Na última sexta de março, na praça São Pedro
vazia devido à pandemia, o papa Francisco disse que é "diante do
sofrimento que se mede o verdadeiro desenvolvimento dos povos” — Foto:
VaticanNews
Disputa entre a ala mais conservadora e a mais
liberal provoca cismas e tensão entre cristãos
Por João Luiz Rosa — De São Paulo
A notícia pegou a
todos de surpresa: em janeiro, a Igreja Metodista Unida - segunda maior
denominação protestante dos Estados Unidos, com 13 milhões de membros no mundo,
quase a metade disso no país - anunciou que vai se dividir em duas. Com a
cisão, passará a aceitar oficialmente casamentos entre pessoas do mesmo sexo,
algo que muitos pastores e congregações já faziam. A nova igreja que será
criada, mais tradicionalista, manterá a proibição.
A decisão se segue
a outras divisões que vêm marcando as igrejas conhecidas como “mainline
protestants”, as mais antigas e influentes da sociedade americana. A Igreja
Presbiteriana dos Estados Unidos, a PCUSA, maior congregação calvinista do
país, alterou sua constituição em 2015 para permitir não só o casamento gay,
como a ordenação de pastores homossexuais - homens e mulheres. A Igreja
Evangélica Luterana e a Igreja Episcopal, esta última de tradição anglicana,
fizeram movimentos semelhantes. Todas perderam parte do rebanho por causa das
mudanças. É o que deve ocorrer também com a Igreja Metodista Unida. Segundo
previsões, de 30% a 40% dos membros podem abandonar suas fileiras depois da
separação oficial, prevista para o mês que vem.
Na Igreja Católica,
dilemas semelhantes acirram a disputa entre a ala mais conservadora e a mais
liberal do clero. Com dois agravantes. O primeiro é que a essas questões se
somam outras, mais específicas do catolicismo, como a participação dos
divorciados na eucaristia, os métodos contraceptivos, o fim do celibato e a
aceitação de padres casados. O segundo é que, enquanto entre os protestantes as
diferenças se resolvem, no limite, com a criação de novas denominações, para
Roma o separatismo é praticamente impossível. É central para os católicos a
concepção de uma igreja única e indivisível; mesmo que, na prática, o
catolicismo abrigue diversas correntes diferentes entre si, e até conflitantes.
As igrejas cristãs
passaram a enfrentar essas questões com mais contundência porque o clamor
social aumentou muito. “É um reflexo da globalização”, diz a antropóloga Lídice
Meyer Pinto Ribeiro, especialista em ciências da religião e professora
convidada da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, em Lisboa. Com
a internet, em particular as redes sociais, mudanças religiosas ocorridas em um
determinado lugar são assimiladas mais rapidamente em outros. Fica mais difícil
conservar as tradições. “As discussões não são novas. O que é novo é a
facilidade de comunicação”, afirma.
Religiões
hegemônicas, que se estabeleceram há mais tempo e abrangem uma parcela
majoritária da população, tendem a ser mais plurais, porque nem todos os
seguidores assumem a totalidade dos dogmas. São os chamados “não praticantes”.
Como o envolvimento é parcial, eles aceitam mudanças com mais facilidade,
explica Lídice. Já as igrejas mais recentes e que não têm maioria costumam ser
sociedades mais fechadas, até como forma de preservar sua identidade frente à
crença dominante.
Padre reza missa para
igreja vazia em Carenno, Itália, devido às medidas de restrição
da pandemia da
covid-19, que levam igrejas a adotarem modernizações
— Foto: Antonio Calanni/AP
Nos Estados Unidos,
de colonização protestante, esses grupos são hegemônicos. Embora o rebanho
tenha diminuído oito pontos percentuais em uma década, de 2009 até o ano passado,
as igrejas reformadas ainda representavam 43% da população americana no ano
passado, segundo o Centro de Pesquisa Pew, de Washington. No grupo estão as
“mainline protestants” e as evangélicas, de formação posterior e mais
conservadoras. Os católicos, que são minoria, representavam 20% dos americanos
em 2019.
No Brasil, a Igreja
Católica, que chegou com os colonizadores portugueses, viu o número de fiéis
diminuir de 73,6% para 64,6% da população entre 2000 e 2010, segundo dados do
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Apesar disso, o Brasil
continua a ser considerado o maior país católico do mundo, com 10% do rebanho
global. Nas últimas décadas, a Igreja Católica tem perdido espaço rapidamente
para os evangélicos, incluídas nessa categoria as igrejas protestantes
históricas e os grupos pentecostais e neopentecostais. Estes últimos são os
principais responsáveis pelo aumento. Entre 2000 e 2010, os evangélicos
passaram de 15,4% para 22,2% da população. Números mais recentes mostram que a
tendência se intensificou. Em janeiro, o instituto Datafolha publicou
levantamento segundo o qual 50% dos pesquisados se declararam católicos e 31%,
evangélicos.
Na década de 1990,
com o neopentecostalismo e o surgimento de grandes concentrações religiosas,
como a Marcha para Jesus, o cenário brasileiro evangélico passou a mudar mais rapidamente,
diz a professora Lídice. Posteriormente, surgiram igrejas segmentadas,
orientadas ao público gay, adeptos do heavy-metal, surfistas etc.
“As religiões lidam
com o eterno, com aquilo que não passa. Apesar de tudo, vivem inseridas na
história e na mudança”, diz o historiador Leandro Karnal, professor doutor da
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Há vários exemplos históricos,
afirma. As mulheres, por exemplo, foram muito importantes no século I, mas
perderam essa influência na Idade Média. A situação voltou a mudar nas últimas
décadas, com denominações protestantes aceitando pastoras, diaconisas e bispas,
inclusive lésbicas.
“O mundo mudou, e a
maioria das religiões responde de forma lenta. Aceitar é inevitável, porém,
resistir reforça identidade e acolhe muitos medos. E o medo é fonte de poder.
Ser uma instituição que resiste ao que ‘está aí’ também ajuda a angariar
pessoas”, afirma Karnal.
“Live” de missa
conduzida por padre em igreja vazia no Domingo de Ramos, em Bogotá,
Colômbia:
igrejas estão reforçando presença na internet devido à covid-19
— Foto: Ivan
Valencia/Bloomberg
Com 1,3 bilhão de
fiéis no mundo, segundo o Anuário Pontifício de 2019, a Igreja Católica
enfrenta, mais do que qualquer outro grupo cristão, a dificuldade de fazer
alterações profundas. É consenso que, em uma organização com essas proporções,
fazer manobras rápidas ou radicais é de alto risco.
Em janeiro, o papa
Francisco substituiu um de seus principais críticos nos Estados Unidos, onde se
concentram muitos de seus opositores mais contundentes. Francisco aceitou a
renúncia do arcebispo da Filadélfia, Charles J. Chaput, que apoiava a negação
da comunhão a políticos católicos favoráveis ao direito ao aborto e se opunha à
legalização do casamento gay. Com 75 anos, o religioso havia chegado à idade de
se aposentar. Mas o papa tinha o direito de negar o pedido e mantê-lo no cargo.
Preferiu não fazê-lo.
Em reportagem sobre
o assunto, o jornal “The New York Times” afirmou que um grupo pequeno, mas
influente, de prelados americanos tem repetido que o papa pode estar levando a
Igreja Católica em direção a um cisma. Não é pouca coisa. Em 2 mil anos, o
catolicismo passou por apenas duas rupturas, ambas com repercussões profundas
na maneira como as pessoas pensam e se organizam - em 1054, quando católicos
romanos e ortodoxos romperam entre si, e no século XVI, com a Reforma
Protestante.
O papa tem reagido
aos críticos. Em setembro do ano passado, a bordo do avião que o levava de
volta a Roma, depois de uma viagem de seis dias à África, ele declarou a
jornalistas: “Rezo para que não haja cismas. Mas eu não tenho medo”.
Francisco respondia
a pedidos dos repórteres para comentar uma observação que fez em Moçambique,
dias antes. Ao ser apresentado a um livro cujo autor, um jornalista francês,
dizia haver um esforço americano bem financiado e apoiado pela mídia para minar
seu pontificado, o papa afirmou que era uma honra que os americanos o atacassem.
Disse que os
comentários que tece sobre justiça social, por exemplo, são idênticos aos
feitos por João Paulo II (pontífice entre 1978 e 2005]. “[São] as mesmas
coisas! Eu o copio. Mas eles dizem: o papa é comunista... As ideologias entram
na doutrina e, quando a doutrina entra na ideologia, é aí que existe a
possibilidade de um cisma.”
Ao assumir o
comando da Igreja Católica, em março de 2013, Francisco pareceu um sopro de ar
novo na instituição. Em seu primeiro pronunciamento, ele brincou com a multidão
diante da Basílica de São Pedro. Disse que os cardeais haviam ido até o fim do
mundo para buscar o novo pontífice, numa referência a seu país natal, a
Argentina. Francisco é o primeiro papa nascido no hemisfério Sul, para onde o
eixo do cristianismo tem se inclinado nas últimas décadas.
Depois do pontificado
de seu antecessor, o conservador Bento XVI - primeiro papa a renunciar desde
Gregório XII, em 1414 -, muitas expectativas se concentraram em Francisco e sua
capacidade de modernizar a igreja. Mais recentemente, no entanto, ele passou a
receber críticas severas na Europa. Muitos grupos estão impacientes com o que
consideram uma desaceleração no andamento de reformas aguardadas e necessárias.
Uma das maiores
frustrações foi com a exortação apostólica “Querida Amazônia”, publicada em
fevereiro. A expectativa era que o papa Francisco incluísse no documento a
possibilidade de ordenar homens casados como padres para suprir a falta de
sacerdotes na região. A sugestão foi aprovada em setembro do ano passado pelo
sínodo da Amazônia, uma assembleia episcopal, mas ficou fora do documento.
Apoiada por 128
bispos durante a votação, contra 41 contrários, a proposta de ordenar homens
casados disseminou o temor de que a mudança acabasse abrindo as portas para o
fim do celibato dos padres, que é observado desde o século XII e se tornou
obrigatório a partir do século XVI. A ordenação de mulheres como diaconisas -
uma função eclesiástica auxiliar - também não foi abordada na exortação, que
não chega a ser um decreto, mas é importante porque funciona como um guia para
os católicos.
No Brasil, a
maioria dos católicos apoia as duas medidas. Oito entre dez fiéis aprovam a
participação das mulheres no sacerdócio e 56% são a favor de que os padres
possam se casar, segundo levantamento do Centro de Pesquisa Pew. É mais que em
qualquer outro país que integra a região amazônica.
Ao se retrair na
agenda de reformas, o risco é que o papa acabe ficando sozinho, tendo de
enfrentar críticas ferozes dos conservadores, que acham que ele está indo longe
demais, e o descontentamento dos progressistas, para quem não está chegando
longe o suficiente.
“É um dilema. Se a
igreja não se atualizar, perderá fiéis e ficará datada. Se lançar medidas
modernizadoras, também perderá fiéis”, afirma Karnal. “No século XIX, o
ultraconservador Pio IX [pontífice entre 1846 e 1878] resistiu a tudo que
cheirasse a moderno, do socialismo à democracia. É difícil dizer se o dano foi
maior que o benefício.” Uma frase do filme “Dois Papas” (2019), dirigido pelo
brasileiro Fernando Meirelles, ilustra bem a situação, diz o historiador:
“Quando a igreja se casa com uma época, fica viúva na seguinte”.
O desafio católico,
compara, é construir um único prédio, com múltiplas alas. “Que volte a missa em
latim para quem desejar, mas também na língua de cada país. Que existam
festivais com guitarras e igualmente canto gregoriano”, afirma o professor e
conferencista. “Se quiserem restaurar o véu das mulheres na missa, ok. E que
também haja modelos diferentes”, diz.
Questões sociais já
fraturaram as igrejas cristãs anteriormente. No período que antecedeu a Guerra
de Secessão (1861-1865) nos Estados Unidos, muitas denominações reformadas
racharam porque uma parte dos membros apoiava a escravidão e a outra queria a
abolição. Os primeiros citavam a Bíblia para dizer que não havia, no Novo ou no
Velho Testamento, nenhuma proibição
explícita a ter escravos. E que, portanto, a prática era justa. Os
abolicionistas também recorriam à Bíblia. Argumentavam que, a despeito dessa
ausência, a escravidão afrontava os mandamentos mais caros expressos pelo
livro, como amar ao próximo como a si mesmo, o que a tornava incompatível com o
cristianismo.
A Bíblia continua
relevante nas discussões de hoje, principalmente entre as igrejas protestantes,
nas quais o livro sagrado ocupa papel central como fonte de autoridade. Parte
dos grupos reformados tem uma abordagem mais literal dos textos, que consideram
imutáveis. É o caso da maioria das igrejas evangélicas, no Brasil e nos Estados
Unidos. Outros, como as “mainline”, consideram que a Bíblia deve ser lida à luz
da cultura de cada época, o que torna mais flexível o significado dos textos.
O reverendo Aldo
Quintão, da Catedral Anglicana de São Paulo, na zona oeste da cidade, já deu a
benção a uniões homoafetivas e entre divorciados, além de casar seguidores de
diferentes religiões. “Mas prefiro dizer que caso seres humanos, sem
discriminação”, afirma. Casado, pai de um filho, cujo casamento ele dirigiu em
janeiro, o pároco começou a carreira religiosa no catolicismo. Desistiu de
virar padre três meses antes de sua ordenação. Em 1998, entrou para a Igreja
Anglicana.
Formado em
teologia, filosofia e pedagogia, o pároco conta que foi advertido por colegas
religiosos a não celebrar uniões homoafetivas quando teve a ideia, mas
prosseguiu mesmo assim. “Decidi fazer por convicção”, afirma. Quintão diz que a
Bíblia está repleta de leis que, com o tempo, foram superadas. Cita, por exemplo,
o princípio do “olho por olho e dente por dente”. Diz que quando se pergunta
por que mulheres flagradas em adultério não são mais apedrejadas, a resposta
dos líderes religiosos é que isso mudou. Mas que para outras regras, o mesmo
princípio não é aplicado. “Precisamos fazer uma releitura da Bíblia”, afirma.
Na Europa
Ocidental, sede do catolicismo e berço do protestantismo, a frequência aos
serviços religiosos tem caído rapidamente. Na média, entre 15 países pesquisados
pelo Centro de Pesquisa Pew, 91% da população diz ter sido batizada, 81%
afirmam que cresceram sob influência da religião e 71% se declaram cristãos.
Mas só 22% vão à igreja pelo menos uma vez por mês. No Reino Unido, palco de
embates religiosos históricos no passado, o número de cristãos não praticantes
já é três vezes superior (55%) ao dos que frequentam a igreja regularmente
(18%).
A surpresa é que,
apesar desses números, os especialistas têm abandonado a expressão criada para
definir esse fenômeno - a secularização. É, provavelmente, uma das reversões mais
drásticas no campo da sociologia nos
últimos tempos. “Estão indo contra o termo porque se pensava que a religião
teria menos importância, mas isso não aconteceu”, diz a professora Lídice, da
Universidade Lusófona. O islamismo tornou-se uma força em crescimento nos
países europeus, que também assiste ao aumento dos movimentos “new age”, diz
ela. “O mundo neopentecostal brasileiro está vindo com força para a Europa. E o
candomblé e a umbanda estão entre as novidades. Já existem vários terreiros [no
continente].”
As pesquisas
demonstram que o que vem aumentando rapidamente é o número dos chamados
“desigrejados”, observa a antropóloga. São pessoas que se afastaram
gradativamente da religião ou tiveram decepções que os levaram a abandonar a
prática religiosa. “Mas não são ateus”, ressalva.
Nos Estados Unidos,
a porcentagem dos habitantes que se declaram ateus teve um aumento discreto, de
dois pontos percentuais, em relação ao total da população entre 2009 e 2019. Em
uma década, foi de 2% para 4%. No mesmo período, os agnósticos, que dizem não
saber se existe ou não alguma divindade ou transcendência, tiveram aumento
semelhante. Foi de 3% para 5%.
Já a porcentagem de
pessoas sem religião em particular, os sem igreja, cresceu 5 pontos. Aumentou
de 12% para 17% dos americanos, uma massa de 30 milhões de indivíduos. “As
pessoas continuam buscando a religiosidade. O que está caindo em desuso é a
igreja como instituição”, diz Lídice.
A marca da
religiosidade contemporânea é a subjetividade, afirma Karnal, da Unicamp. “É a
fé customizada”, diz. Esse comportamento não ocorre exclusivamente no âmbito da
religião. “Vale para a fé e para tudo hoje em dia. Católicos e reformados
escolhem qual igreja frequentar, qual padre ou pastor, qual modelo de
comunidade. Não existe mais a fidelidade geográfica da paróquia tradicional”,
diz o historiador. “Mesmo que haja mais rigidez em alguns setores, as pessoas
adaptam incessantemente a teologia, a liturgia, a compreensão do sagrado e os
hábitos religiosos.”
Em uma de suas
palestras sobre o assunto, Karnal resumiu esse sentimento com uma menção ao
teólogo Agostinho de Hipona [354-430 d.C.], ou Santo Agostinho, respeitado
tanto por católicos como protestantes: “Agostinho diz que a pessoa que seleciona
da Bíblia o que quer e rejeita o que não quer, acredita em si, e não na
Bíblia”.
O surto da covid-19
ameaça embaralhar ainda mais as peças no tabuleiro religioso cristão. O Domingo
de Ramos, celebrado no início desta semana, não contou com as tradicionais
procissões que anualmente relembram a entrada de Jesus em Jerusalém, com os participantes
cantando e acenando com folhas de palmeiras. E no domingo de Páscoa, data
máxima do cristianismo, haverá um silêncio incômodo em vez das cerimônias
especiais com que se costuma comemorar a ressurreição de Cristo.
Sem a possibilidade
de se reunir fisicamente, devido às regras de isolamento social adotadas na
maioria dos países, as igrejas estão reforçando sua presença na internet, que
permanecia tímida até agora. Paralelamente, como costuma ocorrer em momentos de
crise, o sentimento religioso parece mais agudo entre a população. Gente que
não costuma ir à greja passou a acompanhar serviços religiosos on-line, seja
por curiosidade, conveniência ou pela necessidade de se reconectar com a
religião em meio às incertezas trazidas pelo novo coronavírus.
“A tendência é que
haverá uma grande mudança”, afirma Lídice. “Missas e cultos on-line começam a
estabelecer um padrão de frequência que não existia antes. Acredito que haverá
uma volta à religião, e os próximos censos mostrarão isso.”
Do ponto de vista
doutrinário, ainda não está claro que influência terá o isolamento social
forçado. Mas já se percebe uma certa flexibilização de dogmas e costumes. Cerca
de 20 dias atrás, por causa da impossibilidade de os fiéis irem à igreja se
confessar, o Vaticano decretou o perdão total das vítimas do coronavírus e de
seus familiares, além de profissionais da área médica. Há muito não se ouvia
falar em indulgência, que é essa forma de perdão. Em vez de ter de se deslocar
até o sacerdote, rezar um pai-nosso ou invocar a Virgem Maria passou a ser o
suficiente, e em casa mesmo, segundo a determinação de Roma. Com a medida, a
Igreja Católica deu um passo na direção do que o reformador Martinho Lutero
(1483-1546) já dizia há mais de cinco séculos, afirma Lídice: que é possível se
confessar diretamente a Deus, sem a intermediação de um sacerdote.
Décadas atrás, o
papa Pio XI [pontífice de 1922 a 1939] precisou fazer uma reflexão especial
sobre as missas transmitidas pelo rádio, enquanto seu sucessor, Pio XII [1939 a
1958], teve de debater a televisão, diz Karnal. Agora, a atenção se concentra
na internet e nas redes sociais. “A religião ganha força na pandemia e o
caráter virtual de tudo é inevitável”, afirma. “Há muitas questões contemporâneas:
será possível cobrar dízimos de longe? Como serão os sacramentos sem a
possibilidade de reunião de grupos? Uma benção pelo WhatsApp vale?”
O reverendo Aldo
Quintão já começou a fazer transmissões on-line dos serviços religiosos da
Catedral Anglicana. “Faço ‘lives’ todos os dias, ao meio-dia e às 18h, além das
missas”, afirma. Com os resultados obtidos, não pretende parar. Pela internet,
o público potencial é muito maior - e heterogêneo. Por vídeo, diz o pároco,
qualquer pessoa pode participar, não importa sua orientação sexual, estado
civil ou outras características que poderiam despertar alguma forma de
intimidação ou restrição durante um serviço tradicional.
Virtualmente, um
transgênero poderia se sentar no mesmo banco que uma pessoa extremamente
conservadora, sem estranhamento para nenhum dos dois lados. Se os hábitos on-line
realmente se firmarem na religião - como se prevê que aconteça em outras áreas
da vida, como o trabalho remoto, a educação a distância e a telemedicina -,
pode ser que a tecnologia abrande, no futuro, os dilemas da guerra cultural nas
igrejas.
Dias atrás, Karnal
conta ter visto, numa reportagem, que um padre estava atendendo a confissões sob
um modelo de “drive-thru”. [O padre se chama Fábio Bosco e mora na cidade de
São Francisco do Sul, no norte de Santa Catarina.] “Quem se adaptar estará
melhor durante e depois da crise”, afirma o historiador. “A religião, todavia,
é imensamente mais forte que padres e pastores. E costuma sobreviver a eles.”
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