sexta-feira, 10 de abril de 2020

DESUNIÃO EM NOME DE DEUS


Na última sexta de março, na praça São Pedro vazia devido à pandemia, o papa Francisco disse que é "diante do sofrimento que se mede o verdadeiro desenvolvimento dos povos” — Foto: VaticanNews


Disputa entre a ala mais conservadora e a mais liberal provoca cismas e tensão entre cristãos

Por João Luiz Rosa — De São Paulo

A notícia pegou a todos de surpresa: em janeiro, a Igreja Metodista Unida - segunda maior denominação protestante dos Estados Unidos, com 13 milhões de membros no mundo, quase a metade disso no país - anunciou que vai se dividir em duas. Com a cisão, passará a aceitar oficialmente casamentos entre pessoas do mesmo sexo, algo que muitos pastores e congregações já faziam. A nova igreja que será criada, mais tradicionalista, manterá a proibição.

A decisão se segue a outras divisões que vêm marcando as igrejas conhecidas como “mainline protestants”, as mais antigas e influentes da sociedade americana. A Igreja Presbiteriana dos Estados Unidos, a PCUSA, maior congregação calvinista do país, alterou sua constituição em 2015 para permitir não só o casamento gay, como a ordenação de pastores homossexuais - homens e mulheres. A Igreja Evangélica Luterana e a Igreja Episcopal, esta última de tradição anglicana, fizeram movimentos semelhantes. Todas perderam parte do rebanho por causa das mudanças. É o que deve ocorrer também com a Igreja Metodista Unida. Segundo previsões, de 30% a 40% dos membros podem abandonar suas fileiras depois da separação oficial, prevista para o mês que vem.

Na Igreja Católica, dilemas semelhantes acirram a disputa entre a ala mais conservadora e a mais liberal do clero. Com dois agravantes. O primeiro é que a essas questões se somam outras, mais específicas do catolicismo, como a participação dos divorciados na eucaristia, os métodos contraceptivos, o fim do celibato e a aceitação de padres casados. O segundo é que, enquanto entre os protestantes as diferenças se resolvem, no limite, com a criação de novas denominações, para Roma o separatismo é praticamente impossível. É central para os católicos a concepção de uma igreja única e indivisível; mesmo que, na prática, o catolicismo abrigue diversas correntes diferentes entre si, e até conflitantes.

As igrejas cristãs passaram a enfrentar essas questões com mais contundência porque o clamor social aumentou muito. “É um reflexo da globalização”, diz a antropóloga Lídice Meyer Pinto Ribeiro, especialista em ciências da religião e professora convidada da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, em Lisboa. Com a internet, em particular as redes sociais, mudanças religiosas ocorridas em um determinado lugar são assimiladas mais rapidamente em outros. Fica mais difícil conservar as tradições. “As discussões não são novas. O que é novo é a facilidade de comunicação”, afirma.

Religiões hegemônicas, que se estabeleceram há mais tempo e abrangem uma parcela majoritária da população, tendem a ser mais plurais, porque nem todos os seguidores assumem a totalidade dos dogmas. São os chamados “não praticantes”. Como o envolvimento é parcial, eles aceitam mudanças com mais facilidade, explica Lídice. Já as igrejas mais recentes e que não têm maioria costumam ser sociedades mais fechadas, até como forma de preservar sua identidade frente à crença dominante.

 
Padre reza missa para igreja vazia em Carenno, Itália, devido às medidas de restrição 
da pandemia da covid-19, que levam igrejas a adotarem modernizações 
— Foto: Antonio Calanni/AP

Nos Estados Unidos, de colonização protestante, esses grupos são hegemônicos. Embora o rebanho tenha diminuído oito pontos percentuais em uma década, de 2009 até o ano passado, as igrejas reformadas ainda representavam 43% da população americana no ano passado, segundo o Centro de Pesquisa Pew, de Washington. No grupo estão as “mainline protestants” e as evangélicas, de formação posterior e mais conservadoras. Os católicos, que são minoria, representavam 20% dos americanos em 2019.

No Brasil, a Igreja Católica, que chegou com os colonizadores portugueses, viu o número de fiéis diminuir de 73,6% para 64,6% da população entre 2000 e 2010, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Apesar disso, o Brasil continua a ser considerado o maior país católico do mundo, com 10% do rebanho global. Nas últimas décadas, a Igreja Católica tem perdido espaço rapidamente para os evangélicos, incluídas nessa categoria as igrejas protestantes históricas e os grupos pentecostais e neopentecostais. Estes últimos são os principais responsáveis pelo aumento. Entre 2000 e 2010, os evangélicos passaram de 15,4% para 22,2% da população. Números mais recentes mostram que a tendência se intensificou. Em janeiro, o instituto Datafolha publicou levantamento segundo o qual 50% dos pesquisados se declararam católicos e 31%, evangélicos.

Na década de 1990, com o neopentecostalismo e o surgimento de grandes concentrações religiosas, como a Marcha para Jesus, o cenário brasileiro evangélico passou a mudar mais rapidamente, diz a professora Lídice. Posteriormente, surgiram igrejas segmentadas, orientadas ao público gay, adeptos do heavy-metal, surfistas etc.

“As religiões lidam com o eterno, com aquilo que não passa. Apesar de tudo, vivem inseridas na história e na mudança”, diz o historiador Leandro Karnal, professor doutor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Há vários exemplos históricos, afirma. As mulheres, por exemplo, foram muito importantes no século I, mas perderam essa influência na Idade Média. A situação voltou a mudar nas últimas décadas, com denominações protestantes aceitando pastoras, diaconisas e bispas, inclusive lésbicas.

“O mundo mudou, e a maioria das religiões responde de forma lenta. Aceitar é inevitável, porém, resistir reforça identidade e acolhe muitos medos. E o medo é fonte de poder. Ser uma instituição que resiste ao que ‘está aí’ também ajuda a angariar pessoas”, afirma Karnal. 
 
“Live” de missa conduzida por padre em igreja vazia no Domingo de Ramos, em Bogotá, 
Colômbia: igrejas estão reforçando presença na internet devido à covid-19 
— Foto: Ivan Valencia/Bloomberg

Com 1,3 bilhão de fiéis no mundo, segundo o Anuário Pontifício de 2019, a Igreja Católica enfrenta, mais do que qualquer outro grupo cristão, a dificuldade de fazer alterações profundas. É consenso que, em uma organização com essas proporções, fazer manobras rápidas ou radicais é de alto risco.

Em janeiro, o papa Francisco substituiu um de seus principais críticos nos Estados Unidos, onde se concentram muitos de seus opositores mais contundentes. Francisco aceitou a renúncia do arcebispo da Filadélfia, Charles J. Chaput, que apoiava a negação da comunhão a políticos católicos favoráveis ao direito ao aborto e se opunha à legalização do casamento gay. Com 75 anos, o religioso havia chegado à idade de se aposentar. Mas o papa tinha o direito de negar o pedido e mantê-lo no cargo. Preferiu não fazê-lo.

Em reportagem sobre o assunto, o jornal “The New York Times” afirmou que um grupo pequeno, mas influente, de prelados americanos tem repetido que o papa pode estar levando a Igreja Católica em direção a um cisma. Não é pouca coisa. Em 2 mil anos, o catolicismo passou por apenas duas rupturas, ambas com repercussões profundas na maneira como as pessoas pensam e se organizam - em 1054, quando católicos romanos e ortodoxos romperam entre si, e no século XVI, com a Reforma Protestante.

O papa tem reagido aos críticos. Em setembro do ano passado, a bordo do avião que o levava de volta a Roma, depois de uma viagem de seis dias à África, ele declarou a jornalistas: “Rezo para que não haja cismas. Mas eu não tenho medo”.

Francisco respondia a pedidos dos repórteres para comentar uma observação que fez em Moçambique, dias antes. Ao ser apresentado a um livro cujo autor, um jornalista francês, dizia haver um esforço americano bem financiado e apoiado pela mídia para minar seu pontificado, o papa afirmou que era uma honra que os americanos o atacassem.

Disse que os comentários que tece sobre justiça social, por exemplo, são idênticos aos feitos por João Paulo II (pontífice entre 1978 e 2005]. “[São] as mesmas coisas! Eu o copio. Mas eles dizem: o papa é comunista... As ideologias entram na doutrina e, quando a doutrina entra na ideologia, é aí que existe a possibilidade de um cisma.”

Ao assumir o comando da Igreja Católica, em março de 2013, Francisco pareceu um sopro de ar novo na instituição. Em seu primeiro pronunciamento, ele brincou com a multidão diante da Basílica de São Pedro. Disse que os cardeais haviam ido até o fim do mundo para buscar o novo pontífice, numa referência a seu país natal, a Argentina. Francisco é o primeiro papa nascido no hemisfério Sul, para onde o eixo do cristianismo tem se inclinado nas últimas décadas.

Depois do pontificado de seu antecessor, o conservador Bento XVI - primeiro papa a renunciar desde Gregório XII, em 1414 -, muitas expectativas se concentraram em Francisco e sua capacidade de modernizar a igreja. Mais recentemente, no entanto, ele passou a receber críticas severas na Europa. Muitos grupos estão impacientes com o que consideram uma desaceleração no andamento de reformas aguardadas e necessárias.

Uma das maiores frustrações foi com a exortação apostólica “Querida Amazônia”, publicada em fevereiro. A expectativa era que o papa Francisco incluísse no documento a possibilidade de ordenar homens casados como padres para suprir a falta de sacerdotes na região. A sugestão foi aprovada em setembro do ano passado pelo sínodo da Amazônia, uma assembleia episcopal, mas ficou fora do documento.

Apoiada por 128 bispos durante a votação, contra 41 contrários, a proposta de ordenar homens casados disseminou o temor de que a mudança acabasse abrindo as portas para o fim do celibato dos padres, que é observado desde o século XII e se tornou obrigatório a partir do século XVI. A ordenação de mulheres como diaconisas - uma função eclesiástica auxiliar - também não foi abordada na exortação, que não chega a ser um decreto, mas é importante porque funciona como um guia para os católicos.

No Brasil, a maioria dos católicos apoia as duas medidas. Oito entre dez fiéis aprovam a participação das mulheres no sacerdócio e 56% são a favor de que os padres possam se casar, segundo levantamento do Centro de Pesquisa Pew. É mais que em qualquer outro país que integra a região amazônica.

Ao se retrair na agenda de reformas, o risco é que o papa acabe ficando sozinho, tendo de enfrentar críticas ferozes dos conservadores, que acham que ele está indo longe demais, e o descontentamento dos progressistas, para quem não está chegando longe o suficiente.

“É um dilema. Se a igreja não se atualizar, perderá fiéis e ficará datada. Se lançar medidas modernizadoras, também perderá fiéis”, afirma Karnal. “No século XIX, o ultraconservador Pio IX [pontífice entre 1846 e 1878] resistiu a tudo que cheirasse a moderno, do socialismo à democracia. É difícil dizer se o dano foi maior que o benefício.” Uma frase do filme “Dois Papas” (2019), dirigido pelo brasileiro Fernando Meirelles, ilustra bem a situação, diz o historiador: “Quando a igreja se casa com uma época, fica viúva na seguinte”.

O desafio católico, compara, é construir um único prédio, com múltiplas alas. “Que volte a missa em latim para quem desejar, mas também na língua de cada país. Que existam festivais com guitarras e igualmente canto gregoriano”, afirma o professor e conferencista. “Se quiserem restaurar o véu das mulheres na missa, ok. E que também haja modelos diferentes”, diz.

Questões sociais já fraturaram as igrejas cristãs anteriormente. No período que antecedeu a Guerra de Secessão (1861-1865) nos Estados Unidos, muitas denominações reformadas racharam porque uma parte dos membros apoiava a escravidão e a outra queria a abolição. Os primeiros citavam a Bíblia para dizer que não havia, no Novo ou no  Velho Testamento, nenhuma proibição explícita a ter escravos. E que, portanto, a prática era justa. Os abolicionistas também recorriam à Bíblia. Argumentavam que, a despeito dessa ausência, a escravidão afrontava os mandamentos mais caros expressos pelo livro, como amar ao próximo como a si mesmo, o que a tornava incompatível com o cristianismo.

A Bíblia continua relevante nas discussões de hoje, principalmente entre as igrejas protestantes, nas quais o livro sagrado ocupa papel central como fonte de autoridade. Parte dos grupos reformados tem uma abordagem mais literal dos textos, que consideram imutáveis. É o caso da maioria das igrejas evangélicas, no Brasil e nos Estados Unidos. Outros, como as “mainline”, consideram que a Bíblia deve ser lida à luz da cultura de cada época, o que torna mais flexível o significado dos textos.

O reverendo Aldo Quintão, da Catedral Anglicana de São Paulo, na zona oeste da cidade, já deu a benção a uniões homoafetivas e entre divorciados, além de casar seguidores de diferentes religiões. “Mas prefiro dizer que caso seres humanos, sem discriminação”, afirma. Casado, pai de um filho, cujo casamento ele dirigiu em janeiro, o pároco começou a carreira religiosa no catolicismo. Desistiu de virar padre três meses antes de sua ordenação. Em 1998, entrou para a Igreja Anglicana.

Formado em teologia, filosofia e pedagogia, o pároco conta que foi advertido por colegas religiosos a não celebrar uniões homoafetivas quando teve a ideia, mas prosseguiu mesmo assim. “Decidi fazer por convicção”, afirma. Quintão diz que a Bíblia está repleta de leis que, com o tempo, foram superadas. Cita, por exemplo, o princípio do “olho por olho e dente por dente”. Diz que quando se pergunta por que mulheres flagradas em adultério não são mais apedrejadas, a resposta dos líderes religiosos é que isso mudou. Mas que para outras regras, o mesmo princípio não é aplicado. “Precisamos fazer uma releitura da Bíblia”, afirma.

Na Europa Ocidental, sede do catolicismo e berço do protestantismo, a frequência aos serviços religiosos tem caído rapidamente. Na média, entre 15 países pesquisados pelo Centro de Pesquisa Pew, 91% da população diz ter sido batizada, 81% afirmam que cresceram sob influência da religião e 71% se declaram cristãos. Mas só 22% vão à igreja pelo menos uma vez por mês. No Reino Unido, palco de embates religiosos históricos no passado, o número de cristãos não praticantes já é três vezes superior (55%) ao dos que frequentam a igreja regularmente (18%).

A surpresa é que, apesar desses números, os especialistas têm abandonado a expressão criada para definir esse fenômeno - a secularização. É, provavelmente, uma das reversões mais drásticas no campo da  sociologia nos últimos tempos. “Estão indo contra o termo porque se pensava que a religião teria menos importância, mas isso não aconteceu”, diz a professora Lídice, da Universidade Lusófona. O islamismo tornou-se uma força em crescimento nos países europeus, que também assiste ao aumento dos movimentos “new age”, diz ela. “O mundo neopentecostal brasileiro está vindo com força para a Europa. E o candomblé e a umbanda estão entre as novidades. Já existem vários terreiros [no continente].”

As pesquisas demonstram que o que vem aumentando rapidamente é o número dos chamados “desigrejados”, observa a antropóloga. São pessoas que se afastaram gradativamente da religião ou tiveram decepções que os levaram a abandonar a prática religiosa. “Mas não são ateus”, ressalva.

Nos Estados Unidos, a porcentagem dos habitantes que se declaram ateus teve um aumento discreto, de dois pontos percentuais, em relação ao total da população entre 2009 e 2019. Em uma década, foi de 2% para 4%. No mesmo período, os agnósticos, que dizem não saber se existe ou não alguma divindade ou transcendência, tiveram aumento semelhante. Foi de 3% para 5%.

Já a porcentagem de pessoas sem religião em particular, os sem igreja, cresceu 5 pontos. Aumentou de 12% para 17% dos americanos, uma massa de 30 milhões de indivíduos. “As pessoas continuam buscando a religiosidade. O que está caindo em desuso é a igreja como instituição”, diz Lídice.

A marca da religiosidade contemporânea é a subjetividade, afirma Karnal, da Unicamp. “É a fé customizada”, diz. Esse comportamento não ocorre exclusivamente no âmbito da religião. “Vale para a fé e para tudo hoje em dia. Católicos e reformados escolhem qual igreja frequentar, qual padre ou pastor, qual modelo de comunidade. Não existe mais a fidelidade geográfica da paróquia tradicional”, diz o historiador. “Mesmo que haja mais rigidez em alguns setores, as pessoas adaptam incessantemente a teologia, a liturgia, a compreensão do sagrado e os hábitos religiosos.”

Em uma de suas palestras sobre o assunto, Karnal resumiu esse sentimento com uma menção ao teólogo Agostinho de Hipona [354-430 d.C.], ou Santo Agostinho, respeitado tanto por católicos como protestantes: “Agostinho diz que a pessoa que seleciona da Bíblia o que quer e rejeita o que não quer, acredita em si, e não na Bíblia”.

O surto da covid-19 ameaça embaralhar ainda mais as peças no tabuleiro religioso cristão. O Domingo de Ramos, celebrado no início desta semana, não contou com as tradicionais procissões que anualmente relembram a entrada de Jesus em Jerusalém, com os participantes cantando e acenando com folhas de palmeiras. E no domingo de Páscoa, data máxima do cristianismo, haverá um silêncio incômodo em vez das cerimônias especiais com que se costuma comemorar a ressurreição de Cristo.

Sem a possibilidade de se reunir fisicamente, devido às regras de isolamento social adotadas na maioria dos países, as igrejas estão reforçando sua presença na internet, que permanecia tímida até agora. Paralelamente, como costuma ocorrer em momentos de crise, o sentimento religioso parece mais agudo entre a população. Gente que não costuma ir à greja passou a acompanhar serviços religiosos on-line, seja por curiosidade, conveniência ou pela necessidade de se reconectar com a religião em meio às incertezas trazidas pelo novo coronavírus.

“A tendência é que haverá uma grande mudança”, afirma Lídice. “Missas e cultos on-line começam a estabelecer um padrão de frequência que não existia antes. Acredito que haverá uma volta à religião, e os próximos censos mostrarão isso.”

Do ponto de vista doutrinário, ainda não está claro que influência terá o isolamento social forçado. Mas já se percebe uma certa flexibilização de dogmas e costumes. Cerca de 20 dias atrás, por causa da impossibilidade de os fiéis irem à igreja se confessar, o Vaticano decretou o perdão total das vítimas do coronavírus e de seus familiares, além de profissionais da área médica. Há muito não se ouvia falar em indulgência, que é essa forma de perdão. Em vez de ter de se deslocar até o sacerdote, rezar um pai-nosso ou invocar a Virgem Maria passou a ser o suficiente, e em casa mesmo, segundo a determinação de Roma. Com a medida, a Igreja Católica deu um passo na direção do que o reformador Martinho Lutero (1483-1546) já dizia há mais de cinco séculos, afirma Lídice: que é possível se confessar diretamente a Deus, sem a intermediação de um sacerdote.

Décadas atrás, o papa Pio XI [pontífice de 1922 a 1939] precisou fazer uma reflexão especial sobre as missas transmitidas pelo rádio, enquanto seu sucessor, Pio XII [1939 a 1958], teve de debater a televisão, diz Karnal. Agora, a atenção se concentra na internet e nas redes sociais. “A religião ganha força na pandemia e o caráter virtual de tudo é inevitável”, afirma. “Há muitas questões contemporâneas: será possível cobrar dízimos de longe? Como serão os sacramentos sem a possibilidade de reunião de grupos? Uma benção pelo WhatsApp vale?”

O reverendo Aldo Quintão já começou a fazer transmissões on-line dos serviços religiosos da Catedral Anglicana. “Faço ‘lives’ todos os dias, ao meio-dia e às 18h, além das missas”, afirma. Com os resultados obtidos, não pretende parar. Pela internet, o público potencial é muito maior - e heterogêneo. Por vídeo, diz o pároco, qualquer pessoa pode participar, não importa sua orientação sexual, estado civil ou outras características que poderiam despertar alguma forma de intimidação ou restrição durante um serviço tradicional.

Virtualmente, um transgênero poderia se sentar no mesmo banco que uma pessoa extremamente conservadora, sem estranhamento para nenhum dos dois lados. Se os hábitos on-line realmente se firmarem na religião - como se prevê que aconteça em outras áreas da vida, como o trabalho remoto, a educação a distância e a telemedicina -, pode ser que a tecnologia abrande, no futuro, os dilemas da guerra cultural nas igrejas.

Dias atrás, Karnal conta ter visto, numa reportagem, que um padre estava atendendo a confissões sob um modelo de “drive-thru”. [O padre se chama Fábio Bosco e mora na cidade de São Francisco do Sul, no norte de Santa Catarina.] “Quem se adaptar estará melhor durante e depois da crise”, afirma o historiador. “A religião, todavia, é imensamente mais forte que padres e pastores. E costuma sobreviver a eles.”
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