domingo, 30 de abril de 2017

Há sempre alguém esperando Godot

Leonardo Boff *
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Conheci um homem que fez de tudo na vida. Dizem que foi ateu e marxista e que chegou a ser mercenário da Legião Estrangeira francesa e que  atirou contra  muita gente.

De repente se converteu. Fez-se monge sem sair do mundo. Foi trabalhar como estivador. Mas todo o tempo livre dedicava-o à oração e à meditação. Durante o dia recitava mantras: “Jesus, valei-me”. “Jesus, perdoai meus pecados”. “Jesus santificai-me”. “Jesus, fazei-me amigo dos pobres”. “Jesus, fazei-me pobre com os pobres”.

Estranhamente, tinha um jeito próprio de rezar. Pensava: se Deus se fez gente em Jesus, então foi como nós: fez xixi, choramingava pedindo o peito, fazia biquinho com as coisas que o incomodavam como a fralda molhada.

No começo Jesus teria gostado mais de Maria, depois mais de José, coisas que  os psicólogos explicam. E foi crescendo como nossas crianças, brincando com formigas, correndo atrás dos cachorrinhos, atirando pedras em burros e, maroto, levantando os vestidinhos das meninas para vê-las furiosas como imaginou irreverentemente Fernando Pessoa.

E então rezava à Maria, a mãe do Menino, imaginando como ela ninava Jesus, como lavava no tanque as fraldinhas e como cozinhava o mingau para o Menino as  comidas fortes para o esposo,  o bom José. E se alegrava interiormente com tais matutações porque as sentia e vivia na forma de comoção do coração. E chorava com frequência de alegria espiritual.

Ao fazer-se monge, decidiu por aqueles que fazem do mundo a sua cela e que vivem radicalmente a pobreza junto com os pobres: os Irmãozinhos de Foucauld. Criou uma pequena comunidade na pior favela da cidade. Tinha poucos discípulos. A vida era muito dura: trabalhar com os pobres e meditar. Eram apenas três que acabaram indo todos embora. Essa vida, assim exigente, não era para eles.

Viveu em vários países, mas foi sempre ameaçado de morte pelos regimes militares e tinha que se esconder e fugir para outro  país. Aí, tempos depois, lhe ocorria a mesma sorte. Mas ele se sentia na palma da mão de Deus. Por isso vivia despreocupado.     

Indispunha-se também com a Igreja institucional, essa do cristianismo apenas devocional e sem compromisso com a justiça dos pobres. Mas, finalmente conseguiu agregar-se  a uma paróquia que fazia trabalho popular. Trabalhava com os sem-terra, com os sem-teto e com um grupo de mulheres. Acolhia prostitutas que vinham chorar suas mágoas com ele. E saiam consoladas.    

Corajoso, organizava manifestações públicas em frente à prefeitura e puxava ocupações de terrenos baldios. E quando os sem-terra e sem-teto conseguiam se estabelecer, fazia belas celebrações ecumênicas com muitos símbolos, as chamadas  “místicas”.

Mas todos os dias, depois da missa da noite, ficava enfurnado, por longo tempo, na igreja escura. Apenas a lamparina lançava lampejos titubeantes de luz, transformando  as estátuas mortas em fantasmas vivos e as colunas eretas, em estranhas bruxas. E lá se quedava, Impassível, olhos fixos no tabernáculo, até que viesse o sacristão para fechar a igreja. 

Um dia fui procurá-lo na igreja. Perguntei-lhe de chofre:  “meu irmãozinho, (não vou revelar seu nome porque o entristeceria), você sente Deus, quando depois dos trabalhos, se mete a meditar aqui na igreja? Ele lhe diz alguma coisa?"

Com toda a tranquilidade, como quem acorda de um sono profundo, olhou-me meio de lado e apenas disse:

“Eu não sinto nada. Há muito tempo que não escuto a voz do Amigo (assim chamava Deus). Já senti um dia. Era fascinante. Enchia meus dias de música. Hoje não escuto mais nada. Talvez o Amigo não me falará nunca mais”.

Retruquei eu, “por que continua, todas as noites, aí na escuridão sagrada da igreja?"

“Eu continuo”, respondeu, “porque quero estar disponível; se o Amigo quiser chegar, sair de seu silêncio e falar, eu estou aqui para escutar. Imagine, se Ele quiser falar e eu não estiver aqui? Pois ele, cada vez, vem apenas uma única vez. Que seria de mim, infiel amigo do Amigo?" Sim, ele continua sempre “esperando Godot”. “E não se move” como da peça de Samuel Beckett.

Deixei-o em sua plena disponibilidade. Sai maravilhado e meditativo. É por causa desses que o mundo é poupado e Deus continua a manter sua misericórdia sobre aqueles que o esquecem ou o consideram morto, segundo disse um filósofo que ficou louco. Mas há os que vigiam e esperam, contra toda a esperança esperam Godot. Esta espera fará que, cada dia, tudo seja  novo e cheio de jovialidade.

Um dia o sacristão o encontrou inclinado sobre o banco da Igreja. Pensou que dormia. Percebeu que o corpo estava frio e enrijecido.

Como o Amigo não veio, ele foi ao encontro dele. Agora não precisa mais esperar Godot e o seu advento. Estará com o Amigo, celebrando uma amizade, no maior entretenimento, pelos tempos sem fim.
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* Leonardo Boff é filósofo, teólogo e colunista do JB on line.
Fonte:http://www.jb.com.br/leonardo-boff/noticias/2017/04/30/ha-sempre-alguem-esperando-godot/
Imagem da Internet

A verdadeira história das notícias falsas

Robert Darnton*
Noticias falsas 
A imprensa amarela, de M. Slackens, em que se mostra W. Randolph Hearst 
como um bobo da corte que divulga notícias. Publicado por Keppler & Schwarzmann em 1910.  
  BIBLIOTECA DEL CONGRESO DE EE UU

Séculos antes das redes sociais, os boatos e as mentiras alimentavam pasquins e gazetas na Europa

Na longa história da desinformação, o surto atual de notícias falsas já ocupa um lugar especial, com uma assessora presidencial norte-americana, Kellyanne Conway, que chegou a sacar da manga um massacre em Kentucky para defender que se proibisse a entrada nos país de viajantes de sete países muçulmanos. Mas a invenção de verdades alternativas não é tão infrequente, e equivalentes às mensagens de texto e aos tuítes cheios de veneno de hoje podem ser encontrados em quase todos os períodos da história, inclusive na Antiguidade.

Procópio, o historiador bizantino do século VI, escreveu um livro cheio de histórias de veracidade duvidosa, História Secreta (Anedota no título original), que manteve em segredo até sua morte, para arruinar a reputação do imperador Justiniano, depois de ter mostrado adoração a ele em suas obras oficiais. Pietro Aretino tentou manipular a eleição do pontífice em 1522 escrevendo sonetos perversos sobre todos os candidatos menos o preferido por seus patronos, os Médicis, e os prendendo, para que todo mundo os admirasse, no busto de uma figura conhecida como Il Pasquino, perto da Piazza Navona, em Roma. Os pasquins se transformaram em um método habitual para difundir notícias desagradáveis, em sua maioria falsas, sobre personagens públicos.

Ainda que os pasquins nunca tenham desaparecido por complexo, no século XVII foram substituídos em grande parte por um gênero mais popular, o canard, a gazeta cheia de boatos e falsas notícias que circulou pelas ruas de Paris durante os 200 anos seguintes. Os canards eram jornais impressos em tamanho grande, às vezes ilustrados com gravuras chamativas para atrair os mais crédulos. Um dos mais bem-sucedidos, na década de 1780, anunciou a captura no Chile de um monstro que, aparentemente, estava sendo transferido de barco para a Espanha. Tinha cabeça de fúria, asas de morcego, corpo gigantesco coberto de escamas e rabo de dragão.

A morte de Maria Antonieta é um exemplo das consequências desastrosas da difamação

Durante a Revolução Francesa, os gravadores colocaram o rosto de Maria Antonieta nas placas de cobre e o canard ganhou nova vida, como propaganda política deliberadamente falsa. Apesar de não ser possível medir sua repercussão, desde cedo contribuiu para o ódio patológico que se sentia com relação à rainha, que desembocou em sua execução em 16 de outubro de 1793.
O Le Canard Enchaîné, um semanário parisiense especializado em revelações políticas exclusivas, hoje evoca essa tradição em seu próprio título, que poderia ser traduzido figuradamente como “os boatos controlados”. Recentemente publicou uma notícia sobre a mulher de François Fillon, o candidato de centro-direita que era o favorito na campanha presidencial da França. Segundo o jornal, Penelope Fillon tinha recebido um salário alto durante muitos anos por ser “ajudante parlamentar” de seu marido. Apesar de Fillon não ter dito que a notícia era falsa –reconheceu que contratou sua esposa e afirma que isso não é ilegal–, o chamado Penelopegate conseguiu tirar Donald Trump das primeiras páginas e seguramente destruiu as possibilidade de Fillon na eleição, em benefício da Frente Nacional, o mais parecido que existe na França com o presidente norte-americano.
Montaje tuiteado en febrero pasado por el líder antimusulmán Geert Wilders que sitúa a un rival político, Alexander Pechtold, en una manifestación en la que se pide la imposición de la ley islámica en Holanda, Abajo, la foto real, sin manipular.
Montagem tuitada em fevereiro pelo líder antimuçulmanos Geert Wilders que coloca um rival político, Alexander Pechtold, em uma manifestação na qual se pede a imposição da lei islâmica na Holanda. À direita a foto real, sem manipulação.
A produção de notícias falsas, semifalsas e verdadeiras mas comprometedoras teve seu apogeu na Londres do século XVIII, quando os jornais aumentaram sua circulação. Em 1788, a cidade tinha 10 jornais diários, 8 que saíam três vezes por semana e 9 semanários, e as notícias que publicavam costumavam consistir em apenas um parágrafo. Os “homens do parágrafo” se inteiravam das fofocas nos cafés, escreviam algumas frases em um papel e o levavam aos impressores, que eram também editores e que normalmente o incluíam no primeiro buraco que tivessem disponível em alguma coluna da pedra litográfica. Alguns gazeteiros recebiam dinheiro pelos parágrafos; outros se conformavam em manipular a opinião pública a favor ou contra uma personalidade, uma obra de teatro ou um livro.

Em 1772, o reverendo Henry Bate (capelão de Lord Lyttleton) fundou o The Morning Post, um jornal que era uma sucessão de parágrafos sobre notícias distintas, quase todas falsas. Em 13 de dezembro de 1784, por exemplo, esse jornal publicou um parágrafo sobre um prostituto que prestava seus serviços a Maria Antonieta: “A rainha francesa tem afeição pelos ingleses. De fato, a maioria de seus favoritos procede desse país; mas quem mais prefere é o senhor W. É sabido que esse cavalheiro tinha sua carteira vazia quando chegou a Paris e, no entanto, agora leva uma vida cheia de elegância, bom gosto e moda. Mantem suas carruagens, seus uniformes e sua mesa sem economizar gastos e com todo o esplendor”.
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* Colunista do El Pais
Fonte:  http://brasil.elpais.com/brasil/2017/04/28/cultura/1493389536_863123.html

sexta-feira, 28 de abril de 2017

Mi­chael Löwy: “Assistimos a uma ofensiva brutal e ecocida do capital financeiro, com tendências cada vez mais autoritárias”


“Se o fu­turo fosse pre­vi­sível, nunca ha­veria ver­da­deiras mu­danças... As­sis­timos a uma guerra de classes, uma ofen­siva vi­o­lenta, brutal e eco­cida do grande ca­pital fi­nan­ceiro glo­ba­li­zado, que toma formas va­ri­adas se­gundo os países e as con­jun­turas, com ten­dên­cias cada vez mais au­to­ri­tá­rias, como o de­mons­tram os exem­plos de Trump (EUA), Er­dogan (Tur­quia), Orban (Hun­gria), assim como a qua­drilha no poder atu­al­mente no Brasil”

Em­ma­nuel Ma­cron e Ma­rine Le Pen irão ao se­gundo nas elei­ções fran­cesas, em mais uma de­mons­tração de força do ne­o­fas­cismo eu­ropeu, re­pre­sen­tado na fi­gura da can­di­data anti-imi­gração. Para falar da con­jun­tura do país, mas também global, con­ver­samos com o fi­ló­sofo franco-bra­si­leiro Mi­chael Löwy, que apesar do con­texto mun­dial ne­ga­tivo des­taca a eclosão de di­versas re­sis­tên­cias an­ti­ca­pi­ta­listas pelo pla­neta.

“Acho que a es­querda deve votar em Ma­cron, para barrar o ca­minho ao pro­grama se­mi­fas­cista de Ma­rine Le Pen. Mas sem ne­nhum apoio ao pro­grama de Ma­cron, que está a ser­viço do ca­pital fi­nan­ceiro. O caso de Hol­lande é di­fe­rente: ele se iden­ti­fica com este pro­grama ne­o­li­beral, já que havia no­meado Ma­cron como seu mi­nistro das Fi­nanças... Já Me­len­chon fez uma cam­panha com­ba­tiva, an­ti­li­beral, pela igual­dade so­cial e con­se­guiu um su­cesso sem pre­ce­dente, desde 1969, para uma força à es­querda da so­ci­al­de­mo­cracia. O pro­blema é seu per­so­na­lismo e seu na­ci­o­na­lismo francês”, ana­lisou.

Löwy, que possui vasta pro­dução in­te­lec­tual e bi­bli­o­grá­fica, aposta no cres­ci­mento da uni­dade entre so­ci­a­listas e anar­quistas como res­posta pro­gres­sista para a já lon­geva crise do ca­pi­ta­lismo ne­o­li­beral, algo bas­tante em voga nas lutas extra-ins­ti­tu­ci­o­nais que têm mar­cado di­versos países. Não à toa, acabou de lançar ao lado do velho par­ceiro Oli­vier Be­san­cenot Afi­ni­dades re­vo­lu­ci­o­ná­rias - nossas es­trelas ver­me­lhas e ne­gras – por uma so­li­da­ri­e­dade entre mar­xistas e li­ber­tá­rios.

“Se o fu­turo fosse pre­vi­sível, nunca ha­veria ver­da­deiras mu­danças... As­sis­timos a uma guerra de classes, uma ofen­siva vi­o­lenta, brutal e eco­cida do grande ca­pital fi­nan­ceiro glo­ba­li­zado, que toma formas va­ri­adas se­gundo os países e as con­jun­turas, com ten­dên­cias cada vez mais au­to­ri­tá­rias, como o de­mons­tram os exem­plos de Trump (EUA), Er­dogan (Tur­quia), Orban (Hun­gria), assim como a qua­drilha no poder atu­al­mente no Brasil”, re­sumiu.

A en­tre­vista com­pleta com Mi­chael Löwy pode ser lida a se­guir.

Cor­reio da Ci­da­dania: Como en­xergou os anos de Fran­çois Hol­lande à frente da pre­si­dência do país? O que houve de bom e ruim?
 
Mi­chael Löwy: O ba­lanço de Hol­lande é glo­bal­mente ne­ga­tivo. Houve al­gumas me­didas “cul­tu­rais” pro­gres­sistas no início, por exemplo, o di­reito de ca­sa­mento para ho­mos­se­xuais, mas muito ra­pi­da­mente se impôs uma linha ne­o­li­beral, de fa­vo­recer o ca­pital e contra os tra­ba­lha­dores, cul­mi­nando na “lei tra­balho”, to­tal­mente im­po­pular, que des­man­tela ve­lhas con­quistas do mo­vi­mento ope­rário. O re­sul­tado foi um ver­da­deiro sui­cídio po­lí­tico de Fran­çois Hol­lande, que nem teve a co­ragem de se re­a­pre­sentar como can­di­dato, e o de­clínio es­pe­ta­cular do Par­tido So­ci­a­lista (PS).

Cor­reio da Ci­da­dania: Quais se­riam as grandes di­fe­renças entre Ma­cron e Ma­rine Le Pen? Como se re­fle­ti­riam no man­dato pre­si­den­cial, em es­pe­cial pen­sando-se além da questão da imi­gração, que quase mo­no­po­liza os de­bates?
 
Mi­chael Löwy: Do ponto de vista econô­mico são bem pa­re­cidos, fa­vo­rá­veis aos pa­trões e ao ca­pi­ta­lismo. A di­fe­rença é que Ma­cron aposta no ca­pi­ta­lismo eu­ropeu e Le Pen num su­posto “ca­pi­ta­lismo na­ci­onal”. No questão do ra­cismo, sim, há uma grande di­fe­rença: Le Pen tem um pro­grama anti-imi­grantes, ra­cista, xe­no­fó­bico, is­la­mo­fó­bico, com tintas fas­cis­ti­zantes. Ma­cron é sim­ples­mente um bur­guês li­beral que não dá muita im­por­tância a estas ques­tões.

Cor­reio da Ci­da­dania: Hol­lande já de­clarou o voto no se­gundo turno em Ma­cron. Acre­dita que fez certo?
 
Mi­chael Löwy: Acho que a es­querda deve votar em Ma­cron, para barrar o ca­minho ao pro­grama se­mi­fas­cista de Ma­rine Le Pen. Mas sem ne­nhum apoio ao pro­grama de Ma­cron, que está a ser­viço do ca­pital fi­nan­ceiro. O caso de Hol­lande é di­fe­rente: ele se iden­ti­fica com este pro­grama ne­o­li­beral, já que havia no­meado Ma­cron como seu mi­nistro das Fi­nanças...

Cor­reio da Ci­da­dania: Mais à es­querda, o que achou da cam­panha e das men­sa­gens de Jean Luc-Me­len­chon? Acre­dita que fica plan­tado algo para o fu­turo?

Mi­chael Löwy: Me­len­chon fez uma cam­panha com­ba­tiva, an­ti­li­beral, pela igual­dade so­cial e con­se­guiu um su­cesso sem pre­ce­dente, desde 1969, para uma força à es­querda da so­ci­al­de­mo­cracia. O pro­blema é seu per­so­na­lismo e seu na­ci­o­na­lismo francês. O que vai dar no fu­turo ve­remos nos pró­ximos meses, já na cam­panha das elei­ções par­la­men­tares.

Ve­remos se ele vai aceitar uma ar­ti­cu­lação com o pes­soal da Frente de Es­querda, que o apoiou nesta eleição, ou se vai querer impor sua es­tru­tura pes­soal, a França In­sub­missa (450 mil ade­rentes) como único quadro pos­sível, o que pode levar a uma séria di­visão de forças.

Cor­reio da Ci­da­dania: Como en­xerga, glo­bal­mente, a as­censão da ex­trema-di­reita?
 
Mi­chael Löwy: O fenô­meno é eu­ropeu e tem se de­sen­vol­vido par­ti­cu­lar­mente nos países ricos, que menos so­freram da crise: Áus­tria, Por­tugal, Ho­landa etc. No caso francês, tem muito a ver com o pas­sado do país: o epi­sódio fas­cista do re­gime de Vichy (Pe­tain) e as atrozes guerras co­lo­niais da França, em par­ti­cular na Ar­gélia. Este se­di­mento fas­cista/co­lo­ni­a­lista ali­menta a nova vaga de xe­no­fobia e ra­cismo contra os imi­grantes, os ci­ganos, os mu­çul­manos. A fa­mília Le Pen, com al­gumas con­tra­di­ções in­ternas, re­pre­senta esta nova va­ri­ante de uma velha ten­dência da po­lí­tica fran­cesa.

Cor­reio da Ci­da­dania: Em re­lação à Eu­ropa, como re­sume o atual mo­mento po­lí­tico e econô­mico do con­ti­nente?
    
Mi­chael Löwy: Um pe­ríodo de crise econô­mica, es­tag­nação, de­sem­prego, agra­vados pelas po­lí­ticas "aus­te­ri­cidas" dos go­vernos ne­o­li­be­rais e pela po­lí­tica econô­mica ao ser­viço do ca­pital fi­nan­ceiro pro­mo­vida pela União Eu­ro­peia. Isto pro­voca de­sen­canto, raiva e per­ple­xi­dade, sen­ti­mentos que são, em muitos países do con­ti­nente, ma­ni­pu­lados pela ex­trema-di­reita ra­cista e xe­no­fó­bica (em al­guns casos pro­pri­a­mente fas­cista). Mas existe também uma re­sis­tência de es­querda ao ne­o­li­be­ra­lismo, que tem mais peso nos países pe­ri­fé­ricos do con­ti­nente: Grécia, Es­panha, Por­tugal.
  
As atuais elei­ções na França aca­baram re­sul­tando num duelo, no se­gundo turno, entre a ex­trema di­reita (Ma­rine Le Pen) e o "ex­tremo-centro" (Ma­cron), que será muito pro­va­vel­mente ven­cido pelo se­gundo, porta-voz di­reto do ne­o­li­be­ra­lismo "mo­derno". O can­di­dato da es­querda anti-ne­o­li­beral, Jean-Louis Me­lan­chon, con­se­guiu 19,3%, en­quanto que o do Par­tido So­ci­a­lista, Be­noit Hamon, não passou de 6,3%. Como disse, é a pri­meira vez, desde 1969, que uma força à es­querda da so­ci­al­de­mo­cracia con­segue se impor contra esta úl­tima.
  
Por fim, o can­di­dato an­ti­ca­pi­ta­lista, o ope­rário da fá­brica Ford Phi­lippe Poutou, fez uma bela cam­panha, e suas in­ter­ven­ções contra Ma­rine Le Pen ti­veram grande su­cesso, mas em termos de votos não con­se­guiu mais de 1,2%...

Cor­reio da Ci­da­dania: Você par­ti­cipou de um ciclo de de­bates com An­tonio Negri, ci­en­tista po­lí­tico ita­liano que, dentre ou­tras teses, de­fende que a partir das eclo­sões po­pu­lares de 2011, como o Oc­cupy Wll Street, os in­dig­nados es­pa­nhóis e a pri­ma­vera árabe, com todos os seus per­calços, inau­gu­raram pro­cessos “des­ti­tuintes” em re­lação à classe po­lí­tica e o sis­tema de re­pre­sen­tação es­ta­be­le­cido. Como ana­lisa essa ava­li­ação de Negri e en­xerga o Brasil em meio a tais ventos?
    
Mi­chael Löwy: Tenho muita ad­mi­ração por Toni Negri como pen­sador e mi­li­tante, que luta por um fu­turo co­mu­nista. Estou de acordo com esta aná­lise da di­nâ­mica "des­ti­tuinte" destes mo­vi­mentos so­ciais na Eu­ropa e no Ori­ente Médio. Havia nestes le­vantes uma di­mensão de re­volta contra o ne­o­li­be­ra­lismo. As grandes ma­ni­fes­ta­ções de 2016 no Brasil têm outro ca­ráter, aca­baram sendo ma­ni­pu­lados pela Globo e por ou­tras forças re­a­ci­o­ná­rias, em nome do com­bate à cor­rupção.

Cor­reio da Ci­da­dania: Como o livro recém-lan­çado por você e Oli­vier Be­san­cenot, que trata da uni­dade entre se­tores co­mu­nistas e anar­quistas, pode con­tri­buir com o atual mo­mento de de­sen­canto da po­lí­tica?
 
Mi­chael Löwy: Não é um livro que vai mudar a con­jun­tura... Mais mo­des­ta­mente, que­remos com este livro con­tri­buir para o diá­logo entre re­vo­lu­ci­o­ná­rios mar­xistas e li­ber­tá­rios, que são duas forças muito pre­sentes na ju­ven­tude, nas lutas e nos mo­vi­mentos "des­ti­tuintes".

Cor­reio da Ci­da­dania: E como o livro con­tribui para os se­tores mais mi­li­tantes his­to­ri­ca­mente?
 
Mi­chael Löwy: Ten­tamos mos­trar aos nossos ca­ma­radas mar­xistas e anar­quistas que na his­tória do mo­vi­mento ope­rário estas duas forças muitas vezes es­ti­veram ali­adas, as­so­ci­adas num com­bate comum, desde a Co­muna de Paris (1871) até a re­volta za­pa­tista de Chi­apas, pas­sando pela Re­vo­lução Es­pa­nhola (1936). Acre­di­tamos que temos muito a aprender uns com os ou­tros, e apos­tamos num "mar­xismo li­ber­tário" que se ins­pire em pro­postas e ex­pe­ri­ên­cias das duas cor­rentes.

Cor­reio da Ci­da­dania: A afi­ni­dade entre mar­xistas e li­ber­tá­rios é viável até que ponto, con­si­de­rando o con­texto bra­si­leiro em que se­tores lu­listas e uma es­querda que tem re­púdio ao lu­lo­pe­tismo se ma­ni­festam nos mesmos es­paços nesse mo­mento de forte ofen­siva ca­pi­ta­lista?

Mi­chael Löwy: Nosso livro se di­rige aos re­vo­lu­ci­o­ná­rios, sejam mar­xistas ou li­ber­tá­rios, no sen­tido de buscar um diá­logo e con­ver­gên­cias na ação. Não penso que haja di­fi­cul­dade em se oporem todos juntos à qua­drilha Temer e sua po­lí­tica ul­trar­re­a­ci­o­nária, quais­quer sejam as opi­niões de uns e ou­tros sobre o PT (sem dú­vida crí­ticas, senão não se tra­ta­riam de re­vo­lu­ci­o­ná­rios).

Cor­reio da Ci­da­dania: O que você co­menta do con­texto po­lí­tico bra­si­leiro, em es­pe­cial o im­pe­a­ch­ment de Dilma e a as­censão de seu vice-pre­si­dente Mi­chael Temer, ora sob forte re­pro­vação?
 
Mi­chael Löwy: E mais um epi­sódio da série de golpes pseu­do­par­la­men­tares, de­pois de Hon­duras e Pa­ra­guai. São as oli­gar­quias mais re­a­ci­o­ná­rias que, pas­sando com um trator em cima da de­mo­cracia, im­põem um go­verno não eleito e ile­gí­timo. No caso do Brasil, se re­pete a tra­gédia como farsa (como dizia Hegel): a tra­gédia foi o golpe mi­litar de 1964, se­guido de 20 anos de di­ta­dura; a farsa é o atual golpe "par­la­mentar" contra Dilma, em que uma qua­drilha de par­la­men­tares cor­ruptos afastou a pre­si­dente eleita, sob pre­texto de "pe­da­ladas fis­cais".

Cor­reio da Ci­da­dania: Não pensa que a re­tó­rica do golpe é in­su­fi­ci­ente, di­ante de fa­tores como a inação de Dilma no se­gundo man­dato, os crimes de fato co­me­tidos por di­ri­gentes e pre­postos do PT e, talvez mais for­te­mente, a ma­nu­tenção da ali­ança com o PMDB, dentre ou­tros, em mi­lhares de ci­dades bra­si­leiras nas elei­ções mu­ni­ci­pais?
 
Mi­chael Löwy: A po­lí­tica de Dilma no go­verno foi al­ta­mente de­cep­ci­o­nante, fa­zendo inú­meras con­ces­sões ao ca­pital fi­nan­ceiro, aos la­ti­fun­diá­rios, à oli­gar­quia. Mas as classes do­mi­nantes no Brasil já não que­riam mais "con­ces­sões", que­riam go­vernar di­re­ta­mente, através de seus paus man­dados. De­nun­ciar o golpe não é em nada con­tra­di­tório com uma crí­tica im­pla­cável à cor­rupção de fi­guras do PT, aos com­pro­missos po­dres com os fi­si­o­ló­gicos do PMDB etc.

Cor­reio da Ci­da­dania: Fa­lando em elei­ções mu­ni­ci­pais, como en­xerga o fato de al­gumas pes­quisas terem apon­tado que o au­mento do ab­sen­teísmo se lo­ca­liza mais à es­querda do es­pectro po­lí­tico?
 
Mi­chael Löwy: Sem dú­vida havia uma grande de­cepção das bases elei­to­rais do PT, que se abs­ti­veram. Mas não po­demos su­bes­timar a força da ide­o­logia ne­o­li­beral do­mi­nante, re­pre­sen­tado pelo tal Doria em São Paulo. Mas houve as­pectos po­si­tivos, com o re­la­tivo su­cesso da cam­panha de Freixo, o can­di­dato do PSOL no Rio de Ja­neiro, que con­se­guiu ocupar o es­paço na es­querda aban­do­nado pelo PT.

Cor­reio da Ci­da­dania: Como a te­o­logia da pros­pe­ri­dade e as igrejas ne­o­pen­te­cos­tais in­fluem na cul­tura po­lí­tica bra­si­leira? Têm pro­jetos de poder de­fi­nidos e ex­pli­ca­riam, ao menos em partes, o de­clínio da es­querda?
 
Mi­chael Löwy: Bem ao con­trário. O aban­dono das bases pelo PT e pelos sin­di­catos, além da cam­panha da Igreja, du­rante anos, contra a te­o­logia da li­ber­tação, cri­aram um vazio no campo so­cial e re­li­gioso, que acabou sendo pre­en­chido, em parte, pelos ne­o­pen­te­cos­tais, cujo papel ne­fasto é bem evi­dente.

Cor­reio da Ci­da­dania: O que acon­teceu com a noção de es­querda, mun­di­al­mente? O que há de ser feito no sen­tido de re­cons­truir lutas e re­sis­tên­cias, como de­fine o ci­en­tista po­lí­tico Giu­seppe Cocco, face aos atuais im­passes e con­tra­di­ções do que his­to­ri­ca­mente se en­tendeu por es­querda?

Mi­chael Löwy: Existe, em es­cala mun­dial, uma re­sis­tência po­lí­tica de es­querda ao ne­o­li­be­ra­lismo, à brutal de­si­gual­dade so­cial e aos pro­gramas de "aus­te­ri­dade" pro­mo­vidos pelo ca­pital fi­nan­ceiro. Isto toma formas di­fe­rentes se­gundo os países: Sy­riza na Grécia, Po­demos na Es­panha, Je­remy Corbyn na In­gla­terra, Bernie San­ders nos Es­tados Unidos, Jean-Luc Me­len­chon na França etc. Cada um destes par­tidos ou di­ri­gentes tem seus pro­blemas e con­tra­di­ções, mas re­pre­sentam um pri­meiro passo na longa marcha an­tis­sis­tê­mica.

Cor­reio da Ci­da­dania: Quais as pers­pec­tivas glo­bais para 2017 e o fu­turo pró­ximo?
 
Mi­chael Löwy: Se o fu­turo fosse pre­vi­sível, nunca ha­veria ver­da­deiras mu­danças... As­sis­timos a uma guerra de classes, uma ofen­siva vi­o­lenta, brutal e eco­cida do grande ca­pital fi­nan­ceiro glo­ba­li­zado, que toma formas va­ri­adas se­gundo os países e as con­jun­turas, com ten­dên­cias cada vez mais au­to­ri­tá­rias, como o de­mons­tram os exem­plos de Trump (EUA), Er­dogan (Tur­quia), Orban (Hun­gria), assim como a qua­drilha no poder atu­al­mente no Brasil.

Mas existe também re­sis­tência, que se ma­ni­festa em mo­vi­mentos so­ciais, em le­vantes de "In­dig­nados", em lutas de mu­lheres, de tra­ba­lha­dores do campo e da ci­dade, de sem-teto, de in­dí­genas, de es­tu­dantes, assim como ten­ta­tivas de dar uma ex­pressão po­lí­tica anti-ne­o­li­beral e, para os mais cons­ci­entes, an­ti­ca­pi­ta­lista a esta re­sis­tência.
    
Esta ba­talha não vai se de­cidir em 2017, é uma guerra pro­lon­gada...
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Reportagem por Ga­briel Brito é jor­na­lista e editor do Cor­reio da Ci­da­dania.
Fonte:  http://correiocidadania.com.br/34-artigos/manchete/12508-assistimos-uma-ofensiva-brutal-e-ecocida-do-capital-financeiro-com-tendencias-cada-vez-mais-autoritarias 26/04/2017