Filósofa, que morreu em 1943, deixou uma dura lição aos modernos em seu último livro.
Concebido em Londres, como se a autora estivesse em uma espécie de febre extremamente lúcida (ela morreria de tuberculose poucos meses depois, aos 34 anos de idade), seu subtítulo diz tudo: é um “Prelúdio a uma Declaração de Deveres com o Humano”. O fundamento de uma vida social correta, segundo Weil, é compreender antes de tudo que o ser humano precisa ter direitos, mas também respeitar e praticar os deveres em relação aos seus semelhantes – o que vai contra a base do pensamento iluminista que moldou o debate público dos nossos dias.
É de se imaginar o que aconteceria se Weil conseguisse levar adiante esse projeto filosófico. Sem dúvida, ela seria superior – em termos de densidade conceitual – a uma Hannah Arendt, por exemplo, e seria comparável ao que Edith Stein conquistou com sua tentativa bem-sucedida (porém pouco conhecida do grande público) de reestruturar a fenomenologia de Edmund Husserl depois das inovações temerárias feitas por Martin Heidegger.
Notória ao ser considerada por diversos intelectuais católicos (entre eles, Augusto del Noce) como uma espécie de “santa secular” – pois teve uma compaixão genuína com os humilhados e os ofendidos da sociedade industrial –, Simone Weil foi capaz de unir, durante sua insólita trajetória, tanto o cuidado com quem trabalhava nas fábricas e nos campos (por isso era chamada de “socialista” pelos seus oponentes e até mesmo pelos colegas) como ter a preocupação de adquirir uma prática ascética que a levaria a uma posterior (e polêmica) conversão religiosa do judaísmo ao catolicismo, sustentada por uma visão mística que ultrapassava o cotidiano atribulado do século 20 (não à toa, também por causa disso, foi apelidada de “direita” e de “reacionária” por seus exegetas rabugentos).
Sua biografia foi o exemplo perfeito do que é viver na arena das polarizações políticas – e sofrer brutalmente com elas. Obviamente, seus escritos seriam o reflexo desses paradoxos e guardam um tom agudo de incompletude. Mas também são plenos de intuições brilhantes, densas e compactas, com uma inteligência que ilumina cada página. Antes de O Enraizamento, ela já havia redigido opúsculos memoráveis (e que ficaram guardados entre seus amigos mais queridos enquanto estava viva ou então foram publicados em periódicos de circulação restrita) – entre eles, Reflexões sobre a Liberdade e a Opressão; Sobre a Supressão dos Partidos Políticos; Ilíada, ou: o Poema da Força; e os aforismos pascalianos que formariam o póstumo O Peso e a Graça, lançado três anos depois do seu falecimento, em 1947
Portanto, não foi um livro pensado somente sob a força das circunstâncias históricas. Há uma longa e laboriosa meditação em cada linha sua. Para Weil, o termo “enraizamento” só pode ser compreendido adequadamente por meio do seu contrário – o “desenraizamento”, que, no caso, é a principal doença do homem moderno. Trata-se, na verdade, da desconexão entre diversas “exigências da alma” – a ordem que se comunica com a liberdade, a qual precisa da obediência, da responsabilidade, da igualdade, da hierarquia, da honra, do castigo, da liberdade de opinião, da segurança, do risco, das propriedades privada e coletiva e, last, but not least, do amor à procura pela verdade.
A lista é citada aqui por extenso porque é, em si mesma, uma possibilidade de cura para a polarização política que infectou o nosso presente. Mas Weil não está contente com essa busca pela conexão entre esses itens. Ela não é apenas uma “matemática da alma” (uma forma de equipará-la ao sucesso de seu irmão André, um cientista revolucionário que resolveu os mais intrincados problemas da álgebra). É sobretudo uma filósofa mística arraigada à vida concreta, o que é uma raridade. Assim, logo a seguir à conceitualização do que seria essa moléstia fundamental que nos incomoda, ela passa a descrever o que seria o desenraizamento no campo, nas fábricas e na nação francesa. É um diagnóstico implacável: a França se perdeu por completo porque, antes de se preocupar com a essência da pátria, ela deixou que o Estado moderno, com o poder da técnica, invadisse a consciência do cidadão, aviltando a sua coragem e a sua honra – até este último permitir que Hitler caminhasse tranquilamente pela Avenida Champs-Elysées sem nenhuma reclamação dos gauleses.
Deve-se ressaltar que Weil não é uma nacionalista. Pelo contrário: a nação comentada no texto é a do espírito – e o Estado moderno deseja destruí-la sem nenhuma misericórdia. O que ela propõe é um retorno a uma pátria que é mais próxima da comunidade orgânica, onde o operário e o camponês são aliados dos artesãos e dos estudiosos que reconhecem entre si onde estão os fragmentos dispersos do real.
Seria um sonho, uma utopia, um platonismo para os trabalhadores e os necessitados? Com certeza. Mas é também a abertura para outro tipo de política que, se praticada com o mínimo de honestidade nos nossos dias, também não deixa de ser uma resposta para a medíocre rinha de galos que impulsiona a sociedade atormentada pela “pós-verdade”.
O enraizamento se encontra especialmente na consciência trágica de que a modernidade está cindida entre uma “mentira coerente” (a da tecnologia estatal que desumanizou o homem por meio da idolatria à ciência) e uma “mentira incoerente” (a do totalitarismo político que resultou em Hitler, Stalin e Mussolini). Para escapar dessa anulação da inteligência, incapaz de lidar com os polos contraditórios típicos da barafunda ideológica, não há outro método exceto dois caminhos insólitos: o primeiro é o completo abandono à Providência divina, permitindo-se que a realidade mostre caminhos intrinsecamente bons, mesmo que o sofrimento humano pareça ser a regra suprema; e o segundo é a dedicação integral ao trabalho físico, justamente para esquecer da dor neste vale de lágrimas, como o centro espiritual para compor o que seria uma vida social bem-ordenada – e, finalmente, restaurar a conexão entre as diversas “exigências da alma” citadas por Weil no início do seu livro.
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A atualidade deste testamento filosófico está no fato indubitável de que vivemos no reino onde a inteligência humana foi anulada. Eis o verdadeiro nome da tal “polarização política”: estupidez criminosa – tanto dos líderes que nos governam como dos conselheiros que os orientam em suas ações (e omissões). É de se perguntar se a insistência de classificar a nossa realidade sob o viés dessa disputa não seria apenas uma forma de disfarçar, tanto para essas pessoas supostamente iluminadas como para o resto da população, que a indiferenciação plena, a suprema igualdade e a simetria absoluta entre aparentes rivais são, no fundo, consequências diretas do desenraizamento vislumbrado em todos os seus ângulos por Simone Weil.
Nesse sentido, não é um exagero incluir Weil na vasta galeria dos gigantes que, com muito esforço, nos ajudam a recuperar o que ainda não foi perdido. Nesse dileto grupo, há os nomes de C.S. Lewis, J.R.R. Tolkien, Eric Voegelin, René Girard, Thomas Mann, e tantos outros que formam uma nau de náufragos e que souberam sobreviver à catástrofe destes últimos séculos. Todos os citados procuraram obsessivamente um fundamento em comum nos seus escritos – e perceberam que ele é a noção aguda de que, na política e nos assuntos humanos, só há espaço para a tragédia.
* Doutor em ética e filosofia política pela USP, é autor de A Tirania dos Especialistas (Civilização Brasileira) ...Doutor em ética e filosofia política pela USP, é autor de A Tirania dos Especialistas (Civilização Brasileira) ...
Fonte: https://www.estadao.com.br/alias/o-enraizamento-de-simone-weil-ensina-combater-a-polarizacao/
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