palavra "Natal", a substituir por "período de festas", por exemplo. No guia distribuído aos funcionários da Comissão Europeia, chegou-se ao cúmulo de recomendar a substituição de nomes cristãos, como Maria e José... por outros. Pergunto: será que alguém que não estima a sua cultura vai respeitar as dos outros? O ser humano, na e para a sua identidade, é ao mesmo tempo enraizado e aberto. Quem nega as suas raízes, perdendo a identidade, tem competências para se abrir ao diálogo são e enriquecedor com os outros? Significativamente, Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, escreveu pessoalmente ao Papa Francisco assegurando que a União Europeia se inspira na "herança cultural, religiosa e humanista da Europa".

Seja como for, é Karl Rahner, talvez o maior teólogo do século XX - tive o privilégio de ser seu aluno -, que tem razão: "Quando dizemos "é Natal", estamos a dizer: Deus disse ao mundo a sua última palavra, a sua mais profunda e bela palavra numa Palavra feita carne. E esta Palavra significa: amo-vos, a ti, mundo, a vós, seres humanos." Natal bom e feliz!

Padre e professor de Filosofia. Escreve de acordo com a antiga ortografia

Fonte: https://www.dn.pt/opiniao/natal-a-dignidade-infinita-de-ser-homem-14437631.html