O
distanciamento “Amai-vos uns aos outros...se conseguirem”. Os jornais
continuam publicando “notícias” do fronte, todos os dias, ad nauseam.
Chega-se a crer que nada, absolutamente nada mais se produz na França e no mundo.
De vez em quando, um artigo notável. Hoje, Le Monde
dedica uma página para nos extasiarmos com os efeitos positivos deste
confinamento: o triunfo do voluntariado. Se por um lado, os pedidos de
ajuda são cada vez mais numerosos, as ofertas de pessoas de bom coração
que propõem sua ajuda, seus talentos, suas economias crescem
paralelamente.
O
jornal utiliza uma fórmula muito bonita, que serviu em 1954, quando uma
onda de temperaturas polares se somou à escassez de habitações.
“Assistimos a uma insurreição da bondade”. Sociólogos e filósofos
explicam aos leitores que as grandes provações coletivas têm o efeito de
unir os seres humanos entre si de maneira indissolúvel, de acabar com
suas brigas degradantes. É verdade. As guerras, por exemplo: como nos
amávamos em 1914 quando camponeses e artistas, pobres e ricos, partiam
de uma mesma cidade com o mesmo passo alegre ao assalto das tropas
alemãs, “uma flor no cano do fuzil”. Isto durou oito dias.
O coronavírus
é diferente. Graças a Deus, esta praga jamais provocou alguma forma de
exaltação em quem quer que seja. Mas, se “a insurreição da bondade” é
totalmente real, por outro lado, o confinamento que encurrala todo mundo
tem também outras consequências, deploráveis, diga-se de passagem. O
vírus faz o desastre nas famílias condenadas de repente a mostrar o
reverso de suas vidas, dos seus beijos. Um reverso tenebroso.
Clara
disse: “Droga! Tenho a impressão de ter sido condenada a minha vida
toda”. Uma estudante de 22 anos deixa escapar: “Como suportar uma
aproximação forçada com pessoas das quais procuro fugir há anos”. E seis
jovens, indubitavelmente seis irmãs, citam o pessimismo como
circunstância agravante do “distanciamento”. “Estar encurralado com os
pais! É possível imaginar?” Ou para outra, a vida familiar reencontrada é
um suplício, mas ela procura uma explicação para a “tolice”, exibida
nesses reencontros.
Nestes breves reencontros, subentendem-se
coisas “não ditas”. Uma das jovens fica sabendo também que seus pais são
violentamente racistas. “Vou lhe contar. São estrangeiros. Não falam
uma palavra de francês. E reproduzem todas as bobagens que circulam
sobre os estrangeiros, os 'macaronis, os polacos, os rosbifes' ... As
fake news...Dizem também: 'Este vírus não é nada. Basta tomar água
fervente. Ou então, comer gengibre, alho e pimenta. Nos primeiros dias
tentei explicar para eles que os estrangeiros não são uns
delinquentes...Eu não suporto. Corto logo...”.
Outra irmã faz o
balanço desta clausura. Judith, que tem 27 anos e não mora com os pais,
quando não há esse vírus circulando, descobre a face sombria deles.
“Cada discussão com meu pai me dá vontade de pôr um ponto final com:
Tudo bem. Mancada”.
Outra banalidade que anda por aí. O perigo
comum, esta morte silenciosa, sem culpados, sem palavras, desumana a bem
da verdade, bem que poderia acabar com os grandes antagonismos
políticos, religiosos, culturais, geográficos, racistas.
Le Monde
foi ver o que está acontecendo na Índia, país enorme onde os hindus são
mais de um bilhão, e a minoria muçulmana talvez um milhão. O jornal
traz uma reportagem sobre a capital Nova Délhi intitulada: “Na Índia, o
vírus do ódio". As autoridades nacionalistas hindus asseguram que os
muçulmanos tiveram um papel decisivo na propagação da epidemia. Em Nova
Délhi, as acusações têm como alvo uma congregação em um enclave
muçulmano, a Talblighi Jammat, que no dia 15 de março organizou um
congresso muçulmano, com peregrinos de todas as partes, os quais, é
evidente, transportaram o vírus. Falsos vídeos na internet mostram
entregadores muçulmanos escarrando na comida para infectá-la. O esquema é
clássico.
Por ocasião das inúmeras cóleras, pestes, febres
hemorrágicas que massacram multidões desde a Idade Média, os
estrangeiros são violentamente acusados, denunciados, ameaçados, mortos.
Na Provença, em uma epidemia de cólera no século XIX, as multidões
atacavam os imigrados italianos acusados de envenenar as nascentes. A
insurreição da bondade, sim, esta é real, impressionante. Mas há outra
insurreição, a dos velhos rancores, dos racismos, das frustrações. / TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA
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*Escritor e jornalista francês.
Fonte: https://internacional.estadao.com.br/noticias/geral,pandemia-do-coronavirus-faz-ressurgir-novos-rancores,70003280898 24/04/2020
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