Por Gabriela Leite*
A vitória de Lula foi o primeiro passo para o início da recuperação das políticas públicas e sociais que podem resgatar o Brasil do fundo do poço para o qual Bolsonaro o estava encaminhando. O trabalho será árduo e espinhoso, mas incontornável e possivelmente muito instigante. É o que ficou claro na entrevista que Sônia Fleury, cientista política e figura central na Reforma Sanitária, deu ao Cebes Debate na última segunda-feira.
Sônia começa sua fala analisando o voto em Lula e em Bolsonaro, nas eleições de 2022. Há recortes muito claros, que foram captados pelas pesquisas: de gênero, em que mulheres majoritariamente escolheram Lula; de raça, em que brancos votaram em peso em Bolsonaro; de classe, que fez com que aqueles que ganham até dois salários mínimos rejeitassem o governo atual; regional, que demarcou o Nordeste como garantidor da vitória de Lula. Mas há outros segmentos que devem ser melhor analisados para entender as complexidades da realidade brasileira, como o de pessoas que ganham entre 2 e 5 salários mínimos. Há de se considerar também a influência das igrejas evangélicas que carregaram votos para o projeto de destruição de Bolsonaro – inclusive de mulheres negras.
Agora derrotado, o projeto do atual governo ainda encontra ecos na população. Sônia frisa que é a primeira vez que a ultradireita consegue chegar ao poder por meios democráticos – e sua reeleição não aconteceu por pouco. Outra característica desse neofacismo brasileiro é sua capacidade de levar pessoas às ruas, além de ser muito forte nas redes sociais. Esse fenômeno precisa ser avaliado com calma, para que possamos pensar nas táticas e estratégias que devemos seguir daqui em diante.
Para analisar e combater o avanço da ultradireita, é preciso olhar para sua aliança de ocasião com o neoliberalismo, que foi essencial para abrir espaço para erguê-la. A princípio, reflete Sônia, parecem pensamentos em sentidos opostos: o liberalismo quer que os desejos das pessoas sejam capturados pelo poder econômico, para transformarem-se em consumo; já a ultradireita reacionária busca uma coação dos desejos e controle da população. Mas eles se encontram em um ponto crucial: o de rejeição ao Estado que promove justiça social e diminuição da desigualdade. Nesse casamento do neoliberalismo com a ultradireita, o Estado deve servir apenas como poder coercitivo e produtor de uma economia financeirizada – a liberdade do todos contra todos.
Também entra na conta do neoliberalismo econômico, que recrudesceu a partir da crise de 2008 com as políticas de “austeridade” mundo afora, o desencanto com a economia e a descrença na democracia e nas instituições. O aumento da desigualdade, cada vez mais brutal, a precarização do trabalho e a falta de perspectivas abriram uma brecha para o neofascismo eclodir. Com um componente essencial: a internet centrada nas redes sociais, que passam uma falsa sensação de promotoras de debate público, quando são, na verdade, ultracentralizadas e massificantes.
O SUS pode estar no cerne dessa reconstrução de uma sociedade que não seja formada por consumidores, mas por comunidades de cidadãos. Porque seu projeto é radicalmente contrário à lógica neoliberal da liberdade individual. Para Sônia, “O SUS é a política que vai mais fundo na sociedade brasileira para construir uma materialidade para a igualdade, e isso é incompatível com esses valores”. Mas, para que ele possa fazer essa transformação, é preciso que seja financiado adequadamente e alcance de forma justa todos os brasileiros. Oferecer, via SUS, qualidade e um atendimento acolhedor, pode plantar uma semente da transformação da cultura política tão necessária.
Mas há outras sementes que também já começam a brotar. Para Sônia, a eleição de figuras importantes de movimentos sociais, como do MST, dos povos indígenas e do movimento negro, pode representar uma mudança significativa no Congresso Nacional formado por homens brancos. O movimento dos sujeitos periféricos, para ela, tem enorme importância e capacidade de transformação. Mesmo com o avanço do bolsonarismo, o feminismo e o movimento negro nunca estiveram tão fortes como hoje. Sônia finaliza, ao pensar nas possibilidade de criação de espaços coletivos para a transformação da sociedade: “Queremos mais amor e mais capacidade de nos alegrarmos, estarmos juntos. Criar o Comum como semente de enfrentamento da apropriação privada do capitalismo”.
* É editora, designer e produtora audiovisual de Outras Palavras.
Fonte: https://outraspalavras.net/author/gabrielaleite/
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