Para Yuval Harari, pandemia criou “experimentos sociais incríveis”, mas “lógica da guerra” é risco para democracias
Texto: Luciano Huck / Fotos: Rafael Haddad
12 de abril de 2020
Em
novembro, quando a covid-19 ainda não dava sinais de existir, eu e
Yuval Noah Harari caminhávamos pelas ruas estreitas da comunidade de
Tavares Bastos, no Morro da Nova Cintra, no Rio de Janeiro. Ao saber que
Harari vinha ao Brasil para dar palestras bem pagas a empresários da
Faria Lima e falar no Congresso, fiz uma provocação: queria que ele
conhecesse o Brasil “de verdade”, aquele que vive a desigualdade sobre a
qual ele discorre em seus fantásticos best-sellers.
Além
da vista deslumbrante da Baía de Guanabara, Tavares Bastos é uma das
poucas favelas do Rio fora do domínio do tráfico e das milícias. O
motivo é sua localização: ao lado da comunidade foi instalada, em 2000, a
sede do Bope (Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar).
Queria
que Harari visse o lugar onde moram alguns dos protagonistas
silenciosos de seus livros. O motorista de ônibus que deve perder o
emprego com a automatização dos coletivos. A operadora de telemarketing
que se tornará dispensável em razão da inteligência artificial. A
professora da escola pública que forma as novas gerações, a enfermeira
do SUS que prolonga vidas e tantos outros.
Harari
– um dos filósofos mais influentes da atualidade, autor de Sapiens,
Homo Deus e 21 Lições sobre o Século 21 – topou subir o morro. E foi uma
experiência incrível para todos. Nossa relação pessoal nasceu por
acaso. Anos antes, havíamos dividido uma mesa de café da manhã, em um
evento na Itália. Eu com Angélica; ele com Itzik, seu marido e fiel
escudeiro. Cinco meses depois do nosso passeio em Tavares Bastos, o
mundo é outro. Uma pandemia está mudando a humanidade e temas que Harari
tanto estuda – como evoluímos, nossa relação com tecnologia e ciência, o
papel da empatia – nunca estiveram tão presentes.
Para
entender melhor essas questões, conversei com Harari na última
terça-feira. Eu, isolado em minha casa no Joá, no Rio, e ele, em seu
apartamento, em Tel-Aviv.
Luciano Huck: Vi
que, nos últimos dias, você participou de debates e deu entrevistas
para meios de comunicação do mundo todo. Isso sem sair de casa e usando a
tecnologia – assunto que você trata há bastante tempo. Como você vê
essa contradição aparente: estar em casa e, talvez, mais do que nunca
falar com o mundo todo?
Yuval Harari: Todos
os processos de que falamos nos últimos anos sobre tecnologia e
vigilância, o impacto do online e o poder das mídias sociais, agora
estão passando por transformações enormes e ainda mais rápidas. Por
exemplo, na minha universidade em Jerusalém, falamos há mais de 10 anos
sobre fazer alguns cursos online. Houve tantas discussões que acabamos
não abrindo nenhum curso digital. Mas, com a pandemia, em uma semana a
universidade inteira foi transferida para o universo online.
Luciano Huck: Você
publicou best-sellers refletindo sobre o passado e o futuro, mas seu
último livro aborda os desafios atuais da humanidade. No século 21, já
estávamos vendo transformações drásticas em um período muito curto de
tempo – meses ou semanas. A atual crise alterou de alguma forma tua
visão?
Yuval Harari: As
pessoas precisam estar atentas ao fato de que temos muitas opções nessa
crise. Em outras palavras: o futuro não está predeterminado. Não há um
roteiro único de como lidar com a epidemia e a crise econômica. Nós –
cidadãos e governos – teremos de tomar algumas decisões muito
importantes nos próximos meses, que vão mudar o mundo completamente.
Governos estão fazendo experimentos sociais incríveis, envolvendo
trabalho online ou fornecendo renda básica universal. E isso vai mudar o
mundo. Precisamos entender que essa é uma crise política e não apenas
de saúde. As grandes decisões são, na verdade, políticas. Entender isso
depois que a pandemia passar será como chegar após o fim da festa – a
única coisa que restará será lavar a louça suja. Agora, governos estão
distribuindo dezenas, centenas de bilhões de dólares e decidindo como
remodelar o mercado de trabalho, o sistema educacional.
Luciano Huck: E
há uma grande armadilha nessa questão política, pois governos tomarão
decisões transcendentais, enquanto, em muitos países, estamos em meio a
um blecaute de liderança. Temos, como sociedade civil, um desafio enorme
para evitar que esses líderes – que, digamos, não têm mentes brilhantes
– tomem decisões trágicas para todos nós.
Yuval Harari: Exatamente.
A mídia e os cidadãos devem, é claro, seguir o que está acontecendo com
a epidemia, e não devemos ficar só nas estatísticas de doença e morte. É
preciso também estar atento ao que o governo está fazendo. Há bilhões
de dólares em jogo: quem está recebendo o dinheiro e quem é deixado de
lado? Outra questão são os novos regimes de vigilância de cidadãos
adotados por alguns países. Coisas que em um país democrático, alguns
meses atrás, pareceriam impossíveis, agora estão sendo feitas. Em alguns
lugares, como a Hungria, certos líderes tentam usar a situação para se
transformarem em ditadores. Sob o pretexto de combater a epidemia, eles
tomam poderes de emergência e basicamente desmantelam o sistema
democrático de freios e contrapesos.
É preciso também estar atento ao que o governo está fazendo. Há bilhões de dólares em jogo: quem está recebendo o dinheiro e quem é deixado de lado?
Luciano Huck: Estamos vivendo em uma ordem política de guerra, mas com o vírus – em vez de exércitos – como inimigo? Como você enxerga isso?
Yuval Harari: Devemos
ter cuidado ao comparar nossa situação com uma guerra. Líderes ao redor
do mundo estão fazendo isso, mas é perigoso, pois dá às pessoas a ideia
de que há um inimigo – não apenas o vírus, mas um inimigo humano – a
ser combatido. E isso faz com que se espere respostas em termos de
segurança pública – como o que está acontecendo em Israel, onde o
exército e a inteligência estão assumindo o controle da crise. Não é uma
guerra. É um tipo muito diferente de crise, e você precisa pensar de
uma maneira diferente. O principal não é matar inimigos. O principal é
cuidar das pessoas. Em uma guerra, os heróis são os soldados que avançam
com suas submetralhadoras. Na crise atual, os protagonistas são os
profissionais de saúde que enfrentam duras jornadas nos hospitais. Isso
exige uma maneira diferente de pensar sobre o que está acontecendo.
Luciano Huck: Olhando
a partir do contexto brasileiro, essa tua mensagem tem um aspecto bem
interessante. A meu ver corretamente, o Congresso nacional está propondo
uma emenda constitucional destinando recursos à luta contra o
coronavírus, isolando estes gastos do orçamento anual do governo, mas
ela foi batizada de “Orçamento de Guerra”.
Yuval Harari: É um orçamento de saúde para cuidar das pessoas. Essa é a principal questão.
Luciano Huck: Estivemos
juntos na favela de Tavares Bastos, no Rio de Janeiro. Você vivenciou a
enorme desigualdade social – que, aliás, existe em todos os estados
brasileiros, sem exceção. Precisamos de soluções definitivas para nossas
favelas. Não podemos atravessar mais uma geração sem que esta questão
comece a ser encaminhada definitivamente. Como você vê os efeitos dessa
pandemia sobre a pobreza e a desigualdade, sobre lugares como Tavares
Bastos?
Yuval Harari: Muitas
das diretrizes de distanciamento social e isolamento são impraticáveis
em um lugar como uma favela, onde uma pessoa divide um espaço muito
pequeno com muitas outras, compartilhando um banheiro, por exemplo. E,
claro, você precisa sair para comprar comida e coisas assim. E
provavelmente serão essas pessoas as mais atingidas pela crise
econômica. E, mesmo em uma escala maior, quando você olha para o mundo
inteiro, a desigualdade entre diferentes países agora está se tornando
muito mais forte. Por enquanto, o foco da crise foi o mundo
desenvolvido, primeiro no leste da Ásia, depois na Europa e, agora, na
América do Norte. O medo é que o pior venha quando a epidemia se
espalhar pela América do Sul, África e Oriente Médio. Lá, os sistemas de
saúde estão em uma situação ainda pior. Os EUA podem gastar US$ 2
trilhões em um pacote de resgate para a economia. O Brasil não tem US$ 2
trilhões. Portanto, a grande questão é o que acontecerá no Brasil, no
Egito, em Bangladesh. A menos que tenhamos um plano de ação global, isso
poderá causar o colapso de alguns países, o que desestabilizará o mundo
inteiro.
Luciano Huck: O
Brasil está diante de uma situação muito complicada: boa parte da
população, incluindo os mais de 13,6 milhões que vivem em favelas, corre
o risco de voltar à pobreza ou aprofundar nela em semanas. Há relatos
do tipo: “Eu estava trabalhando em uma loja no shopping, minha mulher é
manicure e as crianças estavam na escola. Em duas semanas, a loja faliu,
não há mais clientes para minha mulher e as crianças estão em casa sem
aulas. Tenho ainda de pagar pelo almoço delas, despesa que não havia
antes, e voltarei à pobreza extrema em duas semanas.” A ciência nos
prova a importância de ficar em casa neste momento. Mas as pessoas estão
passando fome em muitos locais, o que torna muito mais difícil lidar
com a pandemia e o isolamento social. O governo brasileiro enfrenta
problemas de dados, logística, sensibilidade social e coordenação para
fazer o dinheiro chegar rapidamente a quem mais precisa. Portanto, por
um lado, temos um problema de saúde realmente sério e, por outro, uma
crescente pressão social. A sociedade civil está se movimentando para
que comida chegue na mesa dos mais afetados e a filantropia deu um salto
– já doamos, em poucas semanas, mais do que no ano inteiro de 2019. Mas
a situação é muito trágica, inclusive porque muitas dessas vítimas
ainda não conseguem entender a gravidade dela. Então, eu te pergunto: o
que pode melhorar a vida das pessoas de classe baixa, classe média ou em
áreas rurais?
Yuval Harari: Não
posso prever o futuro porque ele ainda não foi escrito, mas isso
dependerá das decisões que tomamos hoje no Brasil, em Israel e em todo o
mundo. A grande questão é se enfrentamos esta crise como uma sociedade
global, por meio da solidariedade e cooperação entre países, ou se
lidamos com ela por meio do isolacionismo nacionalista e da
concorrência. Por exemplo, como devemos enfrentar a escassez de recursos
médicos – kit de testes, respiradores, máscaras, luvas? Todos os países
dependem de outros para obter esses recursos, precisamos de uma
cooperação global, para tornar a produção mais eficiente e para
distribuir de maneira justa qualquer equipamento médico existente.
Evitando o monopólio desses recursos pelos países mais ricos. Essa é uma
decisão que precisamos tomar – o futuro não é predeterminado. Se
lidarmos com isso de maneira cooperativa, a crise será menos grave e,
depois da crise, teremos um legado de solidariedade humana. Se, por
outro lado, for cada país por si e cada um lutando entre si, culpando um
ao outro, então não apenas a crise será muito mais grave, mas teremos
uma atmosfera envenenada depois por muitos anos. Espero que as escolhas
sejam feitas com sabedoria. O Brasil e outros países da América do Sul e
Oriente Médio não serão capazes de lidar com essa dupla crise na saúde e
na economia, a menos que recebam ajuda dos países mais ricos. Nos
últimos anos, as relações entre países se deterioraram. E agora estamos
pagando o preço por isso. Espero que não seja tarde demais para reverter
o curso. Da mesma forma, se você pensar simplesmente na situação
econômica, agora é a hora de organizações internacionais, como o Fundo
Monetário Internacional e o Banco Mundial, aliados aos países mais
ricos, criarem uma rede de segurança global, para garantir que nenhum
país caia em completo caos econômico.
O Brasil está diante de uma situação muito complicada: boa parte da população corre o risco de voltar à pobreza ou se aprofundar nela em semanas
Luciano Huck: Não
estávamos preparados para o isolamento. Sei que você usa meditação para
encontrar equilíbrio e conduzir seu processo criativo (anualmente Yuval
fica 3 meses em meditação e isolado). Como você está lidando
pessoalmente com a quarentena? Muitas pessoas estão ansiosas ou com
muito medo - inclusive porque seu espaço e direitos de ir e vir estão
tão mais restritos.
Yuval Harari: Precisamos
enfatizar a saúde mental. Não é apenas a saúde física, não é apenas a
economia. É também uma crise de saúde mental e temos de dar apoio às
pessoas nesse sentido. Você sabe, eu sou um dos sortudos. Tenho uma casa
relativamente grande. Não estou sob nenhuma ameaça financeira. Na
verdade, estou trabalhando mais do que nunca. Sim, eu me preocupo com a
situação política. Tenho parentes que podem ficar doentes. Minha avó tem
98 anos e, se ela pegar o vírus, provavelmente morrerá, pois ela também
tem doenças crônicas. Mas, pessoalmente, estou em uma boa situação. Sei
que milhões de outras pessoas, em Israel e no Brasil, estão trancadas
num pequeno apartamento com uma grande família. Talvez com o negócio
deles em colapso, ou talvez tenham perdido o emprego. É uma situação
extremamente difícil. E, pensando novamente sobre como isso não é uma
guerra, mas uma crise de saúde, é preciso oferecer também atendimento de
saúde mental. Este é o momento em que precisamos de meditação,
precisamos de psicologia, precisamos de serviços sociais, de uma rede de
segurança mental que ajude a lidar com a crise. E também esperança para
quando a crise acabar.
Luciano Huck: A
pandemia nos atingiu enquanto alguns líderes mundiais flertam com o
autoritarismo, negacionismo, terraplanismo, xenofobia, repressão e
tornam o debate político um “nós contra eles”. Essa pandemia também nos
mostrou como o mundo está interconectado - uma onda em um lugar pode
causar um tsunami em outro. Então você acha que essa crise pode nos
ajudar de alguma forma a melhorar nossos relacionamentos humanos e de
alguma forma a melhorar o espaço da política?
Yuval Harari: Alguns
políticos estão usando a crise para pregar o ódio contra estrangeiros, o
ódio às minorias, dizendo que devemos nos preocupar apenas com nós
mesmos, fechando fronteiras e abandonando a democracia. Mas não precisa
ser assim. Não é verdade que as ditaduras lidam com essas crises melhor
do que as democracias. Geralmente é o oposto. O problema das ditaduras é
que, quando uma pessoa toma todas as decisões, o processo é mais
rápido. Mas se a pessoa tomar a decisão errada, quase nunca admitirá um
erro. Ele apenas continuará com o mesmo erro, culpará os outros –
traidores e inimigos – e exigirá ainda mais poder. A democracia é mais
eficiente porque há uma pluralidade de vozes e ideias. Se algo não
funciona, tentamos outra coisa. Para fazer as pessoas seguirem as
orientações, um povo motivado e educado é muito mais forte do que um
povo ignorante e policiado. Se, por exemplo, você quer fazer as pessoas
lavarem as mãos, uma maneira de fazer isso é colocar um policial ou uma
câmera em cada banheiro e forçar as pessoas a lavarem as mãos. Outro
método é apenas educar as pessoas sobre vírus e bactérias, como eles
causam doenças, e como você pode se proteger apenas lavando as mãos. E,
se as pessoas sabem disso, você não precisa de um policial. Pode-se
apenas confiar nas pessoas – um método muito mais eficiente. Além disso,
no nível internacional, o isolacionismo não é a solução para lidar com a
epidemia. A coisa mais importante para lutar contra a epidemia é a
informação, que geralmente vem do diálogo e das experiências de outros
países. A grande vantagem dos seres humanos sobre o vírus é que podemos
cooperar de formas que o vírus não consegue. Um vírus na China não pode
dar conselhos a outro no Brasil sobre como infectar pessoas, mas médicos
chineses podem ajudar muito colegas brasileiros. O governo brasileiro
está enfrentando agora um dilema que a Coréia ou Taiwan enfrentaram dois
meses antes. Se não usarmos esse poder de cooperação, será muito
difícil derrotar o vírus. Portanto, não sou contra impor a quarentena e
fechar fronteiras e assim por diante, mas até isso precisa ser feito com
base na cooperação, e não na culpa e no ódio aos outros.
Luciano Huck: Filmes
futuristas – como Blade Runner, Robocop, Total Recall ou Matrix –
marcaram a tua e a minha juventude, e imaginávamos um futuro em que o
governo sabia tudo sobre nós apenas olhando para os nossos rostos.
Agora, em certo sentido, isso é uma realidade, basta ver a realidade na
China nos últimos tempos. Como você vê essa dinâmica entre vigilância e
pandemia, incluindo países emergentes como o Brasil?
Yuval Harari: Certamente
precisamos confiar nas novas tecnologias para combater a epidemia. É a
nossa vantagem sobre os vírus, nossa capacidade de criar novas
tecnologias, sejam medicamentos ou vigilância, que nos dizem quem está
doente e quem está infectado. Mas temos de fazer isso de maneira muito
cuidadosa. Caso contrário, podemos criar países totalitários. Vemos
agora que mesmo os países democráticos estão instituindo esses sistemas
de vigilância que provavelmente continuarão a existir depois que a crise
acabar. Eles são muito fáceis de criar e difíceis de eliminar, porque
sempre há outra emergência ou outra justificativa. E temos de lembrar
algumas diretrizes sobre vigilância. Antes de tudo, a autoridade para
vigiar não deve ser dada às forças de segurança, como a polícia ou
militares, porque elas podem abusar dela. Em vez disso, ela precisa
estar nas mãos de algum tipo de autoridade sanitária, talvez uma nova
autoridade – uma autoridade epidemiológica –, completamente separada da
segurança pública e focada apenas na saúde das pessoas. As pessoas que
ouvem a palavra vigilância geralmente pensam no governo ou na empresa
olhando para você e para mim. Mas também pode ser diferente: podemos
usar a vigilância para que você, eu e todos os espectadores possam
monitorar o governo. Por exemplo, mencionamos anteriormente que os
governos agora gastam bilhões e bilhões de dólares para salvar empresas.
Isso deve ser transparente. Eu quero monitorar isso. Quero garantir que
o governo esteja aproveitando esta oportunidade para salvar pequenas
empresas, e não apenas para salvar as grandes corporações próximas ao
governo. Então, sim, precisamos vigiar as pessoas, mas, ao mesmo tempo,
as pessoas precisam vigiar o governo e ver o que ele está fazendo. Se
mantivermos essas duas diretrizes – a vigilância das pessoas por uma
organização de saúde, não pelas corporações, pela polícia ou exército,
e, ao mesmo tempo, um meio em que eu possa vigiar o governo – a
democracia poderá ser preservada. Isso será também muito útil no combate
a essa epidemia e as que vierem depois. Uma das coisas boas dessa crise
é que você vê que a grande maioria das pessoas ainda confia na ciência
mais do que em qualquer outra coisa. Nos últimos anos, todos esses
políticos populistas disseram às pessoas que os cientistas são uma
pequena elite desconectada. E existiam todas essas teorias da
conspiração em torno da mudança climática ser uma farsa, por exemplo.
Agora, felizmente, vemos que em uma crise real quase todo mundo se volta
para a ciência. Em Israel, fecharam as sinagogas. No Irã, as mesquitas.
Igrejas em todo o mundo também. Por quê? Porque os cientistas
recomendaram. Assim, mesmo a Igreja, judeus e muçulmanos religiosos, em
uma crise, sabem que aqueles em quem você realmente deve confiar são os
especialistas científicos. Espero que essa lição permaneça.
Luciano Huck: Faço,
então, uma pergunta que talvez soe ingênua. Estamos vendo países como
Israel, onde você mora, usar tecnologias de combate ao terrorismo para
rastrear cidadãos. De fato, todos sabemos que o governo gasta muito mais
dinheiro com segurança e defesa do que em ciência e saúde. Alguns meses
antes da pandemia, o Brasil havia acabado de aprovar um orçamento de
bilhões de reais, resultando em cortes nos investimentos em ciência e
pesquisa médica. Claro, historicamente a tecnologia militar tem
impulsionado a civil, numa espécie de simbiose entre essas áreas. Mas
como você imagina que seria o mundo se gastássemos mais em ciência e
saúde pública do que em guerra?
Yuval Harari: Não
estamos na Idade Média. Agora temos a ciência e a tecnologia para
derrotar essas epidemias, seja o coronavírus ou qualquer outra. Na Idade
Média, quando a peste negra matou milhões, ninguém entendeu o que
acontecia, o que estava matando humanos, e o que poderia ser feito. Eles
pensaram: talvez Deus esteja nos punindo, talvez todos temos de ir à
igreja e orar e isso acabará. E é claro que não ajudou – apenas espalhou
a infecção ainda mais rápido. Agora, levou apenas duas semanas para os
cientistas identificarem o novo vírus, sequenciar todo o seu genoma e
criar testes confiáveis para saber quem está doente. Essa é a base
para conter a propagação da epidemia. E estamos trabalhando em
medicamentos e vacinas. Todo mundo está perguntando “quando” a vacina
estará pronta, e não “se” ela existirá. Portanto, não estamos
desamparados como na Idade Média e a base é a ciência. Até para lavar as
mãos: a base é o conhecimento científico. É preciso dar às pessoas uma
boa educação científica na escola para que elas saibam o que é um vírus e
no caso de uma epidemia, elas saibam o que fazer. Se você não dá às
pessoas uma boa educação científica na escola, elas não entendem as
epidemias e acreditam em todos os tipos de teorias ridículas da
conspiração. Se aprendermos a lição corretamente, depois que isso
acabar, investiremos muito mais não apenas em pesquisa científica, mas
também em educação científica para toda a população. Quando a próxima
epidemia chegar, estaremos em uma posição muito melhor para lidar com
isso. E, novamente, você mencionou despesas militares. É por isso que
enfatizo que isso não é uma guerra. É uma crise de saúde. Isso não é da
conta dos militares. Uma enfermeira de um hospital entende muito mais
dessa crise do que um general.
Luciano Huck: Em um artigo recente no Financial Times e
no início da nossa conversa, você questionou o que acontece quando todo
mundo trabalha em casa e se comunica à distância, quando uma escola
inteira e uma universidade vão para o online. No Brasil, 90% das escolas
públicas não estão conectadas – nosso sistema de ensino público é muito
analógico. Mas temos mais celulares do que cidadãos no Brasil. Somos
uma sociedade digital, mas com uma lógica de governo ainda analógica.
Você acha que essa pandemia pode aprofundar as desigualdade no aspecto
digital ou acelerar as mudanças necessárias?
Yuval Harari: São
as nossas escolhas que vão definir isso. Certamente é verdade que agora
vemos as consequências da desigualdade no mundo real e digital. Em
algumas escolas, você pode continuar ensinando, quase como de costume,
para que os alunos não sejam muito prejudicados. Em outras, isso é
impossível, pois elas não têm infraestrutura e os alunos não têm acesso a
internet ou a computadores em casa. Eles são deixados para trás. E com
isso a desigualdade só aumenta. O desfecho aqui pode ser governos
investindo mais para fechar essa brecha digital, não apenas na educação,
mas no mercado de trabalho e em outras instâncias. Quero dizer, também
existem oportunidades nessa crise. É a ideia que repeti ao longo de
nossa conversa: não é algo predeterminado. É uma escolha de onde
investimos nossos recursos. E por isso é tão importante não só
acompanhar as notícias sobre a epidemia, mas também observar o que está
acontecendo no nível político. Quais são as decisões que o governo está
tomando? Quais empresas estão economizando e quais empresas entraram em
colapso? Para onde vai o poder? Nada disso é predeterminado. Depende do
quanto estamos atentos e do que todos nós decidimos fazer.
Luciano Huck: Talvez,
para um país como o Brasil, o aprendizado dessa pandemia seja que
educação e tecnologia, somadas, podem superar muitos dos problemas da
atualidade e das últimas décadas. Minha pergunta final é sobre isso.
Qual é a grande oportunidade, em termos de aprendizado, dessa crise?
Yuval Harari: Uma
coisa muito importante é que, nessa crise, nosso maior inimigo não é o
vírus, mas nossos próprios demônios interiores. É o nosso ódio. É a
nossa ganância. É a nossa ignorância. São pessoas que incitam nosso
ódio, culpando a epidemia em algum grupo humano e nos dizendo para
odiá-los. É a nossa ganância. São grandes empresas que dizem: “Ei! Temos
tido dificuldades ultimamente, talvez possamos aproveitar essa
oportunidade para fazer com que o governo nos dê bilhões de dólares”.
São pessoas que não ouvem a ciência. Em vez disso, ouvem todos os tipos
de teorias da conspiração. Se conseguirmos derrotar nossos demônios
interiores – ódio, ganância, ignorância –, não apenas venceremos o vírus
com muito mais facilidade, como seremos capazes de construir um mundo
muito melhor depois que a crise acabar. Espero que seja exatamente isso
que faremos.
Luciano Huck: Gostaria de te agradecer, Yuval. Foi um prazer e uma honra conversar sobre suas ideias no meio dessa crise global.
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Fonte: https://www.estadao.com.br/infograficos/cultura,precisamos-entender-que-essa-e-uma-crise-politica-e-nao-apenas-de-saude,1088614
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