quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

O caminho para o fascismo

 Joseph E. Stiglitz*

A economia tem sido chamada a ciência lúgubre e 2023 justificará essa alcunha. Estamos à mercê de dois cataclismos que estão simplesmente fora do nosso controlo. A primeira é a pandemia de covid-19, que continua a ameaçar-nos com variantes novas, mais mortais, contagiosas ou resistentes a vacinas. A pandemia foi gerida especialmente mal pela China, principalmente devido ao fracasso em inocular os seus cidadãos com vacinas de mRNA mais eficazes (de fabrico ocidental).

O segundo cataclismo é a guerra de agressão da Rússia na Ucrânia. O conflito não mostra fim à vista e pode aumentar ou produzir efeitos de propagação ainda maiores. De qualquer forma, mais perturbações nos preços da energia e dos alimentos estão quase garantidas. E, como se esses problemas não fossem suficientemente irritantes, há muitos motivos para temer que a resposta dos decisores políticos piore ainda mais uma situação já de si má.

Mais importante ainda, a Reserva Federal dos EUA pode aumentar demasiado as taxas de juro e demasiadamente rápido. A inflação de hoje é, em grande parte, impulsionada pela escassez de oferta que, em parte, já está em processo de resolução. Portanto, aumentar as taxas de juro pode ser contraproducente. Não produzirá mais alimentos, petróleo ou gás, mas dificultará a mobilização de investimentos que ajudariam a aliviar a escassez da oferta.

A restrição monetária também pode levar a uma desaceleração global. Na verdade, esse resultado é altamente antecipado e alguns comentadores, tendo-se convencido de que o combate à inflação requer dor económica, têm efetivamente aplaudido a recessão. Quanto mais rápida e profunda, melhor, argumentam. Parecem não ter considerado que a cura pode ser pior do que a doença.

Os tremores globais do aperto da Reserva Federal já poderão ser sentidos no inverno. Os Estados Unidos estão envolvidos numa política protecionista do género "salve-se quem puder" do século XXI. Enquanto um dólar mais forte modera a inflação nos EUA, fá-lo enfraquecendo outras moedas e aumentando a inflação noutros lugares. Para mitigar esses efeitos cambiais, mesmo os países com economias fracas estão a ser forçados a aumentar as taxas de juro, o que enfraquece ainda mais as suas economias. Taxas de juro mais altas, moedas desvalorizadas e uma desaceleração global já levaram dezenas de países à beira da falência.

"Os Estados Unidos estão envolvidos numa política protecionista do género "salve-se quem puder" do século XXI."

Taxas de juro e preços de energia mais altos também levarão muitas empresas à falência. Já houve alguns exemplos dramáticos disso, como no caso da agora nacionalizada empresa de serviços públicos alemã Uniper. Mesmo que as empresas não procurem proteção contra a falência, tanto as empresas como as famílias sentirão o stresse de condições financeiras e de crédito mais rígidas. Não é surpreendente que 14 anos de taxas de juros ultrabaixas tenham deixado muitos países, empresas e famílias sobre-endividadas.

As mudanças maciças nas taxas de juro e nas taxas de câmbio do ano passado implicam múltiplos riscos ocultos, como demonstrado pelo quase colapso dos fundos de pensão britânicos no final de setembro e início de outubro. Desencontros de maturidades e taxas de câmbio são uma marca registada de economias pouco reguladas e tornaram-se ainda mais prevalentes com o crescimento de derivados não-transparentes.

Essas dificuldades económicas recairão, é claro, mais fortemente sobre os países mais vulneráveis, fornecendo um terreno ainda mais fértil para os demagogos populistas semearem as sementes do ressentimento e do descontentamento. Houve um suspiro global de alívio quando Luiz Inácio Lula da Silva derrotou Jair Bolsonaro nas eleições presidenciais do Brasil, mas não esqueçamos que Bolsonaro obteve quase 50% dos votos e ainda controla o Congresso brasileiro.

Atualmente, em todas as dimensões, incluindo a economia, a maior ameaça ao bem-estar é política. Mais da metade da população mundial vive sob regimes autoritários. Mesmo nos EUA, um dos dois principais partidos tornou-se um culto à personalidade que rejeita cada vez mais a democracia e continua a mentir sobre o resultado das eleições de 2020. O seu modus operandi é atacar a imprensa, a ciência e as instituições de Ensino Superior, enquanto injeta o máximo possível de desinformação na sociedade.

O objetivo, aparentemente, é reverter muito do progresso dos últimos 250 anos. Foi-se o otimismo que reinava no fim da Guerra Fria, quando Francis Fukuyama podia anunciar "o fim da história", com o que queria dizer o desaparecimento de qualquer desafiante sério ao modelo democrático liberal.

Certamente, ainda existe uma agenda positiva que pode evitar uma queda no atavismo e no desespero, mas, em muitos países, a polarização política e o impasse colocaram essa agenda fora de alcance. Com sistemas políticos que funcionassem melhor, poderíamos ter agido muito mais rapidamente para aumentar a produção e a oferta, mitigando as pressões inflacionárias que as nossas economias agora enfrentam. Depois de meio século a dizer aos agricultores para não produzirem o máximo que pudessem, tanto a Europa como os Estados Unidos lhes poderiam ter dito para produzirem mais. Os EUA poderiam ter provido creches para que mais mulheres pudessem entrar na força de trabalho, aliviando a alegada escassez de mão-de-obra, e a Europa poderia ter agido mais rapidamente para reformar os seus mercados de energia e evitar um aumento nos preços da eletricidade.

Países em todo o mundo poderiam ter cobrado impostos sobre lucros inesperados de formas que realmente encorajassem o investimento e moderassem os preços, usando os recursos para proteger os vulneráveis e fazer investimentos públicos na resiliência económica. Como comunidade internacional, poderíamos ter adotado a renúncia à propriedade intelectual da covid-19, reduzindo assim a magnitude do apartheid da vacina e o ressentimento que ele alimenta, além de mitigar o risco de novas mutações perigosas.

No geral, um otimista diria que o nosso copo está cerca de um oitavo cheio. Alguns poucos países fizeram algum progresso nessa agenda, e devemos estar gratos por isso, mas quase 80 anos depois de Friedrich von Hayek ter escrito O Caminho da Servidão, ainda vivemos com o legado das políticas extremistas que ele e Milton Friedman popularizaram. Essas ideias puseram-nos num caminho verdadeiramente perigoso: o caminho para uma versão do fascismo do século XXI.

*Joseph E. Stiglitz, Prémio Nobel da Economia, é professor universitário na Universidade de Columbia e membro da Comissão Independente para a Reforma da Tributação Internacional das Empresas.
© Project Syndicate, 2022.

Fonte:  https://www.dn.pt/opiniao/o-caminho-para-o-fascismo-15564221.html

Comando do Exército é contra golpe, mas sentimento anti-Lula predomina na Aeronáutica e Marinha

 Por


Em entrevista ao GGN, o especialista Francisco Teixeira explica como os militares de quadros médios foram contaminados pelo "morismo"

 

A grande maioria dos membros do alto comando do Exército tem compromisso com a democracia e não embarcaria numa aventura golpista, mesmo que inflamada pelos protestos de bolsonaristas inconformados com a vitória eleitoral de Lula.

Já entre oficiais de quadros médios, sobretudo na Aeronáutica e Marinha, predomina o sentimento anti-Lula e o antipetismo, levanto à situação de “fragmentação nas Forças Armadas” que o País assiste atualmente.

Sinal dos tempos é que, antes mesmo de Lula tomar posse em 1º de janeiro de 2023, haverá troca no comando do Exército. O governo de transição também negociou antecipar a mudança do comando da Marinha, mas houve resistência.

A avaliação de que os militares estão divididos é de Francisco Carlos Teixeira da Silva, pós-doutor em História e Política Social, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro e da Universidade Federal de Juiz de Fora, autor do livro “Dicionário de História Militar do Brasil, 1822-2022”, entre outros títulos.

Na noite de terça-feira (27), ao lado do ex-ministro da Justiça Eugênio Aragão, Teixeira participou do programa TV GGN 20 Horas [assista abaixo], apresentado por Luis Nassif, para falar da relação dos militares com os acampamentos bolsonaristas, sobretudo o situado em frente ao QG do Exército, em Brasilia. De lá, saíram figuras acusadas de atos terroristas às vésperas da posse de Lula.

Segundo Teixeira, as Força Armadas estão “fragmentadas”, mas o alto comando do Exército é majoritariamente contra uma ruptura democrática. O que ocorre, porém, é que quadros médios da corporação – capitão, major, tenentes, etc – estão sob a influência do “morismo” – ou antipetismo – forjado nos idos pela Lava Jato.

“Há uma situação confusa. Uma grande maioria tem má vontade muito grande com a vitória do Lula, que é derivada do tempo de aproximação dos militares com Sergio Moro.”

Ex-ministro da Justiça e figura celebrada pela grande mídia, “Moro esteve praticamente em todos os comandos militares, em todas as solenidades, ganhou todas as comendas possíveis. Esse morismo dentro das Forças Armadas – que, de certa forma, lembra muito a tentativa de Carlos Lacerda de se aproximar dos militares – deu frutos, principalmente entre quadros médios (capitão, major, tenente-coronel, etc)”, explicou o professor.

Segundo ele, “hoje – dos 14 membros efetivos do alto comando do Exército, mais dois que estão lá, totalizando 16 – há uma maioria total, muito forte, contra os acampamentos e contra qualquer coisa que represente o rompimento da ordem, uma negação de qualquer aventura nesse sentido. O que não é igual nesses quadros médios.”

“Inclusive, alguns generais importantes, comandantes de regiões militares, apareceram sendo chamados de ‘melancia’, pois estavam disponíveis para deter ameaças. Então há fragmentação, sim, das Forças Armadas. Há predominância de pensamento anti-Lula, antipetista. Particularmente, na Aeronáutica é mais forte do que nas outras forças.”

Teixeira explica que a natureza do alistamento social de cada força guarda relação com a ideologia dos militares. “O Exército é muito mais popular, tem base em classe média e classe média-baixa, coisa que a Marinha e a Aeronáutica não têm. [Seus oficiais são de] camadas mais superiores da sociedade”, resumiu.

Assista a entrevista completa aqui: https://www.youtube.com/watch?v=KUC0wngEqNU&t=6s

Fonte:  https://jornalggn.com.br/noticia/exercito-e-contra-ruptura-mas-sentimento-anti-lula-predomina-na-aeronautica/ 

Quioto, finalmente!

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Japão, rosas, origami, Teresa Vasconcelos 

Rosas em origami: “Coisa mais linda!”. foto © Teresa Vasconcelos

Há também alegria
na solidão
Crepúsculo de outono
(Buson, O Crisântemo branco: Antologia de Haiku.
Ed. Pedra Formosa, 1995)

Não posso deixar de sugerir o haiku japonês em epígrafe. Sabemos que o haiku remonta à forma clássica da poesia japonesa; é um poema curto, em geral de 17 sílabas. A tradição consistia em que vários poetas se reuniam e compunham poemas em conjunto. Muito belo, muito ao jeito de uma das características culturais japonesas, a vida de grupo. E estivemos no Japão em pleno outono.

Vou descrever a Quioto dos magníficos templos, das tradições e modernidade. Mas não resisto a contar a história destas duas rosas em origami. Um pouco amachucadas por causa da longa viagem, elas repousam na minha estante junto a outros objetos de estimação. Foi no comboio de alta velocidade (“bala”, como dizem os brasileiros) que nos levou de Tóquio a Quioto que, já quase à chegada, deparei com uma senhora de certa idade, muito calma e em modo concentrado, a fazer origami.

Estávamos já no corredor de saída. Comentei para o colega que estava atrás de mim: “Coisa mais linda!”. A senhora, pelo tom da minha voz, deve ter percebido que estava a falar sobre ela (a concentração faz isto, mesmo falando línguas tão opostas…) e, de um gesto, retirou de um saquinho de plástico estas duas rosas e ofereceu-mas. “Arigatô” (obrigada), só tive tempo de balbuciar com uma vénia porque as mãos estavam ocupadas com a mala…  e as rosas, e descemos do comboio. Sem pretender descrever todo o simbolismo deste gesto, ele foi um exemplo da delicadeza japonesa – pelo menos entre os mais velhos.

Esta pequena dádiva foi, para mim, um haiku.

Quioto – 1,475 milhões de habitantes – é a antiga capital do Japão, a cidade das dezenas de templos budistas ou xintoístas, dos palácios imperiais, das muitas lojas de artigos de devoção ao redor dos templos e de abundante comércio turístico, ao jeito dos nossos santuários. Muito verde no meio das avenidas modernas e cheias de movimento. A nós juntou-se então a professora Mari Mori, da Universidade de Kobe, que nos acompanhou ao longo dos dias seguintes. Erguendo-se do verde, os pináculos e silhuetas dos templos.

O magnífico Templo do Pavilhão Dourado (Templo Kinkaku) é património mundial declarado pela UNESCO. Trata-se de um templo budista do século XIV, com influência zen e com alguns elementos xintoístas.

Japão, Quioto, Templo Dourado

Templo Dourado de Quioto, Japão. Foto © Teresa Vasconcelos

Refletindo-se no lago o magnífico templo é precedido pelo pavilhão imperial também dourado. Rodeado de jardins e estátuas, o templo do “pavilhão dourado” está junto a um lago também rodeado de floresta e é literalmente um hino à vida e à profundidade espiritual do budismo zen. Em 1950, transformou-se num templo zen de orientação Rinzai. A escola Rinzai é uma das três escolas zen budistas no Japão. Foi introduzida pelo monge Eisai em 1191. Adotada inicialmente pela classe dos samurais, acentuava a disciplina monástica e a prática de koans (o koan tem, como objetivo, propiciar a iluminação espiritual do praticante de budismo zen). A escola está ainda associada ao refinamento das artes tradicionais japonesas como a caligrafia e a cerimónia do chá – de acordo com os elementos referidos na Wikipédia. A estrutura atual data de 1955.

Em oposição à paz do Templo Dourado visitámos o grande santuário xintoísta de Fushimi Inari-taisha (as suas origens remontam ao ano 1000) – património mundial, tal como o anterior –, dedicado aos deuses ligados à agricultura: o deus do arroz e o deus do saquê (a aguardente de arroz). Nos jardins em redor vimos muitas estátuas de raposas que são consideradas as mensageiras dos deuses.

Há muitas lojas com objetos de devoção, que não aprecio grandemente porque me fazem lembrar outras paragens. Mas o magnífico templo é em cor de laranja e é sublime o acesso com pórticos sucessivos em colunas laranja, fazendo um percurso ascendente e outro descendente. As colunas estavam repletas de inscrições em caracteres japoneses. Pensei com alguma esperança que fossem frases indutoras de um aprofundamento espiritual, mas ao fazer a descida do percurso perguntei e fui informada de que se tratava dos nomes de quem tinha contribuído para o restauro do templo e daquele túnel lindíssimo de colunatas. Enfim, também encontramos o mesmo por essa Europa fora…

Apesar das inúmeras lojas vendendo incenso, pagelas, papelinhos para deixar com pedidos ou intenções para afastar os maus espíritos, e apesar da multidão de turistas e de muitos devotos, o caminho de subida até ao templo é este fascinante conjunto de toriis  (pórtico tradicional japonês) que lembra os tradicionais portões de entrada nos templos: mas, aqui, são nada mais nada menos que cinco mil pilares!

Quioto, Santuário Fushimi
O Santuário de Fushimi, em Quioto, que remonta ao ano 1000, é dedicado aos deuses ligados à agricultura. 
Foto © Teresa Vasconcelos

 

Subi em silêncio (como que num únel), afastando-me dos meus companheiros. Depois desci, também em silêncio. Diria que esta foi uma experiência muito pessoal de busca de sentido para os três anos difíceis que antecederam o dom inesperado que tem sido esta viagem. E também a constatação de que, no meio de muito barulho e mesmo ruído, posso criar um silêncio dentro de mim e é nesse silêncio (para alguns, orante) que consigo centrar-me no essencial, ligando-me à teia de fios de vida que por vezes me enreda, outras me liberta.

Um templo em cada esquina: mágico e abundante. Foto © Teresa Vasconcelos.

No centro de Quioto antigo, por onde deambulámos, em cada esquina deparávamos com um templo ou um palácio. Mágico e abundante. A certa altura perdi-me do grupo: a multidão de turistas impedia-me de ver os meus colegas que eram os meus pontos de referência. Quis sentar-me e parar um bocadinho e tinha a indicação de um ponto de encontro à descida. Depois subi por outro lado. Nada. Voltei a sentar-me e calmamente disse a mim própria: “Tens o cartão com o nome do hotel. Se começar a escurecer apanhas um táxi e pronto. Para já estás presente ao que te rodeia…”.

Verifiquei como, “viajante empedernida” que sou, o manuseio do inglês e do francês me tem sempre ajudado. Mas aqui não: os caracteres japoneses na rua não me davam qualquer ponto de referência. Herméticos. Fui ficando. Raramente nestes locais encontramos um japonês que fale inglês. A certa altura, de dois lados opostos surgiram os meus companheiros de viagem: “Está ali!” e acenavam aliviados e surpresos com a minha calma. Expliquei-lhes o plano que “esta cabeça criminosa” já tinha elaborado, continuando assim a usufruir do instante. Estava em Quioto, a cidade dos templos, da transcendência. Todo e qualquer silêncio me sabia tão bem, mesmo sem saber o que vinha a seguir. Mas também me soube muito bem que o meu grupo bem português me tivesse encontrado.

Interessantes os pequenos oratórios espalhados pelas ruas onde figura uma pequena estátua, se colocam flores frescas e se reza aos deuses a pedir que não haja incêndios, uma vez que eles são frequentes em edifícios todos em madeira. Pelo que pude entender, os moradores de uma determinada rua revezam-se na responsabilidade de cuidar deste oratório/templo doméstico comum.

Em Quioto visitámos a Oikuen Ashita Nursery School que fora restaurada recentemente pelo arquiteto Tezuca e se estendia um pouco acima da colina onde estava um antigo templo budista. Fomos acolhidos pelo monge responsável e pelo diretor, que nos explicaram tratar-se de uma instituição de solidariedade social ligada ao templo. Impregnado da filosofia budista da veneração pela natureza e do que podemos usufruir dela, o espaço era calmo, muito simples. Ambiente repousante e tudo muito belo. O edifício, luminoso, ao jeito de Tezuca, tinha as portas das salas deslizantes, corredores protegidos e leves com modalidades engenhosas para permitir o reaproveitamento da água da chuva…

Adultos contidos e atentos e as crianças espontâneas, calmas, felizes. No início da refeição as crianças já sentadas – mesmo as mais pequeninas – baixam a cabeça e juntam as mãos. Não há palavras, mas elas sabem do que se trata: agradece-se a vida, os alimentos, o belo e o bom… Esquecemo-nos disso, aqui pelo Ocidente. Mesmo de entrar no silêncio. Senti-me elevada pelas crianças naquele momento.

Ao subir a longa escadaria até à creche e jardim de infância, podíamos ver, entre as casas, quase sem espaço a dividir, a silhueta do cemitério budista e suas campas, algumas floridas. Quando viajámos para fora de Tóquio, de comboio, perto dos aglomerados de casas ou prédios, viam-se os cemitérios lado a lado com os apartamentos. Em geral os corpos são cremados, pelo que as campas não têm grande extensão. As cinzas são apenas guardadas para manter a memória vida daqueles que morreram. No budismo, a morte é simplesmente o final do ciclo na terra, quando termina a missão de cada um: “Quando nascemos já nascemos com a morte, vivemos tendo consciência dela”. A morte faz parte da vida. Por isso os mortos coabitam ao lado dos vivos.

Cemitério budista. Foto © Teresa Vasconcelos

De Quioto a Kobe

O comboio de alta velocidade deixou-nos em Kobe. Trata-se de outra enorme cidade a trepar pela montanha acima (monte Rokkô) com vista para a baía de Osaka.

Subindo no teleférico do monte Rokko vê-se a extensão da cidade até ao mar. No cimo do monte existem umas termas de águas sulfurosas: terra vulcânica, bem o sabemos! À descida os maravilhosos jardins – “Herb Gardens” –, um ex-libris da cidade: flores, hortas de legumes, ervas aromáticas, numa espécie de escadaria até ao sopé do monte. Lembrei-me dos “jardins suspensos da Babilónia” ou do nosso Douro vinhateiro, mas com o mar ao fundo.

O escritor japonês Junichirô Tanizaqui (1886-1965), no livro Elogio da Sombra, (1933), fala-nos na luz “que há na sombra”, evitando tudo aquilo que brilha (bem ao contrário dos vizinhos chineses) e nomeia a palavra kairakuen para “um parque para ser gozado em companhia” (p. 12). Foi isso que os mais lestos puderam fazer enquanto dois ou três de nós tivemos de regressar no teleférico: do alto contemplávamos os patamares e os degraus organizados ao milímetro, repletos de plantas, ervas e flores.

Assim usufruímos de um magnífico kairakuen, ainda que a partir de diferentes perspetivas. E lá em cima, como gostei de estar sentada sozinha numa mesa a beber chá verde (num prosaico copo de papel que guardei na mochila) fitando a baía de Osaka ao longe. Penso que talvez os meus efusivos companheiros de viagem ficassem levemente surpreendidos com a necessidade de silêncio e alguma solidão desta companheira de viagem, mas eu tinha de digerir tanta beleza em silêncio, com o olhar bem longe, louvando a Deus pela criação.

Os “Herb Gardens” ex-libris da cidade. Foto © Teresa Vasconcelos.

Uma parte da cidade antiga de Kobe foi destruída pelo tremor de terra de 1995. Milhares de pessoas ficaram sem as suas casas, sobretudo as que viviam na zona antiga da cidade, onde as casas são em madeira. É notável a resiliência deste povo que vive – literalmente! – em cima de vulcões. Tudo recomeça a seguir. Tudo e todos se “levantam” novamente. Fazem-se filas para continuar a vida ordeiramente, ainda que as pessoas possam ter de ficar alojadas temporariamente em pavilhões que resistiram ao sismo ou mesmo em tendas. Sem lágrimas ou autocomiseração. Uma imensa dignidade. Coerentes com a mentalidade budista: “quando nascemos já nascemos com [o perigo, a insegurança], vivemos tendo consciência de[les]” (adaptado).

Ainda conseguimos visitar o Taisan-ji, um dos templos xintoístas mais antigos, este bem no centro da cidade. Aí adoram-se os deuses, fazem-se ofertas, espera-se a sua proteção para as intempéries da vida. E confia-se no que vier. Sublinho novamente: não há ponta de autocomiseração, antes uma enorme dignidade. Não há queixas, tão vulgares entre nós. Nem gemidos. Passe-se as variadas e antigas práticas religiosas (lá como cá…) – que se mantêm apesar da “invasão” da tecnologia mais sofisticada –, senti  o valor da fidelidade ao grupo a que se pertence, na certeza de que, visceralmente, precisamos uns dos outros para viver (ou sobreviver). A propósito sublinho aqui o grande amor, respeito e gratidão que merecem os mais velhos. São cuidados pelas famílias e trabalham enquanto podem. Mesmo doentes e dependentes a sua missão não terminou. É apenas diferente… um outro modo de ver. Tive bem consciência do que poderia aprender com tudo isto.

Digo-vos que muitos do oriente e do ocidente
virão reclinar-se à mesa,
com Abrão, Isaac e Jacob, no reino dos Céus (…)
(Evangelho segundo Mateus 8, 11, leitura de 28 de novembro de 2022, versão de Frederico Lourenço)

Gosto deste convite: reclinarmo-nos à mesa. É importante deter-me na comida japonesa. Não falei ainda dela, para não me mostrar demasiadamente gourmet, coisa que sou. Mas a comida japonesa é, como todos sabemos, um hino à beleza, à saudável frugalidade, repleta de interessantes rituais: o silêncio, a lentidão, as cores e formas, a atenção focalizada que leva a saborear os alimentos devagar, apenas no presente, bem como o cuidado na organização dos mesmos e sua decoração. Todos os sentidos se envolvem neste saborear que é também uma experiência com/para uma dimensão espiritual, contemplativa – pelo menos para mim. Movimentos leves por parte de quem nos serve. Come-se não para nos empanturrarmos mas sim porque precisamos de comer para viver. Sobretudo legumes sazonais, algas, peixe cru. O sushi. Arte, contemplação e beleza acima de tudo, estão na essência da cultura e da alimentação dos japoneses.

“Arte, contemplação e beleza acima de tudo, estão na essência da cultura e da alimentação dos japoneses.” Foto © Teresa Vasconcelos.

 

Junichirô Tanizaki afirma de uma forma muito bela: “A cozinha japonesa, houve quem o dissesse, não é coisa para se comer, mas para se olhar (…) para se olhar e, melhor ainda, para se meditar!” (in: Elogio da Sombra, 1933, p. 28).

A cozinha japonesa é isso tudo, mas também é sazonal, dá importância ao ciclo das estações e das colheitas. O arroz branco é a base de toda a alimentação, especialmente na modalidade sushi, que é o arroz comprimido com vinagre de saquê e enrolado em folhas de alga, usando uma pequena esteira, recheado de peixe cru, legumes, etc. Até a cor e disposição dos legumes ou peixe dentro do sushi é estética e intencionalmente bela. O tofu também está frequentemente presente. Come-se muito peixe, sobretudo peixe cru – estamos em múltiplas ilhas – e o peixe é fresquíssimo, mas também se come carne e galinha. A massa, também base da alimentação, é originária da China e em geral é servida num caldo de peixe, ou então frita (uma delícia!). Muitos e variados legumes.

No nabo apimentado
que me trespassa
o vento de outono
(Bashô)

Sim, experimentei o saboroso nabo cru de que fala o haiku. Flores e suas pétalas coloridas para saborear ou enfeitar. E, claro, o sempre presente molho de soja que traz sal à comida, mas também vinagre de arroz ou a célebre pasta picante verde, o wasabi. O wasabi é uma pasta de cor esverdeada feita de uma parte da planta com o mesmo nome cuja raiz e caule estão submersos em rios. Muito picante é servido não apenas para temperar mas também para evitar intoxicação com bactérias (o que pode acontecer quando se come peixe cru).

Pauzinhos com o respetivo suporte para os pousar, toalhinhas húmidas para limpar as mãos antes da refeição. Mostro aqui apenas duas fotos de diferentes restaurantes, partilhadas entre o grupo.

Foto © Teresa Vasconcelos.

Kobe é internacionalmente conhecida pela excelente carne. Gado criado ao ar livre em pastagens bem verdes. Houve muitos habitantes desta cidade que emigraram para o Brasil. Será que trouxeram para “casa” o “cultivo” em grande ou pequena extensão de gado? Se tiverem emigrado para o sul do Brasil é óbvia a influência alemã. Num restaurante a que fomos, curiosamente só de carne e salsichas, tudo estava apresentado à maneira japonesa: pequenas porções, dispostas de uma forma sempre bela com molhos picantes ou wasabi. Luzes veladas, tudo favorável à interioridade. Nada de iluminações frenéticas. Meia luz, saboreando, cheirando, vendo, contemplando… O requinte estético, o tempo lento, a conversa em surdina.

Claro que isto não se verifica em todos os restaurantes – apenas fomos a dois ou três mais requintados, convidando os/as diretores das escolas que visitámos. Mas um bom número deles mantém esta prática de uma estética culinária ancestral. Frequentemente serve-se chá verde – tive pena, mas não assisti a nenhum ritual do chá – mas nós preferimos beber o célebre saké (ou saquê), aguardente de arroz, deixando que os seus vapores eflúvios nos preparassem para a refeição. Para beber “à saúde” diz-se: kampai e fixam-se os outros nos olhos. Várias vezes recorri à possibilidade de beber copos grandes com um pouco de saquê, muito gelo e rodelas de limão ou laranja. Mesmo agradável!

“A cerimónia japonesa do chá (chanoyu 茶の湯, lit. “água quente [para] chá”; também chamada chadō ou sadō, 茶道, “o caminho do chá”) é uma atividade tradicional com influências do Taoísmo e do Budismo Zen. O chá verde em pó (matcha抹茶) é preparado cerimonialmente e servido aos convidados. O matcha é feito da planta chamada chá, camellia sinensis” (citado da Wikipedia).

O “caminho dos bambus”, em Kobe. Foto: Direitos reservados.

Não foi só em Tóquio que vi a responsabilização pelo lixo que se faz ao longo do dia. Uma notícia recente (Público, 24/11/2022) dizia: “Apoiantes da seleção nipónica já estão a deixar a sua marca em Doha (Qatar) e arredores, para espanto dos muitos adeptos adversários [depois do desafio contra a Alemanha os adeptos japoneses limparam cuidadosamente o estádio]. A limpeza e a arrumação são como uma religião no Japão”. A notícia não me surpreendeu: responsabilidade pelo lixo que fazemos; não sei se  introduziria a palavra “religião”, mas lá que é cidadania, isso é. E aprende-se desde pequenino, isto é, em casa, na creche e no jardim de infância, na escola.  Nada mais digo ao pensar no estado dos nossos estádios depois de um desafio de futebol ou nas ruas depois de uma celebração ou mesmo de uma manifestação. Manter tudo belo à sua volta, como que numa oração…

Vem a propósito apresentar aqui a beleza de um suporte para pauzinhos que nos foi oferecido num dos jardins de infância visitados: um complexo trabalho de origami – sob orientação de um adulto, claro! Como expliquei anteriormente e vi ser feito em vários jardins de infância (um adulto com duas ou três crianças), o origami é uma atividade manual bem japonesa e com fortes implicações na destreza manual e capacidade de concentração. A arte do origami é também de natureza contemplativa: lenta e paciente, minuciosa e rigorosa. Só assim os origamis ficam perfeitos. Como quem borda ou faz malha. Uma intensa atenção e, simultaneamente, a plena descontração da mente. Sim, ouso falar em meditação.

Gostaria ainda de falar de um local onde não pude estar, mas dois companheiros de viagem puderam fazê-lo. Trata-se também de um dos locais mais emblemáticos de Kobe, o “caminho dos bambus”. Tive mesmo pena de não poder ir mas rien n’est parfait, diz-nos o Petit Prince. Quando me mostraram as fotos fiquei feliz por eles e apenas pude visitar as fotografias por eles tiradas… De certo modo, acompanhei-os na pequena odisseia entre as altas canas de bambu. O sentido das coisas e das experiências também se faz ao “retardador”, saboreando e encantando-nos com aquilo que outros experimentaram, em vez de ficarmos “gulosos” e carentes porque não tivemos a mesma experiência. Este era um corredor complementar ao corredor laranja de Quioto que, esse sim, pude percorrer no meu silêncio habitado por múltiplas vozes…

Também podemos viver do desejo…. e isso é lindo.

*Teresa Vasconcelos é professora do Ensino Superior (aposentada) e participa no Movimento do Graal. Contacto: t.m.vasconcelos49@gmail.com

Fonte:  https://setemargens.com/quioto-finalmente/?utm_term=Papa+p%3Fue+em+evid%3F%3Fncia+a+atualidade+de+S.+Francisco+de+Sales%2C+patrono+dos+jornalistas&utm_campaign=Sete+Margens&utm_source=e-goi&utm_medium=email

Da calamidade das calaminades de Bolsonaro à esperança esperante de Lula

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Distância entre Lula e Bolsonaro no 2º turno aumenta de 12 para 17 pontos |  Exame

 Foto:Bolsonaro: Andressa Anholete / Lula: Minas/Bloomberg/Getty Images

Durante os quatro anos da administração do presidente Bolsonaro, o país viveu afetado por  todas as pragas do Egito. Das muitas opções possíveis para algum problema, o presidente geralmente escolhia a pior. Psicótico,era apático face às desgraças infligidas ao´povo, particularmente aos mais vulneráveis. O auge de seu orgasmo psicótico foi atingido quando proibiu água, vacinas e remédios aos indígenas, tidos por ele como sub-humanos. Por isso, provavelmente, deverá enfrentar um processo de genocídio, já encaminhado pelos próprio indígenas, junto ao Tribunal Penal de Crimes contra a Humanidade em Haia.

É de todos conhecida a lista das omissões, dos crimes comuns e contra a humanidade, das violações das leis e da Constituição perpretadas por esta figura dia-bolica (que separa contrariamente a sim-bólica que une) de forma continuada e sem qualquer escrúpulo. De passo, cabe reconhecer que, a nossa democracia por ser de baixa intensidade junto com a maioria de suas instituições, não se revelou à altura do desafio antidemocrático e antinacionai para enfrentar tais desvarios. Deixemos de lado as atrocidades cometidas por este presidente, cujo nome deve constar no livro dos crimes cometidos contra o seu próprio povo.

 A gravidade do desastre produzido em todos os campos é de tal magnitude que talvez somente uma reflexão histórica e sociológica não sejam suficientes para decifrá-lo. Demanda uma indagação filosofante,coisa que tentei em alguns artigos anteriores.

Utilizei-me de duas categorias, uma ocidental, a da sombra, e outra oriental a do karma, dialogando entre elas.

Talvez se faça necessária uma pequena referência aos pressupostos teóricos desta leitura: à física quântica e ao pensamento ecológico moderno nos ajudem a entender  este sinistro fenômeno.

Sabemos hoje que todos os sere estão inter-retro-conectados,todos estão envolvidos em redes de relações. Cada relação deixa uma marca entre os seres relacionados e assim surge uma história, a cosmogênese. Experiências dramáticas deixam marcas que,não raro, procuramos recalcar,mas que permanecem no inconsciente coletivo. Jung chama a isso de sombra. Algo parecido ocorre com o karma. Cada ação deixa uma marca que provoca uma correspondente reação. Tanto Jung quanto o  filósofo japonês Daisaku Ikeda convegem nesta acepção. Em outras palavras, não há apenas a sombra e o karma indidivual.Eles podem assumir um caráter coletivo presente no substrato e no inconsciente de cada povo.

Voltando ao nosso tema: somos herdeiros de uma tormentosa história de sombras: a do genocídio indígena, a colonização que nos impedia possuir um projeto próprio, a escravidão, a mais grave,que reduziu pessoas humanas a escravos e usados como animais na produção, sombra de nossa república e democracia frágeis que nunca foram includentes,pois a conciliação das classes endinheiradas nunca fizeram um projeto nacional para todos, apenas entre elas com a exclusão das grandes maiorias de negros,pobres,indígenas e outros. Essa sombras desumanas trabalharam no inconsciente coletivo,provocando quilombos e revoltas, todas elas exterminadas a ferro e fogo para manter as vantagens “de elite do atraso”(Jessé Souza). Elas trabalharam também no inconsciente das minorias endinheiradas,geralmente na forma de medo  e insegurança. Ao dar-se conta de que as sombras das classes humilhadas começaram a ganhar força história a ponto de terem eleito um dos seus representantes à presidência, Lula, logo foram por todos os meios rebaixadas, reprimidas,combatidas até cortar-lhe o caminho por um golpe civil-militar em 1964 de,sob outra forma,repetido em 2016 com o impeachement  Dilma Rousseff.As motivações eram as mesmas:garantir seu poder e fortunas.

Na pessoa medíocre,sem projeto pessoal nenhum e manipulável estas classes encontraram o representante ideal que precisavam. Elegeram o atual presidente, sempre sustentado por elas, pois, com sua economia ultra-neoliberal, aliada a uma política de extrema-direita, acumularam,apesar da pandemia do Covid-19, como nunca antes na história. Fizeram de tudo para garantir-lhe a reeeleição (figurativamente, fizeram-lhe comprar a arena de futebol, comprar o time, comprar  os gandulas,comprar o juiz, e ainda assim perderam).Há uma força maior que a maldade arquitetada.

A força kármica (abstraindo as muitas reencarnações) segundo Ikeda impregna com sua sombra a história e as instituições,positiva ou negativamente. Arnold Toynbee que entreve um longo diálogo com Ikeda, prefere outra categoria e não a kármica, ao dizer que a  história carrega um próprio peso que são os fracassos e sucesso de um povo. Ele gera também uma sombra no inconsciente coletivo que se projeta nas redes sociais e conforma o destino de um povo.

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Voltando ao tema em tela: com o atual governo tivemos que penar sob o peso de nossas muitas sombras sombrias que se expressavam pelo ódio, pela mentira,pelos fake news,pela distorção da realidade. Ganhou corpo na figura sinistra do presidente,cuja megasomba tinha o poder de  suscitar e animar a sombra coletiva de um povo já fragilizado. Criou um um campo kármico ou forjou o gabinete do ódio e todas as formas de obcenidades políticas e éticas.

O destino quis que essa insensatez,cujo projeto era levar-nos ao mundo do  pre-iluminismo, pois esse promovia a escola para todos,os direitos humanos e as liberdades modernas, avanços civilisatórios, sistematicamente negados pelo bolsonarismo.

O Brasil foi submetido ao seu maior desafio havido em nosso história. Foi humilhado internamente e envergonhado externamente.

Mas nunca esmoreceu esperança, aquele motor interior, maior que a virtude, que nos faz nunca desistir, que nos sustenta nos enfrentamentos e nos faz levantar quando caídos. Esse princípio-esperança nunca morre porque é ele o vigor secreto de toda vida que recusa morrer e sempre reafirma a força intrínseca da vida, nos força a rasgar caminhos novos e mundos “ainda não experimentados”(F.Pessoa). O esperançar de Paulo Freire e a esperança esperante,que nunca desistem,sempre insistem e criam a condições histórica para que a utopia viável se torne realidade. Passamos pela prova. A magna calamidade de Bolsonaro foi vencida pela esperança esperante de Lula. Temos esperança de que o novo presidente com a equipe de excelência que articulou, pode refazer o que foi destruído e, muito mais, abrir rumos novos, bons para nós e para o mundo, pois, pelo Brasil passará,seguramente,  futuro ecológico da vida e da  humanidade.

* Teólogo.Filósofo. Professor.Escritor 

Fonte: https://leonardoboff.org/2022/12/29/da-calamidade-das-calaminades-de-bolsonaro-a-esperanca-esperante-de-lula/

‘Disrupção das eleições de 2018 veio da Operação Lava Jato’

Por

Leia entrevista da cientista política Monalisa Soares Lopes para o podcast Politiquês na minissérie ‘Uma crise chamada Brasil’, em que fala sobre a chegada de Bolsonaro ao Palácio do Planalto

Monalisa Soares Lopes, professora de ciência política na Universidade Federal do Ceará, foi entrevistada pelo podcast Politiquês em julho de 2022 para a minissérie “Uma crise chamada Brasil”, que traça um panorama dos anos que marcaram a quebra do pacto social da Nova República.

Ela aparece no quinto episódio, “Rupturas”, sobre o impeachment de Dilma Rousseff e o que veio depois, e no sexto episódio, “Diálogo interrompido”, sobre o impacto das redes sociais no debate público.

O Nexo traz agora a transcrição da conversa que teve com Lopes. Ao longo de dezembro de 2022 e janeiro de 2023, as entrevistas realizadas para a minissérie serão publicadas por escrito, a fim de que possam ser fonte de consulta dos leitores do jornal.

Em 2014, o PSDB colocou em xeque o resultado das eleições pedindo uma auditoria nos votos a partir de boatos na internet. De que forma esta atitude do partido impactou a confiança dos brasileiros no sistema eleitoral? Houve ali a origem de um abalo a pilares democráticos?

MONALISA SOARES LOPES Sobre os discursos de desconfiança no processo eleitoral, de fato, 2014 é um momento importante. Era o candidato de um dos partidos mais importantes do país naquele momento [Aécio Neves, derrotado pela petista Dilma Rousseff], que já havia ocupado a Presidência da República por duas vezes, e que por quatro eleições seguidas apresentava um candidato que ia ao segundo turno disputar o cargo. Aquela ação do Aécio e do PSDB solicitando essa auditoria é muito importante para destacar a importância não só do conteúdo do discurso, mas de quem pronuncia esse discurso. Quem o coloca na cena pública.

Em 2022, nós temos a mais alta autoridade da República [Jair Bolsonaro] reiteradamente apresentando esse tipo de discurso, numa escala muito maior. É algo muito expressivo, porque atacar a integridade eleitoral significa um ataque não só ao próprio processo em si, aos eleitos que decorrem daquele processo, mas ao próprio sistema, à própria lógica de recrutamento político em uma sociedade democrática como a nossa.

Quando eu menciono a importância de quem fala, a gente vê que a discussão proposta pelo presidente tem reverberado socialmente. Pesquisas de opinião pública mostraram um crescimento em relação à desconfiança sobre as urnas eletrônicas. Esse tipo de discurso que coloca sob suspeição o processo eleitoral tem, na verdade, um objetivo geral de minar as bases de legitimidade do próprio sistema político.

O PT e Dilma erraram ao não apoiarem Eduardo Cunha na eleição para a presidência da Câmara em 2015? Na sua avaliação, Cunha e aliados inviabilizaram o início do segundo mandato de Dilma, como dizem os petistas, com a chamada pauta bomba do Congresso?

MONALISA SOARES LOPES As tensões entre o Executivo e o Legislativo já foram sedimentadas e organizadas no primeiro mandato de Dilma. Aquele foi o laboratório em que se gestou essa insatisfação e, a partir disso, a dificuldade que o governo tinha de gerenciar essas relações tão importantes para o presidencialismo de coalizão brasileiro.

O não apoio do PT à candidatura do Cunha logo após a reeleição da Dilma, com lançamento de candidatura própria, adensou essa insatisfação do grupo de deputados que ele liderava.

O papel do Cunha no aprofundamento do desgaste do governo com as pautas-bomba também é importante, principalmente pelo conteúdo que aquelas matérias tinham. O governo enfrentava uma crise econômica, precisava dar resposta a partir de cortes de gastos, e o Cunha e a oposição aprofundaram essa dificuldade que o governo tinha de gerenciar a crise econômica. Mas, por outro lado, o desgaste que leva ao impeachment também traz elementos próprios da ação do governo.

O início do governo Dilma 2 é marcado por uma recondução de rota de ação, diferente do que tinha sido apontado na campanha eleitoral. A campanha de reeleição foi profundamente marcada por um discurso de continuidade e de ampliação de direitos. E logo que ela toma posse, nos primeiros meses do governo, há uma série de cortes, inclusive de medidas provisórias que passaram a normatizar benefícios. Na hora de decidir por essas medidas impopulares, houve uma incapacidade ou uma não mobilização do governo em se comunicar diretamente com a sociedade, logo após uma campanha em que o Brasil parecia ter condições de continuar tal qual era.

Quando vêm as pautas-bomba, elas pioram a situação do governo na gestão da crise econômica e se somam a esse conjunto de elementos de insatisfação popular. Insatisfação que se expressa nas ruas a partir das mobilizações das direitas e das oposições, mas que também ganha corpo na opinião pública em geral, o que pode ser observado nas pesquisas de aprovação do governo ao longo do ano de 2015.

Quando o Eduardo Cunha acolhe o pedido de impeachment no fim de 2015, tem todo aquele debate sobre a vingança pelo PT não atuar para impedir a tramitação da denúncia contra ele no Conselho de Ética [por negar a existência de contas bancárias na Suíça]. Tem esse elemento, mas tem também todo um processo de desgaste que foi sendo montado ao longo do ano.

Naquele momento, o Cunha já tinha diversos pedidos de impeachment na mesa, a oposição institucional já estava completamente mobilizada em torno desse debate da deposição, já tinha muitas manifestações de rua, as pesquisas de opinião de aprovação do governo e as que mensuravam a possibilidade de impeachment também mostravam um certo apoio ao processo e houve, ainda, um movimento mais significativo do [então vice-presidente Michel] Temer com aquela carta [endereçada à Dilma, reclamando da falta de protagonismo no governo] e a própria discussão do MDB sobre a Ponte para o Futuro [programa econômico alternativo ao do PT]. Então, tem uma ação do indivíduo Eduardo Cunha, mas já tem toda uma conjuntura delineada e bastante favorável ao processo de início do impeachment.

No início de 2016, houve aquela mobilização em torno da possibilidade de que o presidente [Luiz Inácio] Lula [da Silva] contribuísse para a articulação, para tentar estancar o processo de impeachment, esperava-se que o recesso parlamentar ajudasse nesse conjunto de configurações e de diálogos. Mas a ação da Lava Jato, que veio num contínuo desde a eleição de 2014, foi de fato decisiva também para montar uma conjuntura que tornaria o processo do impeachment um desenrolar muitíssimo difícil de ser evitado [o ex-juiz federal Sergio Moro, responsável pela operação, vazou diálogos entre Lula e Dilma sobre a ida do ex-presidente ao Ministério da Casa Civil, e o Supremo barrou a sua indicação].

Dilma sofreu impeachment por manobras fiscais. Os apoiadores falam em golpe porque segundo eles não havia crime de responsabilidade ali. Mas a definição de crime de responsabilidade é bem ampla. Há analistas que veem o impeachment apenas como um processo político – o governo trava e o presidente cai. Há analistas que veem como um processo político-jurídico – é preciso ter alguma base para derrubar um presidente, senão se age fora da Constituição. Como você classifica o que ocorreu ali? Golpe? Ruptura institucional? Impeachment mesmo?

MONALISA SOARES LOPES A deposição da ex-presidenta Dilma se tornou um evento disputável do ponto de vista da narrativa, de impeachment versus golpe. Que elementos contribuem para que essas narrativas se organizem e se fortaleçam na dinâmica e na disputa política? Entendo que tem pelo menos três dimensões nessa discussão.

A primeira foi o próprio recorte do fenômeno que configuraria o crime. A gente viu amplas discussões em torno das manobras fiscais como crime de responsabilidade, primeiro na Câmara dos Deputados, depois no Senado. Quem era contrário evidenciava que nque essas manobras eram uma ação corrente da gestão pública federal, que já havia inclusive sido acionada por outros presidentes. Quem era favorável dizia o oposto, buscando demonstrar todos os níveis de legalidade que estavam envolvidos no processo de impeachment.

Em outro nível, outro acontecimento que adensa essa disputa é o próprio processo de penalização da ex-presidente. Ou seja, após aprovado o impeachment no Senado, a presidenta perde o mandato, mas não perde os direitos políticos, algo que para muitas pessoas era inviável de ser separado. Foi mais um evento, mais um acontecimento que mobiliza essa disputa e torna a definição ambígua.

Por fim, ao longo dos anos, foram aparecendo diversas declarações, de agentes do Judiciário e de agentes do campo político [desresponsabilizando Dilma], e mesmo decisões judiciais, de tribunais extinguindo processos contra Dilma em relação a danos financeiros e pedaladas fiscais. Esse processo de retirar os aspectos jurídicos ou de não mencionar fundamentalmente o crime de responsabilidade, que seria o elemento jurídico do julgamento, também adensam essa possibilidade da disputa narrativa. E aí a gente tem visto como o PT tem mobilizado ao longo desses últimos anos essa narrativa, em nome dessas incongruências que marcaram o processo de deposição da ex-presidenta Dilma.

As eleições de 2018 foram marcadas também por uma ruptura da lógica segundo a qual, para vencer uma disputa presidencial, é preciso ter apoio partidário, estrutura nos estados e tempo de propaganda de rádio e TV. Na sua avaliação, por que essa lógica não prevaleceu naquele ano?

MONALISA SOARES LOPES A eleição de 2018 é amplamente reconhecida como disruptiva, com muitos elementos que vêm do desgaste que a Lava Jato operou no sistema político.

A sedimentação do antipetismo na opinião pública já tinha abalado fortemente a performance do PT nas eleições de 2016. O partido viveu um cenário de terra arrasada, perdeu muitas prefeituras, muitos cargos de vereança, num processo de fortalecimento de um discurso antipetista que veio junto com o processo do impeachment. Associou-se o PT à má gestão, à crise econômica e à corrupção. Há um abalo de fato na imagem do partido.

Quando a gente chega em 2018, a Lava Jato, que com suas ações tinha operado essa associação negativa com o PT, estende essa percepção para os outros partidos. Em 2017, houve o comprometimento também do PSDB via figura do ex-senador Aécio Neves, que havia sido o candidato competitivo do partido em 2014 e era então uma liderança forte da oposição, e do MDB do presidente Temer, que estava no poder. A Lava Jato faz esse castelo de cartas cair, porque ela atinge fortemente os três grandes partidos do sistema partidário. Então 2018 chega com a forte sensação de insatisfação política, de crítica à política, especialmente dessa política dita tradicional, dos partidos que consolidaram o processo democrático ao longo das últimas décadas.

Isso implicou fortemente esse discurso de renovação, de novos grupos na política. É nesse contexto também que ascende a figura do atual presidente [Bolsonaro]. Consolida-se, porque ele já vinha num processo de exposição pública, a partir da construção da sua candidatura como uma figura outsider, antissistêmica, incorporando profundamente o antipetismo, que seria uma tônica daquele processo eleitoral de 2018.

Dentro desse quadro disruptivo é importante a gente rememorar como essa candidatura, que foi a candidatura vitoriosa, se articulou com os discursos dominantes, com a percepção que estava sedimentada socialmente. Conjugado a isso vem aquela decisão do Supremo no julgamento que foi feito sobre o habeas corpus do ex-presidente Lula [que manteve a sua prisão após a condenação em segunda instância]. A retirada do candidato que estava líder nas pesquisas também impacta e fecha esse quadro de disrupção da eleição de 2018.

Outra discussão muito forte foi sobre o papel das redes sociais em 2017, se elas teriam suplantado a comunicação tradicional das TVs. Elas tomaram uma proporção muitíssimo significativa, principalmente pela atuação do candidato vitorioso, que tinha pouco tempo de TV no primeiro turno e conseguiu mobilizar enormemente esse campo das redes.

Mas isso não significa que a TV perdeu por completo a sua relevância. A cobertura midiática sobre a candidatura [de Bolsonaro] especialmente após o atentado que ele sofreu foi algo muito relevante para torná-lo ainda mais conhecido. E no próprio segundo turno o presidente e a sua campanha mobilizaram o horário eleitoral para conjugar e reforçar uma narrativa que já se apresentava nas redes sociais. O antipetismo, o antiesquerdismo e o discurso moral foram para a tela da TV e para o rádio. Foi também através do horário eleitoral que o candidato do PT Fernando Haddad conseguiu ter visibilidade nacional, inclusive disparando nas pesquisas por causa da sua associação com o ex-presidente Lula.

Sim, as redes sociais cresceram, ampliaram a sua relevância. Em 2020 e 2022 vimos que é inimaginável uma candidatura sem mobilizá-las. Mas isso não significa que a TV não cumpra determinadas funções. Elas também somam nesse processo geral de construção da comunicação política dos candidatos.

Fonte:  https://www.nexojornal.com.br/entrevista/2022/12/28/%E2%80%98Disrup%C3%A7%C3%A3o-das-elei%C3%A7%C3%B5es-de-2018-veio-da-Opera%C3%A7%C3%A3o-Lava-Jato%E2%80%99

‘Dilma foi presidente e caiu pela vontade de Deus’

 Por

Dilma e Temer olham para o público em cerimônia de posse depois de reeleição da chapa
 Foto: Romério Cunha/Creative Commons - 01.01.2015
Dilma fala com o público ao lado de Michel Temer após reeleição
 
 

Leia entrevista do ex-presidente da Câmara dos Deputados Eduardo Cunha para o podcast Politiquês na minissérie ‘Uma crise chamada Brasil’, em que ele fala sobre o processo de impeachment da então presidente petista


Eduardo Cunha, ex-presidente da Câmara dos Deputados que presidiu o processo de impeachment da então presidente Dilma Rousseff, foi entrevistado pelo podcast Politiquês em julho de 2022 para a minissérie “Uma crise chamada Brasil”, que traça um panorama dos anos que marcaram a quebra do pacto social da Nova República.

Ele aparece no quinto episódio, “Rupturas”, sobre o impeachment de Dilma Rousseff e o que veio depois.

O Nexo traz agora a transcrição da conversa que teve com Cunha. Ao longo de dezembro de 2022 e janeiro de 2023, as entrevistas realizadas para a minissérie serão publicadas por escrito, a fim de que possam ser fonte de consulta dos leitores do jornal.

Seis anos depois do impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, como o senhor avalia esse momento? Foi a melhor decisão política para o país?

EDUARDO CUNHA Em primeiro lugar, a decisão teria que ser tomada de qualquer maneira e eu não tenho nenhum arrependimento pela decisão que eu tomei, até porque os fatos me obrigariam a isso. Se era melhor ou pior, isso independe. Ela efetivamente cometeu um crime de responsabilidade. Tinha a situação de instabilidade política que vivia-se naquele momento, a perda de apoio popular, a fragmentação da sociedade como estava, não teria outra [possibilidade]. O impeachment é uma conjunção de fatores, mas ele tem que ter efetivamente o crime de responsabilidade e, no meu entender – não só meu, mas também do Senado que julgou – houve crime de responsabilidade. Muita gente acha que o impeachment se deu por pedalada fiscal. Não tem nada a ver com pedalada fiscal. A própria condenação do Tribunal de Contas da União sobre as pedaladas fiscais não teve nada de influência no processo do impeachment. A pedalada ela praticou em 2014, no primeiro mandato dela. Sobre isso, eu rejeitei a abertura do processo impeachment.

O impeachment dela se deu porque quando ela [Dilma Rousseff] mandou um projeto de lei para mudar a meta fiscal do ano de 2015, depois que o Orçamento estourou ou ia estourar – até porque ela pagou as pedaladas fiscais de 2014 – essa mudança da meta, ela teria que ter esperado o Congresso aprovar para gastar. E no entanto ela editou decretos autorizando o gasto de parte desse recurso pelo qual ainda não havia o Congresso aprovado. Ou seja, ela gastou sem autorização na lei orçamentária. Essa foi a motivação do crime de responsabilidade que gerou o impeachment dela. Aquilo era fato. É a melhor decisão do ponto de vista político? Isso aí é o Congresso como um todo que tem que tem que avaliar, não é o meu ato em si que tem que dizer ou não. Mas eu não acho que poderia ter uma decisão diferente da que foi tomada, esse é meu ponto de vista.

Muitos cientistas políticos veem o impeachment como uma ruptura que trouxe algum tipo de deterioração política naquele momento. O senhor concorda?

Eduardo Cunha Eu acho que a ruptura já se deu em 2013, quando teve aquelas manifestações. Hoje, passado o tempo, eu acho que isso, de certa forma, vai ficar claro para a sociedade. Ali houve uma ruptura com a representatividade. Em São Paulo, 88% dos eleitores não lembram quem votou para deputado na eleição de 2018. Isso é muito grave. E por que se dá isso? Isso se dá por dois motivos. Primeiro motivo, porque o eleitor não liga para a composição do Congresso, uma parte grande. Segunda parte, se dá por que a maioria dos votos são para os candidatos que não foram eleitos. Pelo nosso sistema político que nos obriga a fazer nominatas enormes, principalmente agora com o fim das coligações, para poder fazer legenda para os candidatos que vão se eleger. Isso aí significa que a maior parte dos votos dados para deputado são perdidos. Se você fizer uma simples análise, somar os votos válidos nas eleições de 2014, os votos válidos dos 513 deputados eleitos, você vai chegar a um percentual de aproveitamento que é muito pequeno.

Então, a crise de representatividade de 2013, pela qual a Dilma, que naquele momento tinha uma popularidade enorme e a popularidade dela reduziu à metade da noite para o dia em função daquelas manifestações – que só foram encerradas pela violência que foi empregada, patrocinada ou não, aqueles black blocs, que estimulados pelo próprio PT naquele momento para acabar com as manifestações – aquilo gerou uma desconfiança da sociedade. E a Dilma foi para a reeleição dentro de um processo de maquiagem da situação econômica, praticamente um estelionato eleitoral que foi praticado ali, e esse estelionato eleitoral foi uma ruptura. Quando ela iniciou o segundo mandato, a gente tinha a impressão que o governo já estava velho antes de ter começado.

As pessoas já pediam o impeachment antes dela tomar posse no segundo mandato. Ou seja, a representatividade não foi consumada pela eleição. Então, aquilo já foi uma ruptura. Essa ruptura disfarçada, de uma certa forma influenciou no processo impeachment, porque foi a corrosão popular. Na medida que ela [Dilma] começou o segundo mandato e todo mundo constatou que a eleição tinha sido um estelionato, ela veio pra 5% [de aprovação]. Quer dizer, não pode um presidente da república que se elege com a maioria dos votos válidos, ou seja, 51, 52, 53, 54% e de repente é reduzida 90% da sua popularidade com menos de 6 meses de mandato, é uma situação que é incomum. Então, aquilo já não deixa de ser uma ruptura, entendeu? Então, eu analisaria do ponto de vista mais complexo do que simplesmente essa colocação de que o ato do impeachment foi a ruptura. Não, a ruptura já existia disfarçada da desconexão da representatividade da eleição com o papel exercido no mandato.

Como o senhor vê o momento político atual em relação à representatividade e consequências políticas pós-impeachment?

Eduardo Cunha O momento atual sofreu consequências graves do próprio processo da criminalização da política, o que aconteceu, derivado do processo da ruptura – e isso sim contribuiu com a ruptura – foi a criminalização da política feita pela Operação Lava Jato conduzida pelo ex-juiz Sergio Moro, que buscava a criminalização da política para poder destruir os atores políticos convencionais para substituí-los. Então, essa ruptura que se deu, e aí vamos falar em ruptura de verdade, foi tentativa de tirar a política da política. A consequência disso foi gerar eleições completamente desconectadas da política, como aconteceu em 2018. Eu nem diria que a eleição do Bolsonaro foi desconectada da política, porque o Bolsonaro de uma certa forma tomou o lugar do PSDB na polarização. A derrocada que a criminalização da política fez com o PSDB, eu atribuo muito mais àquela operação em cima do Aécio, aquilo realmente foi um pá de cal no PSDB naquele momento. Não estou responsabilizando ou culpabilizando, emitindo nenhum juízo de valor, estou falando apenas a consequência que foi ocorrer. Aquilo realmente fez com que o Bolsonaro conseguisse tomar o lugar na polarização anti PT, porque era um espaço que estava vago.

Só que junto com o Bolsonaro ascenderam elementos que não eram da política para entrar na política. E aí a gente gerou um parlamento e eleições diversas, por exemplo, no estado do Rio de Janeiro, com um governador ex-juiz. Aquelas coisas todas que geraram, fora da política, algumas loucuras. E essas loucuras, de uma certa forma, tiveram que depois se adaptar à política real. Então, essa situação é que ficou uma situação difícil de entender, que agora, de uma certa forma, vai voltar à normalidade. Entre elas, o próprio Lula sofreu. Eu costumo dizer que, por mais que eu seja adversário, o Lula tinha que ter disputado a eleição em 2018. Porque teria sido muito melhor para o país que o Lula tivesse disputado. Ele iria perder a eleição, não teria como ele vencer aquela eleição, mas teria sido muito melhor para o país que ele fosse vencido nas urnas, do que com um gol de mão você tirar o Lula da eleição.

Todo esse processo que nós vivemos é uma consequência disso que aconteceu. E vem com os dias atuais. Então, o Lula vem de vítima, quando na realidade não deveria ser vítima, não deveria nem ter sofrido o que sofreu daquela forma, e ao mesmo tempo que ele vem de vítima, crescendo em função da vítima, você, com a eleição da forma como foi colocado Bolsonaro enfrentando a política naquele momento, você gerou uma contestação geral da sociedade. A forma que o Bolsonaro está sendo perseguido pela mídia, nós sabemos que está, não tem lógica o que fazem com ele. Por mais que você discorde, por mais que ele possa fazer coisas erradas, coisas que você não concorde, o nível de crítica, o nível de perseguição de mídia em cima dele é sem parâmetro nenhum na história brasileira. Então, a gente precisa ver que os dias atuais são reflexo dessa conjugação que estão, de uma certa forma, nos trazendo esse cenário de confronto. E essa é a minha visão.

Como se posicionam os próprios políticos na criminalização da política, diante da Lava Jato? O senhor, por exemplo, foi condenado e abriu mão de contas na Suíça. Qual foi o papel da classe política nessa criminalização?

Eduardo Cunha A minha condenação foi anulada. Eu não tenho nenhuma condenação vigente, isso é importante dizer. Primeiro, não cumpri pena, não tenho pena a cumprir, minha condenação está anulada e, se tiver curiosidade de olhar o meu livro, eu publico fac-símile de um ofício do Ministério Público Federal me pedindo ajuda para acessar a conta que não era minha. Então, é importante deixar isso claro para que as pessoas não fiquem com essa impressão. Na verdade, o que aconteceu foi fruto de um grande engajamento de mídia. Eu nunca escondi a situação das contas. Qual era a situação real? A que existia. Aí fizeram uma pilhéria dizendo que quando eu falava que era usufrutuário, exatamente o termo que o Ministério Público colocou no ofício que foi reconhecido pelas autoridades de fora como que eu era apenas um mero usufrutuário, eu não tinha acesso à conta. Então, é uma coisa tão absurda isso. De uma certa forma, eu sou vítima dessa criminalização, porque eu não menti no que eu falei, o que eu falei era verdade. E o próprio Ministério Público, apesar de ter me imposto uma condenação, e diga-se de passagem, a condenação que me foi imposta, ela foi, para bem claro, o senhor Sergio Moro me imputou um delito de corrupção baseado na palavra de um delator que ouviu dizer de uma terceira pessoa, que não confirmou, que não confirmou em depoimento que eu tinha sido a última pessoa a ser ouvida na nomeação de um diretor da Petrobras. Olha a coisa absurda de condenação que o Sergio Moro fazia com as pessoas lá. Mas isso foi anulado e vai ser absolutamente reiniciado.

Para além do caso específico, que o senhor esclareceu, os políticos não tiveram nenhuma contribuição nessa criminalização?

Eduardo Cunha Você quer colocar sob o ponto de vista os políticos que tiveram praticado atos ilegais, isso aí tem que apurar. E se apurar, tem que ser punido. Agora, tem que ser punido, por exemplo, o próprio Lula. O que o Moro fez com o Lula, ele pediu que o Lula fosse julgado de verdade, porque as acusações que existiram contra o Lula hoje não podem mais ser julgadas porque foram prescritas. Então, o Lula é inocente, não há dúvida. Agora, não deu a permissão para que a acusação contra ele fosse avaliada. O Moro criou a condição, através de um processo fraudulento, como ele fez com a maioria, que o Lula fosse julgado de verdade. Então, os políticos são responsáveis? Nós temos que saber quem é responsável na medida que você tem um devido processo legal, o amplo contraditório, com direito de defesa respeitado pelo juiz competente, na jurisdição correta. Então, é preciso que a gente coloque as coisas no seu devido lugar. Qual foi o político, tirando os que por acaso viraram delatores, que efetivamente estão condenados nesse estágio? Não conheço nenhum. A não ser os delatores.

O senhor acha que foi um erro o PT e a Dilma não terem lhe apoiado quando o senhor disputou a presidência da Câmara?

Eduardo Cunha Olha, veja bem, eles chegaram até o último momento – e eu relato isso no livro – na véspera queriam me apoiar, eu que não aceitei as condições que me foram colocadas por esse apoio. Queriam que eu reunisse todos os partidos que estavam me apoiando e declarasse que a gente apoiaria o PT no segundo biênio. Eu falei que eu não faria isso. Obviamente eu não poderia ser candidato à reeleição, porque não tinha reeleição dentro da legislatura, e que o meu partido daquela época, o PMDB, não iria lançar candidato à minha sucessão. Caberia aos partidos, no momento devido, escolherem quem fosse. Eu não podia me comprometer até porque a minha candidatura era anti um domínio do PT. Como é que eu podia? Se eu fizesse essa falsidade na véspera, eu corria o risco de um candidato alternativo entrar e vencer a eleição, porque ia pegar o meu discurso e dizer "o que ele pregou a campanha inteira era falso". Então, eu disse o seguinte "não, eu não tenho nenhum problema que o PT ocupe o segundo biênio", mas ele tinha que se viabilizar com a casa, não comigo. Não era eu que ia ser o cabo eleitoral do PT.

Eles não aceitaram isso. Queriam que fosse um ato formal com todos os partidos, todo mundo declarando publicamente que apoiaria o PT para o segundo biênio. E eu não aceitei. Eu disse o seguinte, eu aceito o apoio do PT, o PT fica na mesa com a participação que lhe cabe, poderia ficar com a primeira vice-presidência da casa e ponto. Estava resolvido e daria participação proporcional, nas comissões e tudo. E aí, obviamente, se tivesse havido esse apoio, eu não teria condição política de autorizar a abertura do processo de impeachment, porque eu teria sido apoiado pelo próprio governo. Eu perderia a independência que eu tive com a minha eleição. Essa que é a verdade.

Você, quando tem um candidato que acaba apoiado pelo governo, ele fica com uma certa forma numa situação de compromisso. Quer dizer, ele não vai ter condição nenhuma de abrir o processo impeachment se tiver sido apoiado. Então, sob essa ótica que você está colocando, pode ter sido um erro deles. Mas eu acho que mais do que essa ótica, que você não pode fazer um apoio achando que todo mundo vai ter um processo impeachment, até porque a vulgarização do impeachment hoje está muito maior do que era antes, em função de ter havido o impeachment da Dilma. Aliás, a gente não pode transformar um impeachment num voto de confiança no Parlamento ou achar que a gente vai fazer o terceiro turno baseado no impeachment. "Não vai ter presidente, vamos fazer um impeachment". Eu sou parlamentarista, então eu prefiro partir para a discussão do parlamentarismo.

Naquela eleição da mesa, se você fizer uma análise correta, você vai ver o seguinte: o PT teve de votos na sua candidatura o mesmo número de votos que a Dilma teve para evitar o impeachment, em torno de 130. Se isso aconteceu, ela já tinha perdido a base. Ela não perdeu a base no impeachment, ela já tinha perdido na eleição. Ela já entrou no segundo mandato sem base.

A Dilma culpava boa parte do parlamento por conta do que era chamado na época de pautas-bomba…

Eduardo Cunha A perda da base dela já estava fotografada no dia 1º de fevereiro 2015, antes de começar a legislatura. Em primeiro lugar, não teve uma pauta bomba. Eu discuto isso abertamente, me diga qual foi a pauta bomba que eu coloquei e impus ao governo? Pelo contrário. Você teve uma série de artigos feitos até pela Folha de S.Paulo sobre os ministros da Fazenda da década. O Joaquim Levy escreveu um artigo dizendo os ganhos que ele obteve como ministro da Fazenda, e todos eles calcados nos aumentos de receita que ele conseguiu com a aprovação de medidas no Congresso. Ora, ele aprovou aumento de imposto de renda de grande capital, aumento de contribuição social de lucro líquido, o fim da desoneração, o imposto de renda para repatriação de capitais. Tudo isso foi feito comigo, quando teve aumento de arrecadação do governo naquele momento por causa disso. Agora, o que eu provoquei de despesa? As despesas que foram provocadas de medidas de votações, você sabe o que que foram? Eram medidas provisórias que tinham emendas que o governo perdia no plenário, que depois tinha que inventar.

E aquela PEC [Proposta de Emenda à Constituição] da AGU [Advocacia-Geral da União], de salários?

Eduardo Cunha Não, não. Essa PEC que você está falando eu votei no primeiro turno com o governo querendo e não levei a votação no segundo turno. Eu disse que eu não levaria, porque achei aquilo um absurdo. Eu pautei porque, veja bem, um presidente da Câmara não pode deixar de pautar aquilo que a maioria dos líderes quer, porque se não você perde a governabilidade. Se o governo não controlava os líderes para poder impedir que eles brigassem por uma pauta, você não tem o que fazer.

O Arthur Lira hoje é a mesma coisa. Os líderes querendo votar, vão votar. Ou você acha que botar piso de enfermagem é uma coisa que interessa aos governos? Você acha que colocar agente comunitário de saúde na Constituição interessa ao governo? É claro que não. É claro que o governo foi derrotado. Os líderes queriam. Então, você não pode, como presidente da Câmara, dizer "a pauta é minha, eu só ponho o que eu quero". Se você faz um negócio desse, você amanhã não tem governabilidade.

Os líderes, inclusive, podem entrar com requerimento, obrigar a votação imediata de matéria. Se você for pesquisar bem, um dos grandes confrontos que eu tive dentro do Parlamento, não como presidente, mas quando o Michel Temer era presidente da Câmara, foi a votação dos royalties do petróleo. Você sabe como é que foi votada a mudança dos royalties do petróleo naquele momento? Entraram com requerimento para colocar imediatamente em pauta o projeto. O Michel teve que votar o requerimento, a casa aprovou e entrou em pauta imediatamente. Ele não tendo posto na pauta. Então, o presidente é o dono da pauta até certo ponto, mas ele não consegue controlar esse nível. E o Joaquim Levy colocou. E eu coloco o seguinte: qual é, me apresenta pauta bomba que eu apresentei? A PEC foram os líderes que colocaram.

Então, o que que eu fiz? Quando eu vi que o governo perdeu mesmo de verdade, porque eu achei que o governo ia ganhar. Eu não fiz um esforço para votar aquilo, pelo contrário, quando tinha um monte de destaque lá para aumentar a situação, eu trabalhei para evitar que os destaques fossem aprovados e quando eu vi que aquilo acabou eu falei "isso é um absurdo, eu não vou votar o segundo turno, só voto segundo turno quando aprovar uma PEC, uma outra PEC, que diz que nós não podemos criar obrigações para estados e municípios que não tenha receita efetivamente alocada para essa finalidade". E não levei por causa disso. Então, a gente precisa ter, digamos assim, honestidade intelectual. Me mostra qual foi a pauta bomba que eu coloquei? Até porque a minha origem, o meu conceito, eu sou fiscalista, eu sou liberal de economia. Eu não concordo de você impor, eu não sou favorável a fazer politicagem com aumento salarial de carreira. Meu histórico é tudo o contrário desse. Então, não tinha sentido eu partir para um negócio desse, porque é um país, a gente não pode quebrar um país por uma atuação política. Só que o governo não tinha maioria. E o que acontecia? Cada vez que tinha uma Medida Provisória, tinha uma Emenda numa medida provisória, e o governo perdia a votação. O presidente não vota. E não era com articulação minha para colocar ou para votar emenda, não. Pelo contrário, muitas delas eu derrotei naquela situação de malandragem. Se eu não tivesse feito isso, teriam sido aprovadas muitas coisas piores.

Eu acho uma injustiça essa colocação. Isso virou uma coisa política deles para justificar que não governou. Agora, vai lá, por que eles não falam as receitas? Inclusive, no caso da repatriação, eles queriam aprovar um projeto do Senado do Randolfe [Rodrigues]. Eu disse, na época, para a Dilma: "eu aprovo imediatamente, mas eu quero que venha um projeto do governo, porque eu não vou aqui aprovar o projeto de repatriação de capital, que vai ser absolutamente ilegal oriundo do Parlamento. Quem tem que fazer isso é o governo. Você está dando anistia. Eu não quero isso na minha conta".

Nós temos que desmistificar essa história de pauta bomba. Me apresenta qual é a pauta bomba que o Eduardo levou adiante e que causou prejuízo aos cofres públicos, que você possa mensurar que tenha sido minha culpa.

Essa, por exemplo, que você citou da AGU, não foi levada adiante no segundo turno, por isso que não foi. Lembre-se bem que é o Michel Temer, como presidente da Câmara, que levou a pior das PECs que poderia ter sido levada na história do Parlamento, que é a PEC 300, que é aquela que iguala os policiais militares ao salário do policial do Distrito Federal, que é uma discrepância enorme. E você sabe que essa PEC ficou presa até hoje. Ela vem do Senado, de autoria do Renan Calheiros, e está para em um destaque do segundo turno. Um simples destaque no segundo turno. Se eu quisesse ter pautado essa PEC, era a maior pressão que tinha. Só votar esse destaque ia ser uma quebradeira generalizada. Então é uma injustiça muito grande isso que colocam com relação a pauta bomba. Qual foi o grande problema do confronto que eles falam que é pauta bomba pra eles? Redução da maioridade penal? A PEC da terceirização? PEC, não, o projeto de terceirização de mão de obra. Esses foram os dois embates que eu tive, e que eles acham que isso é pauta bomba, porque eles eram contra a redução da maioridade penal e eles eram contra a terceirização de mão de obra. Mas depois quando o Michel Temer foi presidente se aprovou com a chamada reforma trabalhista. E ainda te digo mais, no projeto, nesse projeto da terceirização de mão de obra, a Dilma pessoalmente veio me cobrar por que a Petrobras foi retirada. E aí, eu disse porque foi votada. A sua base não votou. No outro dia, ela foi para a rua em um 1º de maio, para criticar o projeto como um todo, porque era a pauta do PT. Ela foi obrigada a aderir à pauta do PT, de ser contra. Mas para mim, no particular, ela queria votar e ainda reclamou do que não votou. Então, são circunstâncias que as pessoas precisam conhecer o que aconteceu para a gente saber efetivamente quem tem razão.

O senhor mencionou que é muito complexo que um presidente da Câmara, uma vez apoiado pelo governo, tenha independência. Essa condição de independência existe na relação entre Arthur Lira e Bolsonaro?

Eduardo Cunha Eu acho que sim, porque o Arthur Lira, na realidade, ele foi apoiado pelo governo, mas ao mesmo tempo que ele foi apoiado pelo governo, ele tinha uma base. Olha a situação como é completamente diferente. A Dilma tinha uma base no seu primeiro mandato que era composta pelo PT, pelo PMDB, que tinha o seu vice-presidente da República, e pelos partidos que foram para sua coligação na reeleição – e não foram poucos – o PP, o PL, o Pros… Um monte de partido lá. Ela tinha a maioria parlamentar na própria coligação da sua reeleição. E aí, ela chega na primeira votação que tem e isso foi reduzido a 130 deputados. O Arthur Lira, não. O Bolsonaro não tinha maioria parlamentar. E o Arthur Lira era líder de um bloco que deu momentaneamente uma maioria, um apoio para salvar, de uma certa forma, o governo sobre a gestão do Rodrigo Maia que tava fazendo uma política de, aí sim, de pautas bombas. Você vem falar de pauta bomba minha com a Dilma, tem que ver as pautas bombas que o Rodrigo Maia colocou para Bolsonaro em nome da pandemia. Como a história da indenização de estados e municípios que, se fosse o que o Rodrigo Maia colocou, tinha sido no mínimo o dobro do que foi dado. E, no entanto, os estados e municípios aí estão conseguindo aguentar o negócio do combustível porque ficaram com tanto dinheiro que foi transferido pela União, tanto desperdício que foi colocado ali que só aumentou a nossa dívida pública... Aquilo sim foi pauta bomba. Toda hora era uma pauta em nome da pandemia que dava despesa para o país. Até o próprio auxílio que foi dado, que começou como R$ 200, elevaram R$ 500... Foi tudo, tudo pauta bomba. Aí, com eles, não foi pauta bomba. Comigo, qualquer coisa era pauta bomba.

O Arthur tinha uma identidade completamente diferente, completamente desconectada do Bolsonaro, mas ele fez esse agrupamento dar o apoio para tentar salvar o Bolsonaro do Rodrigo Maia. E o que aconteceu? Na hora que o Arthur vai enfrentar o Rodrigo Maia, que é quem tava causando todos os problemas com o governo, eu diria o seguinte, para o Bolsonaro só o Arthur ganhar já era motivo de alívio, de respirar, porque se o Arthur não ganhasse, ia ser o caos. Então, é um pouco diferente. O Arthur não foi construído com o apoio do governo, o Arthur é que deu todo o apoio ao governo e recebeu em retribuição ao que ele fez. O apoio que, mesmo que não apoiasse, eu acho que ele ganharia do mesmo jeito. Então, é diferente a forma, entendeu? Por isso é que eu acho que ele tem independência e tem autoridade.

Ao senhor é atribuído o fortalecimento desse grupo que comumente se chama de centrão. Como foi esse processo de reorganização?

Eduardo Cunha É um pouco diferente daquilo que está sendo colocado hoje como centrão do que eu tinha naquela época quando foi construído por mim. Na verdade, não foi construído só por mim, não. Foi construído por mim e pelo Henrique Alves, o idealizador de verdade foi o Henrique Alves, que era o presidente da Câmara. E já o fez visando justamente o processo de sucessão dele. Você tinha ali naquele momento os partidos que estavam na base do Governo da Dilma insatisfeitos e os partidos de oposição, todos eles, uma parte da oposição, o PSDB, o Democratas, o Solidariedade, naquele momento, estavam de certa forma reféns do que tava acontecendo.

Nós fizemos um blocão, o nome inclusive não era centrão, era blocão. O que era o blocão? Era a reunião dos partidos da base, com partidos de oposição para em votações eventuais a gente ir junto. E foi assim que aconteceu. Tinha coisas que a gente não ia junto, a gente ia até um certo momento e a gente combinava o que que ia faze. E por que isso? Porque os partidos da base da Dilma estavam sendo sufocados, os parlamentares nas suas bases, pelos deputados do PT. O que estava acontecendo, de uma certa forma, gerou a perda da base de apoio da Dilma, gerou inclusive o fato do Congresso estar com aversão ao PT. Vou te dar um exemplo: chegava um deputado em Minas Gerais, que tinha uma base num município de Minas Gerais. Ia um deputado do PT, invadia o município e tentava tomar a base cheio de coisas da máquina que pertenciam aos Ministérios que estavam com o PT, notadamente educação, saúde… Chegava lá com dinheiro e tirava um voto do deputado. Então, havia uma revolta com as benesses da utilização do governo do PT para esses parlamentares. Foi isso que gerou a iniciativa desse blocão.

O blocão era uma resposta. Mas quando esses partidos participavam do blocão, o objetivo era dar um freio, era impedir que o PT fizesse o que tava fazendo nas bases dos parlamentares. E para isso eles tinham que se reunir. Qual era a forma de resolver isso? Era dar resposta no voto. Era para derrotar o governo mesmo, em alguns momentos. Para a oposição interessava derrotar o governo de qualquer maneira.

Esse blocão virou o embrião da candidatura que ia ser a sucessão do Henrique. Até porque o Henrique, nesse momento que a gente formou, já tinha definido que iria ser candidato a governador e não ia disputar a eleição. Ele falou que isso ia ser a base para uma candidatura para enfrentar o PT, para não deixar o PT ser presidente da Câmara. Essa que era a verdade. Aí entra o conjunto, aquele que conseguir se sobressair é o que vai ser o candidato, e acabou que eu me sobressai. Essa é a origem de todo o processo. Por isso que eu tinha dificuldades de ser um candidato apoiado pelo PT, porque a candidatura era contra o PT. É isso aqui que as pessoas têm que entender. Era contra a hegemonia que o PT tinha no Parlamento e no governo e que refletia na base e que tinha reflexo na eleição dos deputados. Esse é o problema.

Qual é a diferença entre o blocão e o centrão?

Eduardo Cunha No blocão, juntamos partidos para atuar conjuntamente no Congresso em determinados momentos. O centrão que vocês estão chamando são partidos que não foram alinhados na eleição ao governo, mas que estão reunidos dando o apoio parlamentar ao governo irrestritamente. Não é uma associação momentânea para uma determinada votação, eles fazem parte da base.

Isso se deve ao orçamento secreto? Queria ouvir uma avaliação do senhor em relação às emendas do relator.

Eduardo Cunha Em primeiro lugar não tem orçamento secreto nenhum. Você sabe que tudo que é feito de orçamento é público. Eu, como presidente da Câmara, foi praticamente o meu primeiro ato, continuei uma Emenda que tinha iniciado com Henrique Alves e aprovei o orçamento impositivo para emenda parlamentar. E qual era o objetivo do orçamento impositivo da emenda parlamentar? Era justamente evitar que o governo usasse as emendas como uma forma de trocar o apoio da votação, e só liberar essas emendas de quem tivesse votado favorável. Esse era o ponto. Eu sou parlamentar. Se eu estou com a emenda aprovada no Orçamento, não vou ficar me submetendo a ter que ser chantageado para votar no governo uma matéria que eu não quero, para ter o direito da minha emenda ser liberada. Esse foi o discurso. E esse discurso, inclusive, me ajudou muito a vencer a eleição. Tinha ajudado o Henrique a vencer a eleição. E foi uma briga muito grande. Ao mesmo tempo, começaram também a se tornar impositivas as emendas de bancada. Então, começou a tramitação comigo.

O que que é na prática? O que que acontece? Quando o Bolsonaro assumiu, houve, de uma certa forma, uma concentração de poder do orçamento como um todo na mão do Paulo Guedes. Você acabou com o Ministério do Planejamento. Isso deu um poder ao Paulo Guedes que não liberava os investimentos daquilo que estava aprovado. Você tem que pegar nossa origem. Se você for pesquisar a confusão, ela começa numa emenda do Antônio Carlos Magalhães, que tinha sido aprovada no Senado federal e estava na Câmara, que tornou todo orçamento impositivo. O Brasil é o único país daqueles que a gente pode dizer em crescimento ou desenvolvidos que tem um orçamento, uma peça de ficção como a gente tem. Qualquer parlamento de país desenvolvido gasta 80% do seu tempo simplesmente discutindo orçamento. No Brasil, a gente aprova orçamento na véspera do ano novo, com três parlamentares no plenário. A gente inventa receita para justificar os acordos das despesas que você vai colocar e, depois, no outro dia, o governo começa, vai contingenciar tudo, porque não tem como executar aquilo. Ponto.

É um orçamento autorizativo, então você está na mão do Executivo. E o parlamento nunca quis isso. Essa história do que chamam de orçamento secreto, da emenda de relator, nada mais é do que colocar uma parte do orçamento e impedir o governo de contingenciar ou o governo de não executar. Essa é a verdade.

Eu vou defender sempre o orçamento impositivo como um todo. Isso é que tem que ser. E aí, quando se discute, se exaure o orçamento, vamos sair no tapa no bom sentido para chegar ao orçamento correto, definir as políticas públicas corretas, com as receitas reais para não precisar contingenciar, não inventar receita para lastrear despesa falsa. E aí, a gente obriga a executar esse orçamento e acaba isso tudo.

A gente sabe que, constitucionalmente, a LDO [Lei de Diretrizes Orçamentárias] permite as emendas de relator, ainda que elas sejam para uma revisão e não necessariamente para uma destinação tão profunda de verba. Como o senhor vê a questão da transparência?

EDUARDO CUNHA O problema da transparência é uma consequência natural. Claro que tem que ter transparência, é óbvio. Tem que ver que mecanismo de transparência que não está dado, que tem que ser corrigido. Ninguém vai defender a falta de transparência e execução orçamentária. Qualquer um que defender isso está sonhando. Tem que se corrigir, isso é óbvio.

Muitos petistas falaram que o senhor só aceitou o pedido de impeachment em dezembro de 2015 por vingança, por falta de apoio no Conselho de Ética. Queria que o senhor comentasse isso e contasse algum tipo de bastidor daquela época.

Conto com o maior prazer. A sua pergunta é excelente para mim, não pense você que eu estou preocupado. E vou ter que voltar a fazer remessa ao livro. Claro que isso coloquei no meu livro. Primeiro lugar é o seguinte. Vamos falar o português claro, de nada adiantava eu vencer no Conselho de Ética. Quem ia decidir era o plenário, porque o voto do Conselho de Ética tem que ser confirmado pelo plenário. Se o conselho pede sua cassação, tem que ter 257 votos para aprovar. Se o conselho vota pela sua não cassação e o plenário rejeitar por 257 pontos esse relatório, você está cassado do mesmo jeito. Então, se alguém achou que eu ia estar preocupado com a votação do conselho de ética está sonhando, porque não conhece a casa ou não conhece o regimento. Alguém achou que o PT ia me apoiar no plenário? Isso é um sonho de uma noite de verão. Alguém achou que 3 meses depois, 6 meses depois, ele me apoiaria? É óbvio que não iria. Então, essa história é balela, conversa furada.

Eu autorizei a abertura do processo impeachment no dia 2 de dezembro de 2015. E por que que autorizei nesse dia? Eu autorizei nesse dia porque o Congresso, para surpresa minha, acabou levando para votação o projeto de PLN, de mudança do Congresso Nacional da meta fiscal e ia ser aprovada. Se ele fosse aprovado naquele dia, certamente depois eu não teria condições jurídicas, inclusive, de aceitar um impeachment, se virasse ali, porque o crime estaria de certa forma sanado. Aqueles decretos passariam a ser legais, mesmo que ela [Dilma] tivesse praticado o ato antes, a discussão era outra. Quer dizer, eu perderia o discurso, a garantia que ela praticou o crime de responsabilidade, mas se você pegar o meu livro, você vai ver que do feriado de 2 de novembro, ou seja, um ou dois dias antes de eu sair para viajar de volta do feriado 2 de novembro, eu assinei a abertura do processo impeachment e entreguei para o secretário geral da mesa da Câmara, o Silvio Avelino, e falei "guarde no cofre da Câmara, se acontecer alguma coisa comigo, se eu for afastado na calada da noite com uma decisão maluca do Supremo". Não quero entrar no mérito que eu estava sofrendo ameaças, estava, mas isso daí eu não quero nem dizer para não parecer sensacionalismo. Tinha várias ameaças anônimas lá que a segurança da Câmara recebia… Enfim, mas "se acontecer alguma coisa comigo, publica".

Se 33 dias antes eu já tinha assinado o processo de impeachment, por qual razão eu teria feito aquilo baseado na perda de apoio do PT? Não, se o Congresso não tivesse aprovado aquele dia, eu não ia fazer aquele dia, porque eu não queria fazer antes do fim do ano. E por quê? Eu não queria interromper esse processo pelo recesso. Eu queria fazer na volta do recesso. Essa era a minha intenção.

Recentemente, o ex-presidente Temer deu uma entrevista ao UOL em que ele fala que a ex-presidente Dilma Rousseff é “honestíssima”. Houve uma decisão durante o impeachment em que os direitos políticos dela foram preservados. O senhor corrobora com essa tese? Como vê essa declaração do Temer e a participação dele no processo de impeachment?

EDUARDO CUNHA Primeiro lugar, a opinião do Michel sobre a Dilma… Você não pode acusar ela de desonesta se ela tem uma condenação transitada em julgado. Como eu disse, todo mundo é inocente até provem o contrário. A Constituição dá o direito da produção de inocência a todo mundo, inclusive a ela, Dilma. Então, não entro no mérito da opinião dele.

Com relação a por que o Congresso decidiu preservar os direitos políticos dela, aquilo foi um rearranjo político, violentando a Constituição e que eu tenho certeza, se ela tivesse ganho a eleição de senadora em 2018, aquilo seria derrubado no Supremo. Ela perderia o mandato, ela não conseguiria manter o mandato. Aquilo não foi julgado pelo Supremo. Aquilo ali foi uma decisão política que foi acatada pelos julgadores naquele momento que eram os senadores e que seria derrubada. Como ela não ganhou a eleição, o pessoal deixou. Tinha contestação. Inclusive a minha filha fez uma contestação à impugnação do registro da candidatura dela com base nisso.

Com relação à participação do Michel Temer, eu esclareço ela muito bem no livro. Se você ,e perguntar se o Michel me fez alguma pressão para aceitar o impeachment, não, não fez. Nunca me fez e não me pediu. Se você perguntar se o Michel trabalhou para que o impeachment acontecesse, trabalhou, articulou. Porque isso aí eu até cito um exemplo do Ciro Nogueira: ninguém tira presidente, você põe presidente. Por que o Michel Temer não sofreu impeachment? Porque não tinha presidente pra botar. A gente botou um presidente, não tirou um presidente. Na concepção da classe política botou um presidente, botou Michel. Então, Michel de uma certa forma, disputou uma eleição direta no impeachment dela, não há dúvida disso. E ele articulou para isso, brigou, lutou, pediu voto, se comprometeu, isso não há dúvida. Embora ressalve, ele não pressionou o processo de impeachment em nenhum momento. Ele não teve a iniciativa que eu fizesse o processo de impeachment. A decisão e a responsabilidade são única e exclusivamente minhas, mas que ele trabalhou muito para ter o impeachment, trabalhou.

Na votação do impeachment, as palavras que a gente mais ouviu foram “Deus”, “família”, “pátria”. Qual foi o significado daquelas expressões na votação, olhando para o futuro do país? O senhor acha que Deus teve piedade da nação considerando o que veio depois?

EDUARDO CUNHA Primeiro lugar, eu como evangélico, acredito que tudo que acontece na nossa vida é pela vontade de Deus, se não fosse pela vontade de Deus, eu não estaria aqui, não falava com você, não caia um fio de cabelo da minha cabeça que não seja pela vontade de Deus. A Dilma foi presidente pela vontade de Deus e pela vontade de Deus ela caiu. Isso aí é fora de qualquer discussão na minha parte. Mas o que acontece é o seguinte, você se for ter em mente aquilo que aconteceu na sessão, você tem que voltar na mente daquilo que aconteceu no impeachment do Collor.

No impeachment do Collor, foi isso também. Era uma véspera de eleição, ainda muito mais grave. Era uma véspera de eleição municipal e virou um palanque político de todo mundo que estava lá. O que aconteceu no impeachment da Dilma? Houve uma pressão muito grande para que todo mundo pudesse ter uma fala, e a gente fez um acordo ali que eu daria dez segundos para cada um falar alguma coisa. E obviamente ninguém cumpriu, talvez só eu. A minha fala durou dez segundos. Então, muitos parlamentares são evangélicos e realmente a bancada, digamos assim, os parlamentares evangélicos são frontalmente adversários do PT e das posições do PT. Então, é natural que eles expressassem sempre com menção a Deus. Aqueles que não são evangélicos ou pelo menos não militam em cima dessa linha vieram com outras palavras.

Eu sou parlamentar evangélico e efetivamente eu usei a palavra de Deus. Você acha que Deus teve misericórdia dessa nação? Não tenho a menor dúvida. Se Deus não tivesse misericórdia da nação, nós estaríamos com o PT até hoje, essa que é a verdade. Espero que continue Deus tendo misericórdia dessa nação não permitindo que o PT volte.

Naquele mesmo áudio do Sergio Machado com o Romero Jucá, do “grande acordo nacional, com o Supremo, com tudo”, ele compara o Temer ao senhor. Na sua opinião, houve esse acordo nacional?

EDUARDO CUNHA Se tivesse havido, teria dado no que deu? Claro que não houve. Ninguém tem condição de fazer acordo até porque o Supremo, naquele momento, estava agindo sempre muito em função da repercussão midiática dos fatos, e não com base na legislação. Hoje o Supremo, ao mesmo tempo que ainda haja críticas, o Supremo está agindo agora de uma forma diferente, e consequentemente colocou freio nesse processo.

Não há acordo com o Supremo. A gente consegue fazer acordo com 11 cabeças daquelas que a cada dia que passa são cada mais ilhas próprias, que uma não penetra na ilha do outro? Isso, aliás, é uma coisa que tem que ser revisitada. Não pode decisão monocrática, suspender lei. Decisão monocrática de impedir política pública, de revisar política pública, de impor política pública. Tudo isso são coisas absurdas que têm que ser revistas pela legislação. Você acha que se tivesse havido esse acordo eu tinha sofrido o que eu sofri?

Transferindo para o momento atual, o senhor apoia a reeleição do Bolsonaro? Qual é a avaliação do governo até aqui?

EDUARDO CUNHA Eu apoio a reeleição do Bolsonaro e apoio por duas razões muito claras, eu sou conservador de costumes e sou liberal na economia. O Bolsonaro representa isso. O Bolsonaro, claro que tenho divergência sobre muitas coisas que podem estar acontecendo, ou do próprio Bolsonaro, mas a política, o apoio político, você nunca vai ter alguém que expressa 100% você. Se nem num casamento você tem no seu companheiro ou na sua companheira alguém que é 100% igual a você, não vai ser na política que você vai encontrar. Então, por que você mantém um casamento? Por que você se casa? Você mantém um casamento porque o conjunto da obra, para você, é mais relevante. Os acertos são mais relevantes do que os defeitos que você pode atribuir ou que os outros também atribuem a você.

Não significa o fato de eu apoiar que eu integralmente concorde com tudo, mas a posição que nós temos hoje de ele ser conservador nos costumes e liberal da economia é a opção política que eu quero para o país. Analisar o governo Bolsonaro, eu acho que é uma análise muito prejudicial, porque ninguém viveu o que o Bolsonaro está vivendo. Dois anos e meio de pandemia, nós temos quase um ano de guerra… Me diz qual foi o governo que viveu esses dois momentos em conjunto. E mais: ainda assim, se você for comparar o governo do Bolsonaro com o último governo do PT, que é o da Dilma, ela perdeu 8% do PIB, perdeu 10% da renda dos brasileiros. E sem pandemia, hein? Eu costumo dizer que a Dilma, sem pandemia, perdeu isso. Imagina a Dilma com pandemia. A Dilma por si só já era uma pandemia. Imagine ela com pandemia.

A gente tem que fazer as comparações pelos resultados. Não adianta só fazer comparação por aquilo que a mídia divulga ou pelo que a mídia quer conectar. Eu discordo frontalmente dessa perseguição da mídia contra o Bolsonaro. Eu acho que tentar atribuir o Bolsonaro como golpista ou tentativa de romper a democracia... Estão colocando de uma maneira que é como se o eleitor, se votar em Bolsonaro é antidemocrata. Você tem que votar no Lula pra ser democrata. Mais ou menos assim.

Mas, antes de Bolsonaro, quando o senhor viu um presidente da República xingar diretamente ministros do Supremo? Ou colocar em xeque para autoridades nacionais e internacionais o próprio sistema de votação do país?

EDUARDO CUNHA Qualquer um tem o direito de falar o que quer e se responsabiliza pelo que fala. Ninguém está dizendo que você deve falar o que quer e não ser responsabilizado. Bolsonaro fez uma pregação enorme contra a vacina, não tomou a vacina, mas os brasileiros tiveram acesso à vacina sem nenhuma sabotagem do Bolsonaro. Aliás, quem começou a vacinar foi o Bolsonaro, não foi o Doria com a CoronaVac. Quando o governo brasileiro se associou à Astrazeneca, que foi a vacina que eu tomei, por exemplo, ela veio para o governo brasileiro no estudo quando não tinha vacina desenvolvida. E o governo matriculou, gastou dinheiro, entrou no estudo, para ter o direito à vacina da Astrazeneca. Bolsonaro pode falar o que ele quiser, eu não preciso concordar com o que ele fale. Eu quero concordar com a sua ação.

Então, se ele, por ventura, está xingando A ou B ou C, está no nível de revolta, vou para arquibancada do jogo de futebol, eu vou pra arquibancada assistir o jogo do meu Flamengo, às vezes eu xingo o juiz também. E faz parte do jogo. Isso aí é outra coisa. Cada um fale o que quer, cada um se responsabiliza.

A urna pra mim ela é segura. Eu fui eleito por ela, eu não tenho nenhuma dúvida que a urna foi correta na minha eleição. Agora, isso não quer dizer, não dá um cheque em branco para autorizar que a urna vai ser segura a vida toda, até porque a sua casa tá bem trancada hoje, mas o ladrão entra amanhã. E se o ladrão entrar amanhã, a casa deixou de ser segura. Então, por que que eu vou fechar a transparência com relação ao processo eleitoral? Por que eu tenho que ficar parado no discurso que a urna é segura? Quem diz que a urna não é segura é antidemocrata, é golpista, é porque quer dar um golpe no país, é por que não aceita o resultado, é por que está afrontando a democracia, questionando a urna? Eu não acho isso.

Eu acho que, pelo contrário, se eu tenho uma urna, eu defendo a urna, e eu defendo que a cada dia que passe ela tenha mais transparência para que não se tenha dúvida. A pior coisa que tem é o que está acontecendo hoje. Uma parte da sociedade está com dúvida, e essa parte da sociedade não vai se satisfazer com a simples palavra do ministro dizendo que a urna é segura.

Qual é o ato que ele está praticando de antidemocrático por querer questionar uma urna? Você sabe que, semana passada, eu estava no interior de São Paulo e fui discutir defendendo a urna lá com o um homem lá e o cara vira pra mim e diz "mas me diz um país desenvolvido que tem uma urna dessa?". Eu fiquei sem resposta, porque não tem mesmo.

Nos EUA, que é muito descentralizado, eles têm votação eletrônica.

EDUARDO CUNHA Tem votação eletrônica, mas tem a cédula lá que o cara preenche. E a cédula fica. Esse é o problema. O cara pode conferir. E tem reportagem. O cara me perguntou e eu falei que não sabia responder. E ele tem razão, ele realmente tem razão. Então, a dúvida está na cabeça do eleitor. É óbvio que tem possibilidade de amanhã acontecer alguma coisa. Eu não estou dizendo que aconteceu, nem estou dizendo que vai acontecer. Eu estou dizendo que pode acontecer. Aí eu fico vendo essa balela de criticar as Forças Armadas. Quem chamou as Forças Armadas para participar? Foi o Bolsonaro que colocou ou foi o TSE [Tribunal Superior Eleitoral] que convidou as Forças Armadas? Queriam tirar as Forças Armadas da fotografia para mostrar que estavam aderindo ao processo, dando legitimidade, quando eles foram contestar, se irritaram.

Há cientistas políticos que atribuem Bolsonaro a um populismo de extrema direita. O senhor não acha que pode estar lidando com um político da extrema direita?

EDUARDO CUNHA Então, o outro é um populismo de extrema esquerda, porque nós temos aí o Lula, que implementou várias políticas populistas e que está pregando o aumento, a continuidade dessas políticas, ao mesmo tempo está pregando a regulação e a censura da mídia. Então, essa coisa é muito complicada, a gente tem que analisar os dois lados. Por que só se contesta o Bolsonaro por um aspecto e não se contesta por outro? Por quê? Eu vou te responder a minha opinião. A rejeição ao Bolsonaro está se transformando, para uma parte da sociedade, patrocinada pela mídia, em aversão, eles estão tentando transformar o Bolsonaro, transformar a rejeição em aversão. Aceitam qualquer coisa que o PT faça para poder ficar livre do Bolsonaro. "Depois nós vamos cuidar do PT, mas por enquanto acho melhor cuidar do Bolsonaro, porque o Bolsonaro para gente é um mal maior". Então, não é pelo contorno ideológico que o Bolsonaro represente de direita, é porque é o Bolsonaro, esse é o problema. A aversão que estão tentando transformar é a figura do Bolsonaro e não a ideologia, o que ele representa, o que ele deixa de representar. Porque se for discutir sobre esse lado, o que o PT prega é muito mais grave. Ou você acha que regulação de mídia é o quê? Regulação de mídia social é o quê? Isso é censura. Eu sou um dos maiores críticos da imprensa que tem e fui um dos maiores defensores de evitar a regulação de mídia.

Eu sou adepto àquele ditado, contra a má imprensa, mais imprensa e vambora. A gente enfrenta. Eu processo quando me xingam, falam mentiras. Isso é da regra do jogo, é meu direito. Agora, nunca impedi ninguém de falar. Nunca fugi de falar com quem quer que seja. O Lula, não. Ele defende um lado. Então, eu acho que esse lado aí está um pouco deturpado pelo processo eleitoral. Você pode colocar que o Bolsonaro conseguiu é dar uma cara à ideologia de direita, porque antes se falava que se tinha ideologia, tinha que ser de esquerda. Se o cara era de direita era fascista. Esse estereótipo é que não dá para aceitar mais, só porque o cara está na direita, o cara é fascista, isso não dá. E o Bolsonaro deu uma cara à direita.

Mesmo que o Bolsonaro, por si só fosse isso que você está falando, isso não significa que o governo dele ou a sociedade debaixo do governo dele vai se tornar extremista. Porque para isso tem o Congresso pra ponderar, para isso tem a sociedade. Da mesma forma quando o Lula foi tentar fazer a regulação da mídia, teve gente para atuar para impedir, inclusive eu. Então, ele não conseguiu impor sua pauta de extrema esquerda. Nós não vamos deixar. Se o Lula for tentar liberar o aborto, como ele prega, nós não vamos deixar. Então, são circunstâncias que os extremos podem ter as suas ideias ou podem representar os extremos, mas para isso existe o centrão, ou o centro, traduzido do ponto de vista da sociedade, e não a conjunção única e exclusivamente que é do parlamento, mas esse centro atua para ponderar e moderar os extremos. Essa é a minha visão.

O senhor acha que a direita conseguiu se assumir graças ao Bolsonaro?

EDUARDO CUNHA Eu acho que a direita conseguiu ser vista como uma opção política em função da atuação do Bolsonaro. O que acontece é que justamente pelo fato de você só considerar quem tinha ideologia quem era de esquerda, e quem não era como fascista, as pessoas tinham vergonha de assumir que eram direita. Porque se eu sou de direita eu sou fascista, ou vou ser considerado fascista. E quando o cara lembra de fascismo, ele lembra de Hitler. Então, é uma associação. Era uma coisa muito depreciativa. Não é assim que funciona, não é assim que pode funcionar.

O senhor optou por um partido, o PTB, que tem uma liderança histórica do Roberto Jefferson, que tem cumprido uma série de medidas cautelares por conta do que ele vem falando. E ele tem falado muito sobre um risco comunista no Brasil. O senhor concorda com o que ele tem falado? Sente-se bem representado pelo partido?

Eu me filiei ao PTB por três grandes motivos. Primeiro lugar, o PTB é o primeiro partido ao qual eu me filiei na vida. Me filiei em 1982 ao PTB. Eu estou retornando ao PTB na verdade, eu não estou vindo pro PTB agora. Em segundo lugar, o PTB prega, pelo menos no seu estatuto, a concepção macro daquilo que eu concordo. Eu sou conservador nos costumes e liberal na economia. Do ponto de vista de afinações ideológicas, da posição do PTB, eu me considero dentro dela. Se você considera que ser conservador de costume e ser liberal de economia é isso, então eu sou. Agora, o PTB tem outras posições ou pelo menos é mais complexo na análise de algumas dessas posições que não necessariamente seja aquilo que eu possa pensar como um todo, mas no macro, eu concordo com o PTB, senão eu não estaria lá.

A razão pelo que eu me filiei, além de eu concordar com parte disso, é porque eu queria um partido que estivesse na base do Bolsonaro. Se eu ia defender a reeleição do Bolsonaro efetivamente, eu não iria para um partido que fosse ser contrário à reeleição do Bolsonaro. Esse era um fator fundamental. Ainda tinha um problema de conjunção política de formação de nominatas para poder. Infelizmente esse é nosso sistema político e eu defendo a mudança drástica pelo aquilo que eu falei antes, de você não lembrar em quem vota para deputado. Tem que vir um sistema distritão. São Paulo elege 70 deputados tem que ser os 70 mais votados. Daí eu fico no partido por minha opção e não por conjunção de nominatas. Então, a conjunção de nominata foi um dos fatores.

Eram os três pontos, eu concordo com a base do PTB, estava incluído dentro da minha profissão, que eu defendo, eu sou conservador de costume, eu sou um grande defensor contra o aborto e o PTB defende fortemente essa bandeira. Sou liberal de economia. O PTB está na base do Bolsonaro, e o PTB me deu condição de poder formar uma nominata que me permitisse viabilizar a eleição. Então, são fatores que levam à escolha. Eu estou perfeitamente comportado. E não vim para o PTB, retornei ao PTB.

O senhor é um político ligado aos evangélicos. Por que acha que a bancada evangélica ganhou tanta força nos últimos anos?

EDUARDO CUNHA A discriminação que a mídia faz com a bancada evangélica, porque você, quando é deputado evangélico, o cara é deputado evangélico. Agora, um deputado espírita, alguém escreve deputado espírita? Deputado católico, alguém escreve deputado católico? Um deputado ateu, alguém escreve deputado ateu? Nunca. Começou justamente por causa da discriminação. Ela [banca evangélica] cresceu por dois motivos: porque cresceu a população evangélica e porque cresceu o engajamento da população evangélica em eleger representantes. Ela ganha relevância na medida em que ela cresce, e na medida que ela passa a ter influência.

Fonte:  https://www.nexojornal.com.br/entrevista/2022/12/27/%E2%80%98Dilma-foi-presidente-e-caiu-pela-vontade-de-Deus%E2%80%99