segunda-feira, 27 de abril de 2020

Como virar um Cortella


Edson Aran*
 

No Brasil de hoje, se você tropeçar num filósofo, cai em cima de outro filósofo. Eu digo e provo. Você abre o jornal e lê o Leandro Karnal. Pensa que não dá pé, troca de folha e tem o Luiz Felipe Pondé.

Indignado e sem paciência, você sai de casa e tropeça em mais sapiência: Olavo de Carvalho e Vladimir Satafle discutem animadamente o propósito do significado. No café, Mário Sérgio Cortella e Pablo Ortellado trocam pérolas de sabedoria. No Twitter, Emir Sader e Clóvis Barros Filho prosseguem a cantoria. E na TV, Márcia Tiburi e Marilena Chauí se abraçam em euforia.

O Brasil atual é direitinho a gloriosa Atenas do século V a.C. Naquele tempo, você saía de manhã para trucidar uns persas e encontrava Platão debatendo com Zenão, Protágoras levando um lero com o Pitágoras e o Parmênides arrumando encrenca com Diógenes: “Aí, mano, a gente não gosta de neguinho procurando homem aqui na área, tá ligado?”.

O filósofo Diógenes de Sinope andava de lanterna acesa durante o dia e dizia que “procurava um homem honesto!”. Ele é considerado um cínico, mas na verdade, era um otimista. O cínico sabe que nem adianta procurar.

A grande diferença entre a Atenas de ontem e o Brasil de hoje é que a primeira foi o berço da democracia e o segundo acha que a criança dá muito trabalho, melhor entregar pra adoção.

A vida cultural também era um pouco melhorzinha. Depois de acalorado debate sobre o determinismo, um filósofo chegava pro outro e dizia: “Topa ver a estreia de ‘Édipo Rei’, do Sofócles? Dizem que a Jocasta é a maior gata!”

E o segundo: “Ih, mal aí, Pernósticles, estou quase acabando de ler a ‘Ilíada’ e quero saber o que tem dentro do cavalo…”

Já aqui, depois de sopapos e solilóquios, Chauí e Cortella, Karnal e Satafle, Tiburi e Pondé ponderam: “E agora? Vou pra casa assistir BBB ou me mando pro show da Jojo Todyinho?”

Não faz sentido. Com tanto pensador pitaquento, tanto onisciente ostentação, tanto gênio generalizando, era pro Brasil viver um Era de Ouro com uns três Nobéis e pelo menos meia dúzia de Oscars.

Vai ver o problema é o excesso de filosofia. Ou como dizia Platão, “Todo mundo se acha um Sócrates, mas beber cicuta ninguém quer, né?”
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*Escritor, jornalista, roteirista e cartunista brasileiro.
Fonte:  https://www.revistabula.com/secoes/diarios-do-aran/

domingo, 26 de abril de 2020

Pandemia do coronavírus faz ressurgir novos rancores

 Gilles Lapouge*
 
Itália - coronavírus

Família em isolamento recebe doação em Nápoles Foto: Gianni Cipriano for The New York Times

Isolamento obrigatório revela bondade e boas ações, mas também faz famílias viverem em ambiente de discordâncias e conflitos

O distanciamento “Amai-vos uns aos outros...se conseguirem”. Os jornais continuam publicando “notícias” do fronte, todos os dias, ad nauseam. Chega-se a crer que nada, absolutamente nada mais se produz na França e no mundo. 

De vez em quando, um artigo notável. Hoje, Le Monde dedica uma página para nos extasiarmos com os efeitos positivos deste confinamento: o triunfo do voluntariado. Se por um lado, os pedidos de ajuda são cada vez mais numerosos, as ofertas de pessoas de bom coração que propõem sua ajuda, seus talentos, suas economias crescem paralelamente. 

O jornal utiliza uma fórmula muito bonita, que serviu em 1954, quando uma onda de temperaturas polares se somou à escassez de habitações. “Assistimos a uma insurreição da bondade”. Sociólogos e filósofos explicam aos leitores que as grandes provações coletivas têm o efeito de unir os seres humanos entre si de maneira indissolúvel, de acabar com suas brigas degradantes. É verdade. As guerras, por exemplo: como nos amávamos em 1914 quando camponeses e artistas, pobres e ricos, partiam de uma mesma cidade com o mesmo passo alegre ao assalto das tropas alemãs, “uma flor no cano do fuzil”. Isto durou oito dias. 

O coronavírus é diferente. Graças a Deus, esta praga jamais provocou alguma forma de exaltação em quem quer que seja. Mas, se “a insurreição da bondade” é totalmente real, por outro lado, o confinamento que encurrala todo mundo tem também outras consequências, deploráveis, diga-se de passagem. O vírus faz o desastre nas famílias condenadas de repente a mostrar o reverso de suas vidas, dos seus beijos. Um reverso tenebroso. 

Clara disse: “Droga! Tenho a impressão de ter sido condenada a minha vida toda”. Uma estudante de 22 anos deixa escapar: “Como suportar uma aproximação forçada com pessoas das quais procuro fugir há anos”. E seis jovens, indubitavelmente seis irmãs, citam o pessimismo como circunstância agravante do “distanciamento”. “Estar encurralado com os pais! É possível imaginar?” Ou para outra, a vida familiar reencontrada é um suplício, mas ela procura uma explicação para a “tolice”, exibida nesses reencontros. 

Nestes breves reencontros, subentendem-se coisas “não ditas”. Uma das jovens fica sabendo também que seus pais são violentamente racistas. “Vou lhe contar. São estrangeiros. Não falam uma palavra de francês. E reproduzem todas as bobagens que circulam  sobre os estrangeiros, os 'macaronis, os polacos, os rosbifes' ... As fake news...Dizem também: 'Este vírus não é nada. Basta tomar água fervente. Ou então, comer gengibre, alho e pimenta. Nos primeiros dias tentei explicar para eles que os estrangeiros não são uns delinquentes...Eu não suporto. Corto logo...”.   

Outra irmã faz o balanço desta clausura. Judith, que tem 27 anos e não mora com os pais, quando não há esse vírus circulando, descobre a face sombria deles. “Cada discussão com meu pai me dá vontade de pôr um ponto final com: Tudo bem. Mancada”. 

Outra banalidade que anda por aí. O perigo comum, esta morte silenciosa, sem culpados, sem palavras, desumana a bem da verdade, bem que poderia acabar com os grandes antagonismos políticos, religiosos, culturais, geográficos, racistas. 

Le Monde foi ver o que está acontecendo na Índia, país enorme onde os hindus são mais de um bilhão, e a minoria muçulmana talvez um milhão. O jornal traz uma reportagem sobre a capital Nova Délhi intitulada: “Na Índia, o vírus do ódio". As autoridades nacionalistas hindus asseguram que os muçulmanos tiveram um papel decisivo na propagação da epidemia. Em Nova Délhi, as acusações têm como alvo uma congregação em um enclave muçulmano, a Talblighi Jammat, que no dia 15 de março organizou um congresso muçulmano, com peregrinos de todas as partes, os quais, é evidente, transportaram o vírus. Falsos vídeos na internet mostram entregadores muçulmanos escarrando na comida para infectá-la. O esquema é clássico. 

Por ocasião das inúmeras cóleras, pestes, febres hemorrágicas que massacram multidões desde a Idade Média, os estrangeiros são violentamente acusados, denunciados, ameaçados, mortos. Na Provença, em uma epidemia de cólera no século XIX, as multidões atacavam os imigrados italianos acusados de envenenar as nascentes. A insurreição da bondade, sim, esta é real, impressionante. Mas há outra insurreição, a dos velhos rancores, dos racismos, das frustrações. / TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA
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*Escritor e jornalista francês.
Fonte:  https://internacional.estadao.com.br/noticias/geral,pandemia-do-coronavirus-faz-ressurgir-novos-rancores,70003280898 24/04/2020

O ESVAZIAMENTO DOS PARTIDOS

 

Perda de 1 milhão de filiados em dois anos é sintoma de um sistema partidário disfuncional

Notas & Informações, O Estado de S.Paulo
26 de abril de 2020 | 03h00

Em dois anos, os partidos políticos perderam 1 milhão de filiados, segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Em março de 2018, as legendas tinham, ao todo, 16,6 milhões de filiados. Em março deste ano, eram 15,6 milhões de pessoas registradas em algum dos 32 partidos em funcionamento no País. Tal esvaziamento é mais um sintoma da disfuncionalidade do atual sistema partidário. 

A significativa queda do número de filiados evidencia a dificuldade que as legendas têm para atrair e reter filiados. Nos últimos dois anos, em números absolutos, o PMDB foi o partido que mais perdeu filiados. Foram menos 268,7 mil registros no período. Mesmo com a queda, a sigla continua tendo o maior número de filiados entre todos os partidos. O PMDB tem hoje 2,1 milhões de filiados. 

O segundo partido que mais perdeu filiados foi o PP (165,4 mil), seguido de PDT (131,4 mil), PTB (126,1 mil), DEM (120,7 mil), PT (110,9 mil) e PSDB (92,3 mil). Em número de filiados, o PT continua sendo o segundo maior partido (1,47 milhão), seguido de PSDB (1,36 milhão) e PP (1,27 milhão). 

Nos últimos dois anos, o PSL, partido pelo qual o presidente Jair Bolsonaro foi eleito em 2018, teve um saldo positivo de filiados. Foram 116,7 mil membros a mais desde março de 2018, quando o então deputado se filiou ao partido presidido por Luciano Bivar (PE). No entanto, desde que o presidente Jair Bolsonaro deixou a sigla e anunciou a criação de um partido próprio, o Aliança pelo Brasil, o número de filiados ao PSL caiu. Hoje, o partido de Bivar tem 344,3 mil membros. Em outubro do ano passado, eram 349,2 mil. 

Essa trajetória do número de filiados ao PSL mostra outra fragilidade dos partidos, muito além da questão quantitativa de filiados. Esse vai e vem de filiados ao PSL, que ocorre também em outros partidos, mostra que a adesão à legenda não representa compromisso com um conteúdo programático do partido, inexistente na maioria das vezes. É mero seguimento temporário, baseado no apoio igualmente temporário a um político. Ou seja, além da diminuição do número de filiados, constata-se um esvaziamento ideológico das legendas. 

O quadro é dramático. Partidos não têm identidade programática, e filiação e desfiliação a uma legenda são frequentemente mera transferência de apoio a um candidato, sem indicar qualquer compromisso com uma causa partidária definida. Tal movimentação é estimulada pelo enorme número de partidos existentes – atualmente são 32 – e pelos muitos outros em formação. Segundo a Justiça Eleitoral, existem hoje 78 partidos em formação. 

Com esse grande interesse por criar siglas, fica claro que ter uma legenda é um grande negócio. Recentemente, o Estado revelou que, em 2018, os partidos repassaram R$ 144 milhões a pessoas físicas, e R$ 12,4 milhões foram pagos a responsáveis administrativos dos diretórios nacionais ou estaduais das siglas. 

Além da redução do número de filiados, há outro dado impressionante a respeito do baixo grau de comprometimento com as siglas. Realizado em 2017, levantamento do Movimento Transparência Partidária identificou que, de cada 10 mil filiados, apenas 34 faziam contribuições financeiras a uma legenda. 

São muitos os sinais de que o sistema partidário é disfuncional. E tal disfuncionalidade não é obra do acaso. Há vários estímulos para tal cenário, como é o caso do financiamento público das legendas por meio do Fundo Especial de Assistência Financeira aos Partidos Políticos (Fundo Partidário) e do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (Fundo Eleitoral). Os partidos são entes privados e não há motivo para que o dinheiro do contribuinte financie suas atividades. Ao receber dinheiro público, as legendas ficam desobrigadas de ter identidade programática e filiados comprometidos ou de buscar doações. 

Numa democracia representativa, é essencial a existência de partidos políticos que funcionem, representando de fato seus filiados e promovendo os necessários consensos e maiorias. Sempre adiada, a reforma do sistema político-eleitoral é da máxima importância.
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FONTE:  Editorial:  https://opiniao.estadao.com.br/noticias/notas-e-informacoes,o-esvaziamento-dos-partidos,70003283155 26/04/2020

sábado, 25 de abril de 2020

Delírios de onipotência

Dom Walmor Oliveira de Azevedo*
 Onipotência | Superpoderes Wiki | Fandom
A expressão “delírios de onipotência” foi bem aplicada na pena sábia e na voz profética de um pregador espiritual. Configura entendimento que possibilita melhor reconhecer de onde vêm os prejuízos amargados pela sociedade contemporânea, marcada por um ritmo insano e por um afã desmedido pelo lucro, alimentando apegos e sede de poder. Condutas fundamentadas em delírios de onipotência, responsáveis por tantos descompassos ambientais, sociais e políticos. É compromisso cidadão, que não é simples, contribuir para a identificação e superação das causas fatídicas desse colapso humanitário vivido na atualidade, inclusive no âmbito da saúde. Isso exige a desmontagem da intrincada engenharia que sustenta os delírios de onipotência. Mas a cultura contemporânea alimenta a ilusão da onipotência. Com sua dinâmica sedutora, essa ilusão tem força de dominação que configura mentes e corações, promovendo o obscurantismo, o autoritarismo e a eleição de relativismos como paradigma comportamental.

Superar os delírios de onipotência é condição inegociável e primordial para que a sociedade consiga ultrapassar o limiar de seu encarceramento autodestrutivo: dinâmicas que alimentam violências e perversidades em um mundo que tem tudo para ser justo e solidário. Desconstruir os delírios de onipotência muito contribuirá para vencer o adoecimento social, que alcança ápices nas pandemias, a exemplo da covid-19, mal que bate à porta de todos, igualmente. Delírio de onipotência é, pois, o nome sistêmico do processo de produção de diferentes enfermidades. E quando for superado o auge desta pandemia tão sacrificante, que exige o isolamento social, lamentavelmente a humanidade ainda não terá alcançado a imunidade de que necessita, radicada no reverso deste terrível mal: os delírios de onipotência.

A cura desse mal é um processo exigente e longo, com novas aprendizagens alicerçadas na interioridade. Um desafio para a humanidade acostumada com a espetacularização e o domínio das aparências, com a corrida desarvorada, o tempo todo, para se sobrepor aos outros, passando por cima de tudo e todos. Um processo que alimenta a ilusão de se achar “o dono” da palavra, das soluções. Reforça a pretensão humana de ter sempre razão, em tudo, sustentando o autoengano de se considerar mais importante que tudo e todos.  Prevalece, assim, uma perspectiva narcísica, doentia. Mede-se o próprio valor pelo que se possui, pela capacidade de gastar dinheiro, pelo poder para dar ordens aos outros.

Percebe-se assim que as pandemias são apenas sintomas que causam medo. As doenças são enraizadas nos delírios de onipotência. Compreende-se, pois, que a esperança da superação da avassaladora pandemia da covid-19, que parou o mundo, e de tantas outras, depende de novos hábitos e práticas organizacionais, com a indispensável consideração da vida como dom precioso. Obviamente, a referência não é somente à própria vida, mas o bem maior de todos. Novas lógicas devem inspirar o mundo do trabalho, qualificar a convivência e promover uma espiritualidade que resgate o ser humano da pequenez – manifesta nas indiferenças em relação ao outro, que é irmão, nos partidarismos que levam a escolhas equivocadas e medíocres, no formalismo asséptico que contamina processos educativos, na cultura sem força para sustentar valores fundamentais à vida.

A condição cidadã desgastada se projeta nos delírios de onipotência, traduzidos de muitos modos nefastos, a exemplo da indiferença paralisante sobre a situação dos que mais sofrem. Essa indiferença é a que não deixa pessoas se envergonharem, mesmo convivendo com triste situação: enquanto poucos navegam em mar de dinheiro a grande maioria vive na miséria e precisa lutar, todos os dias, para sobreviver. Não menos grave é o gosto pelo autoritarismo, um produto sofisticado e perverso dos delírios de onipotência, dando espaço a psicopatias na política, na prática religiosa e nas relações interpessoais.

Os atentados contra a democracia, valor intocável para se conquistar equilíbrio em uma humanidade plural, são graves sinais de delírios de onipotência. Combater esses delírios, vírus mortais, exige humildade – valor espiritual determinante, mas ainda distante das virtudes do ser humano. Esse valor, para ser alcançado, pede nova aprendizagem: a espiritualidade. Um novo caminho, desafiador até para religiosos – mas é preciso trilhá-lo para superar as pandemias geradas e alimentadas por delírios de onipotência.
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*Arcebispo metropolitano de Belo Horizonte
Presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB)
Fonte:  http://arquidiocesebh.org.br/para-sua-fe/espiritualidade/artigo-de-dom-walmor/delirios-de-onipotencia/?utm_source=newsletter&utm_campaign=Opini%C3%A3o%20e%20not%C3%ADcias&utm_medium=370&utm_content=Del%C3%ADrios%20de%20onipot%C3%AAncia 
Imagem da Internet

quarta-feira, 22 de abril de 2020

Nas entrelinhas: Distopia no presente

Luiz Carlos Azedo*
http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/wp-content/uploads/sites/20/2020/04/38CDCE27-6BD2-439F-90DF-7BD83F809BE9-550x359.jpeg
“Nos tornamos seres perigosos, suspeitos. Qualquer aproximação menor que dois metros é uma ameaça e provoca uma reação de legítima defesa”

A pergunta de meu amigo Carlos Alberto Jr., jornalista e cidadão do mundo, numa live, inspirou a coluna de hoje: “Estamos vivendo uma distopia no presente?”. Normalmente, a distopia está associada ao futuro, porque é a negação da utopia, ou seja, da sociedade desejada, uma projeção pessimista do futuro. De certa forma, sim, estamos vivendo uma realidade distópica, como as que aparecem no cinema. A série inglesa Black Mirror (Espelho Negro), lançada há quase 10 anos, por exemplo, em cada um de seus episódios, que são independentes, nos deixa em situação muito desconfortável em relação à tecnologia, à globalização, ao poder e à “sociedade do espetáculo”.

Qual é a grande distopia que estamos vivendo aqui no Brasil? Uma pandemia de coronavírus ameaça sair do controle e seu combate começa a ser militarizado, com a substituição de uma política de saúde pública participativa por estratégias militares que se baseiam em grandes manobras, controle de informações e saídas racionais para situações fora do controle, como criar mais vagas nos cemitérios para evitar que o aumento do número de mortos gere outro grave problema sanitário: cadáveres insepultos. É uma hipótese sinistra, mas faz sentido, porque a concepção do combate à epidemia é a de que se trata de uma guerra. Em tese, militares estariam mais preparados para isso do que civis, o que, obviamente, é um equívoco em se tratando de saúde pública.

O inimigo invisível entre nós, no trabalho, no supermercado, na fila da lotérica, dentro de casa. Todos nos tornamos seres perigosos, suspeitos. Qualquer aproximação menor que dois metros é uma ameaça e provoca uma reação de legítima defesa, nem sempre um educado “por favor, chegue mais para lá”. Os mais aptos a conviver com o novo coronavírus — os contaminados assintomáticos —, hoje são a maior ameaça, não importa se é um antigo colega de trabalho, um parente querido, um amigo de infância, a pessoa amada; amanhã, porém, poderão ser os salvadores da pátria, portadores de anticorpos e perpetuadores da espécie, os primeiros a voltar ao trabalho.

A salvação virá dos mais fortes e do Estado Levitã, que pode tudo? Qual será o custo de tudo isso? Na lógica do presidente Jair Bolsonaro, é preferível um maior número de mortos do que o colapso da economia; é preciso salvar o comércio, a indústria, os pequenos negócios e os biscates. No fundo, seu raciocínio antecipa a escolha de Sofia do intensivista que seria obrigado a escolher quem vai ter acesso ao respirador na UTI quando o sistema de saúde entrar em colapso.

A República, de Platão, citada pelo ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta numa alusão irônica ao famoso Mito da Caverna (metáfora criada pelo filósofo grego para explicar a condição de ignorância em que vivem os seres humanos e o que seria necessário para atingir o verdadeiro “mundo real”), inspirou Thomas Morus (1478-1535) a escrever Utopia. Publicada na Basiléia, em 1516, na época dos Descobrimentos, criticou a tirania e descreveu a sociedade ideal, prontamente associada ao Novo Mundo. Na Inglaterra, seu livro só viria a ser publicado em 1551, 17 anos após a morte do filósofo e estadista católico executado por ordem de Henrique VIII, da Inglaterra.

Tirania
 
Coube a outro inglês cunhar a expressão “distopia”, o liberal progressista John Stuart Mill, o primeiro a defender o direito ao dissenso e as prerrogativas das minorias, num famoso discurso no Parlamento britânico, em 1868, ao invocar os valores defendidos por Thomas Morus em confronto com a realidade do proletariado da Inglaterra durante a Revolução Industrial. O tema da distopia foi retomado no Admirável Mundo Novo (1932), de Aldous Huxley, e em 1984, de George Orwell. Na primeira obra, a sociedade é dominada por uma casta, que a submete a um condicionamento biológico e psicológico; no segundo, numa alegoria do burocratismo stalinista, um ditador muda a língua do povo, controla a vida dos cidadãos e manipula a imprensa.

Na literatura, portanto, a distopia é a denúncia da sociedade indesejada, autocrática, submetida à tirania e à ordem unida. Na vida real, voltando à pergunta inquietante do amigo, é uma ameaça latente, seria quase uma distopia do presente. Estamos vivendo uma situação inimaginável, num mundo globalizado, conectado em rede, onde todos acompanham tudo em tempo real. Trata-se de um colapso da economia mundial, provocado por um fenômeno da natureza que tem a ver com o “grande encontro” da teoria da evolução, a associação entre o vírus mutante e uma bactéria, que se reproduz em velocidade igual ou maior do que a moderna transmissão de dados.

A ficção distópica dos filmes de catástrofes vira realidade, com centenas de milhares de mortos. Ontem, o presidente Donald Trump anunciou que os Estados Unidos vão suspender a imigração legal por dois meses. O “sonho americano”, inspirado na Utopia de Thomas Morus, entrou em colapso. Aqui no Brasil, a grande distopia seria o colapso do nosso regime democrático.
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*  Jornalista, colunista do Correio Braziliense 
Fonte:  http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-distopia-no-presente/ 22/04/2020

'Governo não estava preparado para a crise', avalia Gilmar Mendes


 (foto: Ana Rayssa/CB/D.A Press)
Ao programa CB.Poder, ministro do STF critica o presidente Jair Bolsonaro por ter minimizado o poder do coronavírus, elogia a atuação do Congresso na crise e diz acreditar que uso da cloroquina será judicializado

DR Denise Rothenburg
postado em 10/04/2020 06:00

O ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, disse acreditar que o Brasil teve tempo de se preparar para a chegada do coronavírus, mas “muitos acharam que seria uma gripezinha”. “Tenho a impressão de que o próprio governo Bolsonaro, sejamos honestos, não estava preparado para esta crise. Dá para ver pelas declarações múltiplas e contraditórias que os seus mais ilustres membros interpretam a cada hora”, destacou, em entrevista ao programa CB.Poder, parceria entre o Correio e a TV Brasília.

O magistrado também ressaltou a grande possibilidade de o uso da cloroquina ser judicializado. O remédio contra malária ainda não tem eficácia cientificamente comprovada no combate à Covid-19, mas é defendida, principalmente, por Bolsonaro. O ministro ainda elogiou o Congresso pela atuação diante da crise. 

Leia abaixo a entrevista.

O ministro Alexandre de Moraes proibiu qualquer pessoa do governo federal, inclusive o presidente Jair Bolsonaro, de revogar ações dos governadores contra a Covid-19, como o isolamento social. Como o senhor viu essa decisão?

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A União, os estados e os municípios podem legislar sobre saúde. Também temos alguma perplexidade no que diz respeito à legislação sobre transporte. A União pode legislar também, os estados, em certa parte, e também os municípios, no que diz respeito ao interesse local. Parece que precisa ser devidamente harmonizado. Por isso, sugeri até que houvesse os comitês de crise, um comitê da Federação para tratar de sistemas.

O senhor acredita que o presidente pode adotar alguma medida? Há esse risco? Só essa decisão do ministro Alexandre de Moraes já é um preventivo?
Eu não vislumbro esse tipo de conflito, especialmente no que diz respeito ao isolamento social. Se houver, de fato, uma iniciativa do governo federal, muito provavelmente ela será questionada no Supremo Tribunal Federal, como já foi agora no despacho do ministro Alexandre. Nós temos visto de maneira muito clara.

Bolsonaro tem defendido o uso da cloroquina desde o início da doença, mas ainda não há um consenso da ciência sobre o remédio. Acredita que essa questão vai acabar sendo judicializada?
Certamente, vai. Nós já tivemos discussões no Supremo sobre, por exemplo, aquele medicamento fabricado pela faculdade de São Carlos, a chamada pílula do câncer. Certamente vamos ter algum tipo de judicialização. Mas eu acho que os médicos devem cumprir a sua função e prescrever esse medicamento para os casos em que haja necessidade e que haja o devido controle, porque todos têm advertido que uso sem necessidade desse medicamento pode trazer outras consequências. Nós estamos falando de um medicamento antimalária bastante testado, mas que traz consequências para hipertensos e cardíacos, para pessoas que têm problemas de rins ou fígado, então, nós devemos ter muito cuidado na automedicação em relação a esse medicamento.

 "A crise é malévola, por muitas razões. Acho que ela tornou evidente algumas das nossas fraturas expostas, esse exército de pobres que nós temos, essa brutal desigualdade, péssimas condições de moradia, favelização das nossas cidades. Tudo isso precisa ser colocado na nossa agenda nacional".
- MINISTRO GILMAR MENDES - 

Bolsonaro diz que há um debate ideológico em torno desse medicamento. Falou, inclusive, que é preciso ter uma condução mais clara, porque se ninguém atrapalhar, o Brasil teria condições de ir embora, de andar mais rápido. Como vê essa declaração?
A mim me parece que estamos diante da maior crise que a nossa geração e, talvez, até as gerações anteriores viram. Talvez os europeus tenham visto isso na Segunda Guerra Mundial, mas nós não vimos isso. Nossa participação na guerra foi para mandar soldados, portanto, não tivemos bombardeios aqui. Então, eu tenho a impressão de que o próprio governo Bolsonaro, sejamos honestos, não estava preparado para esta crise. Dá para ver pelas declarações múltiplas e contraditórias que os seus mais ilustres membros interpretam a cada hora.

O Brasil não teve um tempo para se preparar, uma vez que os casos começaram a ficar graves na China em janeiro?
Acho que sim, mas muitos acharam que seria uma gripezinha. E não foi só um problema brasileiro. Muitos países foram pegos de calças curtas. Veja o que aconteceu com a potência americana e as falas do Trump (presidente dos Estados Unidos, Donald Trump) minimizando o vírus. Veja o que nós tivemos com o debate na Grã-Bretanha, que tem um sistema de saúde exemplar, e veja o que está acontecendo, inclusive, com Boris Johnson (primeiro-ministro britânico, que está com Covid-19 e chegou a ir à UTI). Então, também nos trópicos, acabou por acontecer. Fomos pegos de surpresa e estamos pagando algum preço por isso. Felizmente, estamos tentando encostar o terreno e andar.

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O pronunciamento de ontem (quarta-feira) de Bolsonaro não soou como um possível recuo dele? Não está tentando modular agora, falando da gravidade da crise? Pela primeira vez, se solidarizou com as famílias das vítimas, ou seja, o senhor acredita que ele entendeu a gravidade da crise?
Acho saudável que todos os governantes, todos aqueles que têm responsabilidade, se curvem a essa realidade. Nós estamos diante de um imenso desafio e não devemos aturar segundo elementos intuitivos ou segundo recomendações de charlatões ou curandeiros. Devemos seguir a medicina, os nossos cientistas. Temos instituições de credibilidade, de pesquisa, como as nossas universidades e também instituições como a Fiocruz.

O presidente está agora no caminho certo?
Acho que devemos saudar todos aqueles que vêm para a racionalidade. Nós temos um compromisso com a medicina por evidência, com valor à ciência, e devemos chamar os políticos para essa responsabilidade.

Na semana passada, o senhor suspendeu a ampliação do Benefício de Prestação Continuada, que o Congresso aprovou para atender maior número de pessoas. Por que tomou essa decisão agora, no momento em que as pessoas estão justamente precisando de mais recurso?
Porque, segundo o próprio Congresso e segundo também o governo, não estão atendidas as condições estabelecidas na Constituição. Isto é, a indicação de fontes de custeio. Tanto é que eu disse que se trata apenas de uma ineficácia da decisão legislativa. Tão logo resolva o problema da fonte de custeio, esse tema estará resolvido.

Mas, agora, com esses R$ 600 que muita gente vai receber, talvez não haja recursos para ampliar o BPC. Acredita que essa medida vai atrasar um pouco, então?
Pode ser, mas nós estamos neste ambiente, estamos discutindo agora o chamado orçamento de guerra. Talvez, haja recursos a partir daí para fazer esse tipo de atendimento. Eu acho que nós temos um compromisso agora. A crise é malévola, por muitas razões. Acho que ela tornou evidente algumas das nossas fraturas expostas, esse exército de pobres que nós temos, essa brutal desigualdade, péssimas condições de moradia, favelização das nossas cidades. Tudo isso precisa ser colocado na nossa agenda nacional.

Acredita que, terminada a pandemia, o Brasil vai ter de repensar, inclusive, suas medidas econômicas, para que a gente possa atender essa população mais carente?
Com certeza. Acredito que vamos ter de combinar responsabilidade fiscal com uma agenda de responsabilidade social.

Qual é a sua avaliação sobre a atuação do Congresso neste momento de crise?
Fico agradavelmente surpreso pela responsabilidade que o Congresso, pela maioria dos seus mais expressivos líderes, tem mostrado. De uns tempos para cá, sou um defensor no Brasil do semipresidencialismo, de uma ideia de parlamentarismo. Muitos poderão dizer que o Congresso não goza de prestígio junto à população para que se delegue a ele esse tipo de poder. O Congresso teria também o poder de ser governo, mas eu vejo hoje que, nesse bate cabeça, nesses desencontros que nós temos visto, o Congresso muito ponderado, muito responsável.

Aliados de Bolsonaro têm atacado direto tanto o Congresso quanto governadores e o próprio Supremo. Não acha que é hora de baixar as armas e ir à luta para combater os vírus?
Eu tenho dito isso. Nós temos de encerrar o ambiente de conflituosidade e nos organizarmos para esta crise. Nós não estávamos preparados para isso, é evidente que o governo não estava preparado para isso. Veja os desencontros todos que nós acompanhamos nos vários discursos.

Tem gente falando que é preciso reduzir salários dos congressistas e do alto escalão do Executivo. O senhor acha que é preciso fazer o mesmo em relação ao Judiciário?
Eu não tenho dúvida de que serão tomadas as medidas, e acho que já seria um grande progresso se nós impuséssemos o teto. Ontem (quarta-feira), a Câmara discutiu proposta de ajuda aos estados. Os estados, quando descumprem o teto de gastos, pagam R$ 60 mil, R$ 100 mil aos desembargadores, juízes e promotores. Não é razoável. Então, me parece que tudo isso precisa ser colocado na agenda. Se ainda é necessário cortar salários, eu não sei, mas isso precisa ser discutido de maneira bastante clara.

O senhor vislumbra em termos de agenda legislativa após o recesso?
Eu acredito que o país e o mundo não serão mais os mesmos após esta crise. Nós vamos ter uma outra agenda. Certamente, as próprias eleições terão um tipo diferente de campanha eleitoral e, talvez, isso até anime os parlamentares a permanecerem em Brasília. Eu vejo que um legado que nós vamos ter nesse debate todo será essa comunicação que agora nós temos. A comunicação, talvez, se dê muito mais por intermédio desses recursos e, talvez, dispensem esse recesso branco que temos durante o período eleitoral. Eu acho que o Congresso deveria se debruçar sobre essa nova agenda tão logo passar o pico da pandemia.

Acredita que seja necessário adiar as eleições?
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Eu acho que não será preciso. Espero que, até lá, tudo já esteja bem encaminhado e, certamente, nós vamos ter de continuar preservando essas cautelas que hoje nós estamos adotando, de distância, higienização e tudo mais.

E sobre o fundo eleitoral? Acha que será preciso destinar os recursos para o combate ao coronavírus?
Neste momento, se for necessário, pode se alocar recursos para essa finalidade. No momento da eleição, podemos realocar esses recursos de volta para a eleição. Até porque, nós sabemos hoje que já não temos mais aqueles recursos que vinham da iniciativa privada. Precisamos ter esse preço, que é o preço da democracia.

 "Antes discutia-se que nós precisávamos de um fundo público, agora temos fundo público. Nós estamos vivendo uma típica esquizofrenia. Primeiro, se faz um discurso no sentido do fundo público e, agora, se diz que nós devemos buscar recursos das pessoas privadas. Esses recursos viriam das empresas, e nós dissemos ao Supremo que isso era inconstitucional".
- MINISTRO GILMAR MENDES- 

Como serão realocados recursos se o país já está falando em retração no deficit para combater a pandemia? Significa que não teremos recursos para fazer a eleição. O partido Novo já defende que cada um cuide da sua eleição, que busque o financiamento da população, de pessoa física. No fim, como vai ficar essa questão eleitoral? Não é hora de repensar se o orçamento público deve financiar as campanhas?
Isso soa engraçado. Quem disse que deve ter recursos só das pessoas físicas é porque tem recurso das pessoas físicas. O partido Novo me parece que é composto de pessoas bastante ricas e que podem se autofinanciar. Nesse caso, há uma desigualdade. É um problema que nós precisamos reparar. Antes discutia-se que nós precisávamos de um fundo público, agora temos fundo público. Nós estamos vivendo uma típica esquizofrenia. Primeiro, se faz um discurso no sentido do fundo público e, agora, se diz que nós devemos buscar recursos das pessoas privadas. Esses recursos viriam das empresas, e nós dissemos ao Supremo que isso era inconstitucional.

Na sua opinião, esse é um debate que o Congresso ainda terá de fazer?
Sem dúvida alguma. Vamos ordenar um pouco o debate. O que precisamos ter é a racionalidade. É preciso que haja adultos na sala. O país está enfrentando uma séria crise. A gente tem de encerrar com esses impulsos populistas, demagógicos. Precisamos ter responsabilidade.

O senhor disse que o ministro Sérgio Moro estava meio apagado, um ilustre ausente durante a pandemia. Ele respondeu falando que o senhor virou um comentarista político. Como vê essa resposta?
Não vou discutir com Sérgio Moro. O que disse e continuo afirmando é que o Ministério da Justiça, e não Sérgio Moro (porque o Ministério da Justiça é maior que o Sérgio Moro) está se revelando um ilustre ausente neste momento em que nós temos discussões importantes. Não estou falando sobre presos, sobre a Covid-19 em presos, que ele, inclusive, falou que os presos têm de continuar presos e, talvez, serem mortos nos presídios. Mas não é disso que se cuida. O que estou dizendo é que o grande debate que se trava hoje na nação é sobre a questão federativa, sobre o papel do presidente, dos governadores e dos prefeitos. Isso é um debate sobre a Champions League (maior torneio de clubes do mundo) e não um debate sobre um campeonato da terceira divisão do interior do Paraná.

O que a população pode esperar do Supremo neste momento de crise? O senhor é conhecido como o ministro que solta todo mundo, principalmente pessoal da Lava-Jato. O que a população pode esperar?
O Supremo Tribunal Federal tem decidido vários casos, inclusive que conservem as prisões, e tem feito as devidas avaliações a partir das recomendações do CNJ (Conselho Nacional de Justiça). Recomendações que foram elogiadas, inclusive, pela Corte de Justiça aqui na América Latina e Centro América, pelo Tribunal da Costa Rica. Agora, quanto a essa questão de soltarem ou não presos, nós temos debatido isso com muita seriedade e é preciso acabar com esse tipo de brincadeira. O país precisa aprender, e prender bem, não abusar das prisões. O populismo já deu péssimos resultados, e nós precisamos combatê-lo. (Colaborou Israel Medeiros, estagiário sob supervisão de Cida Barbosa)