sexta-feira, 30 de novembro de 2018

Como escutar o outro em tempos de acolhimento e intimidação?

Christian Dunker*

 Resultado de imagem para escutar o outro

Acolher é potencializar a solidão como fonte e origem de toda resistência

Os últimos tempos, pré e pós-eleitorais, marcaram uma mutação expressiva da imagem que os brasileiros tinham de si. Sai o homem cordial e o jeitinho brasileiro, entra o novo tipo de fundamentalismo no qual todos são corruptos e privilegiados até que se prove o contrário. As imagens que temos de nós mesmos são, por definição, encobrimentos narcísicos diferentes do que realmente somos. Imagens dependentes do ângulo que se quer mostrar e das sombras que produzimos para nos proteger de nós mesmos. Aparências são importantes também no sentido simbólico, pois elas retratam nossa relação com a lei. Pense em como nos comportamos diante das “crianças” ou naquele casal em guerra pré-falimentar, mas que gasta suas últimas energias, psíquicas e morais, para manter as aparências. Quando abandonamos o “como se” e o registro da ficção, o que sobra não é a transparência autêntica, mas tão somente nosso desrespeito à lei simbólica.
O sentimento geral de que paramos de nos escutar, de que o debate tornou-se improdutivo e que daqui para frente o que vale é a força ampara-se nestes dois processos: o primeiro fixa a pessoa a uma imagem, depois disso, tudo o que ela disser só confirma a posição na qual ela foi colocada. O segundo exercita a estética tosca da liberalização das aparências, a partir da qual temos a ilusão de que estamos vendo por dentro as entranhas do poder. O ponto de junção entre estes dois processos é esta espécie de nova lei geral baseada na intimidação. Intimidar vem de íntimus, profundo, secreto e privado. Combina-se com intimação, ou seja, convocar o outro a responder. Intimidar é levar o outro ao limite de sua timidez ou reserva, produzir embaraço ou vergonha ou medo. Thyimós, em grego, era este órgão dos afetos, a voz de nossas disposições e incertezas, o lugar onde sentíamos raiva, inveja ou piedade. Neste sentido, intimidar é fazer com que alguém se reduza ao seu próprio timo, e assim escute apenas seus afetos. Sobretudo não exteriorizar mais do que a subordinação imposta pelo outro permite. Em suma, a intimidação é uma forma de silenciamento do outro, um modo de aprisioná-lo a ouvir apenas a sua própria voz, de impotência e constrangimento.
Escutar o outro nestas condições é inverter a intimidação em intimidade. Pensemos no valentão da escola, o protótipo do futuro assediador de maiores. Notemos como sua arte consiste em isolar ainda mais aquele que já se sente isolado, em expor aos outros o fato de que ele é sozinho e, enquanto tal, vulnerável. Em contrapartida, os que pelo silêncio ou pela adesão direta perfilam-se ao lado do intimidador compram segurança por pertencer ao grupo. Aqui está também o antídoto da escuta acolhedora. Ela não deve buscar apenas piedade ou solidariedade que no fundo oporá grupo contra grupo, fracos contra fortes, perdedores contra vencedores. Acolher é potencializar a solidão como fonte e origem de toda resistência. Acolher é transformar a solidão em solitude, fazendo do desamparo e da vulnerabilidade algo que não deve ser temido nem envergonhado, mas reconhecido. É assim que surge a resiliência que não precisa nem de esperança nem de otimismo para agir. Basta escutar a força e a suficiência de ser cada um.
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* Psicanalista e professor titular da Universidade de São Paulo.
Fonte:  https://gauchazh.clicrbs.com.br/colunistas/christian-dunker/noticia/2018/11/como-escutar-o-outro-em-tempos-de-acolhimento-e-intimidacao-cjp4ch5y40hvb01rxdnxeg6kw.html
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A sociedade da inteligência artificial

Luís Lamb* 

 Jakub Krechowicz,stock.xchng / Divulgação

Os países líderes em inteligência artificial – EUA, China, Reino Unido, Canadá e Israel – têm agendas de longo prazo para o setor. Os Emirados Árabes Unidos estabeleceram o Ministério da Inteligência Artificial. Em março deste ano, a França anunciou plano de 1,5 bilhão de euros


Historicamente, o ser humano mostra fascinação com sua forma de pensar. No Ocidente, pelo menos a partir de Aristóteles (aliás, influente até hoje), Leibniz, Boole, Frege, Russell, Gödel e Turing dedicaram parte de suas brilhantes vidas à análise do pensamento. Foram além, e imaginaram construir máquinas que melhorassem a capacidade da nossa mente, como vislumbrou Leibniz. Sobreviveram a inúmeros debates e frustrações, ainda maiores, acerca das inconsistências do pensamento, da lógica e de suas próprias existências. Não obstante, a busca pela construção de máquinas que “pensassem” prosperou.
Diante da urgência da II Guerra Mundial, coube à Grã-Bretanha a liderança contra o nazismo na Europa. Para esta hercúlea missão, conceberam a Station X, em Blechley Park. Lá, a partir do trabalho de Turing  e de centenas de mentes lógicas brilhantes, construíram os primeiros computadores, entre eles o Colossus, destinados inicialmente a decifrar os códigos secretos alemães. Churchill posteriormente exaltou os esforços desses pioneiros da Ciência da Computação que, segundo o grande estadista, reduziram a guerra em pelo menos dois anos, salvando milhões de vidas.
Após o esforço de guerra, Alan Turing refletiu sobre a possibilidade de construir thinking machines – máquinas que pensassem. Ao final de sua trágica e curtíssima vida de apenas 42 anos, publicou os primeiros artigos sobre inteligência de máquina, deixando um grande legado e questões em aberto. Pouco tempo depois, em 1956, foi organizado o primeiro seminário sobre Inteligência Artificial (I.A.) em Dartmouth, com participação de luminares da ciência, entre eles Herbert Simon, Prêmio Nobel de Economia em 1978, e Marvin Minsky, que seria consultor do cineasta Stanley Kubrick em 2001: Uma Odisseia no Espaço. Simon viria a prever que as máquinas poderiam realizar, em 20 anos, qualquer trabalho humano. A previsão foi, certamente, muito otimista.
Nos anos 1960, a corrida espacial, alimentada no ambiente da Guerra Fria, impulsionou o surgimento de computadores ainda mais poderosos. Pari passu, a evolução da Ciência da Computação mantinha acesa a chama da questão proposta por Turing: será que máquinas podem pensar?

Cogito, ergo sum.” (Penso, logo existo.)

DESCARTES (1596-1650)

Limitada pela tecnologia dos computadores nos anos 1970 e 80, a I.A. atravessou alguns invernos, veio a confrontar, perder e, finalmente, derrotar o gênio do xadrez Gary Kasparov em 1997 e chega aos dias de hoje como temática da ONU e do Fórum Econômico Mundial de Davos; notadamente, há grande preocupação sobre o futuro do trabalho. Inúmeras profissões simplesmente desaparecerão; muitas outras, baseadas no conhecimento, ainda nem existem.
No século 21, a I.A. aprendeu a jogar pôquer e derrotou seres humanos no popular programa de perguntas e respostas da TV americana conhecido como Jeopardy!. Em 2016, o programa conhecido como AlphaGo, concebido pela inglesa DeepMind (hoje adquirida pela gigante Google), surpreendeu e assustou chineses e coreanos aos bater os melhores jogadores do mundo de Go, um jogo de tabuleiro culturalmente associado à inteligência humana no Extremo Oriente. Atualmente, os melhores programas de I.A. para jogos de tabuleiro simplesmente dispensam a interação com seres humanos, aprendem de forma autônoma e competem entre si. Esses programas apresentam desempenho “super-humano”, muito além das nossas habilidades. Cogito, ergo sum.
Mas o progresso da I.A. vai muito além dos desafios lógicos. Todas as montadoras (associadas a grandes empresas de tecnologia) hoje investem nos veículos autônomos; a indústria farmacêutica aderiu à aprendizagem de máquina e à ciência de dados para desenvolvimento de medicamentos; o setor bancário hoje é denominado fintech, e quem não for fintech, dizem, simplesmente estará fora do mercado. Estamos provavelmente vivendo um momento análogo ao surgimento da web, que revolucionou as relações sociais, culturais e econômicas. Desta vez, estima-se que o impacto da I.A. sobre a humanidade, em todas as áreas, será ainda maior do que o surgimento da web.
O progresso e impacto econômico, social, cultural e político tem sido tão espetacular que mais de 30 países já têm estratégias e políticas nacionais de I.A. Se no passado havia políticas industriais, hoje temos a urgência das políticas de I.A. Os países líderes na área – EUA, China, Reino Unido, Canadá e Israel – têm agendas de longo prazo. Os Emirados Árabes Unidos estabeleceram o Ministério da Inteligência Artificial. Em março deste ano, o presidente francês Emmanuel Macron anunciou plano de 1,5 bilhão de euros, dizendo não querer formar talentos que emigrem para os polos de I.A. Agora em novembro, a Alemanha apresentou sua estratégia nacional, com um investimento de 3 bilhões de euros.
Morto recentemente, Stephen Hawking temia pelo futuro da humanidade na sociedade da I.A.; Bill Gates, no entanto, acredita que a I.A. nos permitirá fazer mais com menos. Sejamos otimistas. Turing concluiu seu artigo pioneiro sobre inteligência de máquina afirmando que enxergava uma curta distância à sua frente, mas que havia muito por fazer. A história recente mostra que há muito a fazer e que Turing estava certo. Mas não sabemos ainda o quanto caberá, a nós, humanos, ou se a I.A. fará pela humanidade.
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PhD em Ciência da Computação pelo Imperial College London e Pró-Reitor de Pesquisa da UFRGS 
Fonte:https://gauchazh.clicrbs.com.br/comportamento/noticia/2018/11/a-sociedade-da-inteligencia-artificial-cjp480aoh0htn01rxooyjrklk.html
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DE BOCA FECHADA


José de Souza Martins*
 
O presidente eleito da República, radicalmente diferente de Lula, seu êmulo, fala pouco. Quando candidato, deixou a palavra com as redes sociais. O Twitter tem-lhe permitido dizer tudo quase sem dizer nada. Quem o lê inventa o complemento da mensagem, conforme a mentalidade de cada um. Pode ter sido bom para ganhar a eleição. Mas os algoritmos ideológicos dessas mensagens cifradas municiam os protagonistas da nova era política com opiniões que na verdade são concepções do senso comum e do cotidiano. É no terreno da incerteza intencional que o novo governo vai sendo montado.

Já a postura lulista de falar demais baseou-se e baseia-se num outro tipo de cumplicidade dos acólitos que traduzem a fala barroca do líder em língua ideológica e em diretriz partidária. O que se revelou um erro de quem se julga no mundo, mas não vê o mundo.

No caso de Bolsonaro, os extraordinários poderes das redes sociais e dos púlpitos pentecostais encarregaram-se de elaborar a imagem ficcional de um candidato da ordem. Não o que ele é, mas o que querem que ele seja. Como ocorreu com Lula, ele não sabe e nunca saberá quem de fato é, politicamente. Chegamos à era do poder da incerteza.

É fenômeno da mesma qualidade que caracterizou a ascensão de Luiz Inácio ao poder. Nesse caso, a população demonstrou, mais em 2002, menos em 2006 e menos ainda em 2010, que se insurgia contra a voracidade de ganhos e de poder de setores insaciáveis e inescrupulosos da elite.

A carta do PT ao povo brasileiro, no entanto, foi uma declaração de adesão a eles e um reconhecimento público de que pelo poder o partido estava disposto a aceitar a cooptação. E foi o que aconteceu. Lula e Dilma presidiram a República, mas o PMDB e seus aliados a governaram. Relembrando a frase de Giuseppe Tomasi di Lampedusa, em "O Leopardo", de que tudo deve mudar para que tudo fique como está.

Com mensagem radicalmente oposta à do petismo e do lulismo, Bolsonaro não é deles diferente no essencial. Seu silêncio pode estar refletindo o esgotamento do vocabulário de campanha, o da língua do antipetismo.

No caso dos dois, Lula e Bolsonaro, um sociólogo não pode deixar de identificar o uso instrumental de técnicas da etnometodologia do cientista social americano Harold Garfinkel. Em pesquisa financiada pelo Pentágono, ele desenvolveu um método sociológico de experimentação científica em que o pesquisador induz a interação social com o paciente, que alguns definem como vítima. Questiona seu senso comum para, na reação, suscitar o preenchimento dos vazios da relação social com o mero senso comum.

Sua ciência comprovou que o homem cotidiano tende a solucionar os estados de anomia, de ausência de ordem, como a que vivemos agora, retornando ao que era antes de seus ímpetos de mudança. A tendência social espontânea não é pela revolução, mas pela continuidade do mesmo. É o que estamos vendo no processo político brasileiro desde a campanha eleitoral de 2002.

Os indícios, porém, de fragilidade da ordem social imaginária, de manipulação, que a eleição sugere, podem ser apontados. Em 2002, do total de eleitores inscritos, 54,2% não votaram em Lula, 62,5 milhões de eleitores, 10 milhões mais do que os que nele votaram. Esse foi o seu índice de potencial ilegitimidade, fator de desaprovações e desconfianças, vácuo de legitimidade num caminho de potencial queda final. Essa é a base da dúvida política num regime democrático.

Agora, em 2018, o índice dos que não votaram em Bolsonaro é mais alto, 60,8% dos inscritos, 89 milhões e meio de eleitores, 32 milhões mais do que os que nele votaram. Seu índice de potencial ilegitimidade é muito maior do que o de Lula em 2002.

É aí que a cultura da boca fechada fará, e já está fazendo, seu estrago. É uma cultura de recusa do pensamento crítico, que Bolsonaro e os bolsonaristas, equivocadamente, definem como de esquerda. Equivocadamente, também, porque quem recusa a legitimidade da esquerda no mundo moderno fatalmente recusa a democracia cujos adeptos estão indicados no número dos que recusaram o voto ao vencedor. Isso não quer dizer que esse seja o número dos esquerdistas. Quer dizer apenas que esse é o número dos adversários potenciais do pensamento tosco e unilinear da direita.

As escolhas frágeis e tendenciosas na área da educação e da ciência sugerem muito claramente que o governo será inaugurado como um programa de guerra contra ideias, contra o conhecimento e contra a cultura. Serão, provavelmente, 39% contra 61%. Um jeito problemático de inaugurar um governo com a pretensão de ser um governo da ordem com base numa orientação política de guerra aberta contra o cerne da civilização, que é a da diversidade social e de ideias.
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* José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de Desavessos - Crônicas de Poucas Palavras” (Com-Arte)