domingo, 31 de março de 2019

Nada é banal (com um sopro de poesia)

Lya Luft*

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Os deuses estavam de bom humor: abriram as mãos e deixaram cair no mundo os oceanos e as sereias, os campos onde corre o vento, as árvores com mil vozes, as manadas, as revoadas - e, para atrapalhar, as pessoas, que roubaram o espetáculo, misturaram as falas, rasgaram os cenários e mataram os atores.

O coração bate com força, querendo bombear sangue para as almas anêmicas. Mas onde está todo mundo? Correndo atrás da bolsa de grife, do iPod, do iPad, do corpo perfeito, do prazer máximo, da eternidade... ou de coisa nenhuma.

Tudo menos parar, pensar, contemplar. "Se eu paro pra pensar, desmorono."

Enquanto isso, a Morte enrola e desenrola seu rabo curvo atrás da porta, estreita os olhos, espreita, palita os dentes e... espera.

A menina complicada, lunática, enluarada, olhava atentamente os rostos adultos na grande mesa onde se lançavam de um lado para outro palavras e gestos como facas ou plumas. Ah, e os olhares... Amar para ela era natural como as cores e perfumes no jardim da mãe. Era assim para todos?

Ela consigo resolvia: claro que todos se amam. Ninguém vive de restos. Ninguém mente tão bem, com esses sorrisos e frases delicadas. E saía para brincar. Quando a vida não foi mais brincadeira, ela ainda queria adivinhar: esses se amam, seu silêncio é cumplicidade ou tédio? Querem estar longe ou gostam de estar perto? As amigas a chamavam de romântica: quem ainda se interessa por isso? Curte o momento! E riam.

Mas ela haveria de morrer achando que sem amor não valia a pena nem o primeiro passo na ponte que levava ao castelo.

Porque nada era banal: o lixo na praia, a mulher parindo no corredor de ladrilhos, as multidões iludidas, as ilhas dos amantes. Tudo era imenso, essencial, e terrível.

Por um instante, a gente desliga os aparelhos e vive um pouco. E percebe, como com um novo olhar, a luz que se filtra na mata, poeirinhas, polens, saliva de fada que ri à toa, ou caspa de duende armando suas artes.

A ventania chega atropelando tudo: recolhem-se crianças e coisas, e se aprecia a tempestade atrás da janela, como se espia a vida, sem ver direito, atrás da máscara de cada dia. Logo ali, o grande mundo mói a vida com suas engrenagens cruéis: mas naquele momento, naquela redoma de vidro simples na chuva cotidiana, no bosque encantado, fica o castelo da Bela Adormecida, ou a casa dos sete anões, ou de uma bruxa quase boa?

É assim o tempo: devora tudo pelas beiradinhas, roendo, corroendo, recortando e consumindo. E nada nem ninguém lhe escapará, a não ser que faça dele seu bicho de estimação.

Como acontece com as perdas: o jeito é perdê-las. E a vida? Há que vivê-la para saber.

(Nada é banal: a gente é que esquece.)
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* Escritora. Tradutora.
Fonte: https://flipzh.clicrbs.com.br/jornal-digital/pub/gruporbs/acessivel/materia.jsp?cd=857e9753bf235db1fa58ef2162bb6e42 
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CORAÇÃO E RAIVA


Michel Maffesoli*
 
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                  Em nosso progressismo dominante, achamos difícil aceitar que as eras se  sigam e não sejam semelhantes. Mentes agudas notaram corretamente o fim da era das revoluções (Eric Hobsbawm). Se soubermos perceber, com alguma lucidez, a arquitetura das sociedades contemporâneas, podemos dizer que estamos testemunhando a era das revoltas populares. É o que as elites entendem. Muito simplesmente porque o poder do povo, espinha dorsal irreprimível, está zombando do pode político. Seja qual for a sua cor. Essa reação carrega certa brutalidade. Mas não é esse o caso toda vez que uma mutação fundamental ocorre? É cansativo ouvir todas essas belas almas midiáticas levantando-se em coro, o coro das virgens amedrontadas, contra a violência, injustificável, é claro, dessas revoltas.

                  Esqueceram-se do que se sabe por tradição, a sabedoria popular que diz: não se faz omelete sem quebrar ovos. Em termos mais eruditos, esqueceram daquilo que Michel Bukanin repetidamente observou: “O prazer da destruição é ao mesmo tempo um prazer criativo”.  Se o progressismo, peculiar à modernidade, é dramático – tudo tem um solução, uma saída possível – a pós-modernidade vê o retorno do trágico, que remete a uma aporia, ao sem solução. Daí a dose de violência inerente ao “sentimento trágico da existência”. Ora, na contramão de uma realidade raquítica, em oposição a um princípio essencialmente econômico de realidade, cujo “poder aquisitivo” é o alfa-ômega, coração pulsante do sistema, as revoltas populares são estruturalmente uma perpétua “busca pelo Graal”, uma busca espiritual.

                  Pode parecer um tanto paradoxal consultar a inteligência do coração. Horresco referens! Isso chama atenção quando concebemos a inteligência apenas em sua forma racionalista. Na minha crítica ao “mito do progresso” de 1979, falei de uma casta tecnocrática, com suas variantes intelectuais ( agora se diz experts), política, jornalística, etc. Essa casta é, portanto, incapaz de entender que o interesse do povo se exprime melhor nas suas preocupações espirituais do que políticas. Simplesmente porque essa casta, em seu racionalismo mórbido, apesar de ser democrática, é nada menos que demofílica. 

                  As eternas ladainhas sobre valores republicanos e seus fundamentos democráticos mal dissimulam o vanguardismo elitista. Todos esses progressistas, em seus vários partidos, de direita ou de esquerda, querem revolucionar, reformar ou preservar em nome do povo. Mas não aceitam que o povo aja por conta própria. Essa pseudointelecualidade não pode estar mais superada no seu simplório progressismo como mostram a devastação ambiental que produzem. Não conseguem captar o ar do tempo, aquilo que o filósofo Ortega y Gasset, no seu monitoramento premonitório em “A Revolta das Massas”, chamou de “o imperativo atmosférico” do momento. Por não saber se adaptar à mudança do clima espiritual é que essa casta tecnocrática sofrerá o destino dos dinossauros: perecer. 

                  O mundo moderno está apodrecendo e morrendo. Seus representantes caídos não podem ver que toda transfiguração , pois é disso que se trata, tem uma dose de misticismo. O grande republicano Victor Hugo lembrava que não se pode pensar numa gota de vida sem misticismo. O que ele expressou assim: “Saber, pensar, sonhar. Tudo está aí”. Como qualquer sonho, o misticismo de “coletes amarelos” não necessariamente só deles. Mas expressa um instinto ancestral, que se mostra tanto nas discussões das rodinhas de cada esquina, onde se fala sem parar, mas também nos ataques aos símbolos extremos da sociedade de consumo: lojas e bancos da avenida Champs-Elysées, assim como aos centros do poder estatal. Eles quebram o brinquedo que não podem ter, mas, ao mesmo tempo, freiam a corrida infernal de consumo à qual a modernidade reduziu a energia coletiva. George Bataille descrevera bem  que consumir pode terminar em “se consumir”. 

                  Neste movimento, contrariando os experts que monopolizam a esfera pública, expressa-se aquilo que, na tradição tomista, Joseph de Maîstre, chamava de “direito divino do povo”. Soberania da potência natural que regularmente se faz presente para ativar a memória dos poderes estabelecidos, que são apenas representantes e devem prestar contas ao povo, legítimo soberano do qual tudo emana. Como o velho ditado lembra ( que é inútil traduzir): Omnis autoritas a populo

                  É essa autoridade que volta a ganhar força e vigor. Ela lembra que, como uma verdadeira realeza, a opinião é a rainha do mundo. Os “coletes amarelos” retomam a palavra novamente contra aqueles que, com a arrogância, a autossuficiência e a ostentação que conhecemos, monopolizaram-na até mais não poder. Os comentaristas falam compungidamente para não dizer nada. Mas já não conseguem enganar. 

                  Obcecados pelo econômico, esquecem que é uma crise moral que está em jogo. Não basta mais fornecer um amontoado de respostas tecnocráticas capazes de satisfazer alguns afetados e privilegiados e de tranquilizar uma terceira ou quarta idade sem horizonte. É impressionante a esse respeito ver que a participação no grande “Debate Nacional” foi colorida por “cinquenta tons de cinza”!
                  Em suma, espera-se menos uma resposta formatada do que a capacidade de saber fazer perguntas. Não convence mais um mundo sem dúvidas e cheio de respostas. Simplesmente porque é do inapreensível, do que está em formação, do que está questionado, que se pode aprender o possível de ser compreendido. Ou seja, a partir da vida real. Bachelard lembra em sua meditação sobre o desvaneio: “A nova era desperta a velha. O antigo retorna para viver no novo”. Isto é atual e pode ilustrar esta secessio plebis que são as esquinas contemporâneas. O povo romano, insatisfeito com o destino reservado a ele pelo Senado, que em nada correspondia às origens da República, a res pública que anima o inconsciente coletivo, retira-se para o Aventino.

                  É interessante lembrar que Erasmo em seu “Elogio da Loucura”, recordando essa “época antiga”, observa que não se tentou retomá-la com um discurso de moderação, discurso racional e cheio de boas intenções. Mas, ao contrário, por meio de uma narrativa. Agripa tenta convencer o povo improvisando uma fábula da relação complementar dos “membros e do estômago”. Isso foi eficaz. Diante das insurreições populares, devemos lembrar da importância do corpo coletivo como um todo. O corpo e a menta juntos numa mistura fértil. Esta é a função do mito, lembrar que o corpo social não se alimenta simplesmente do pão, mas precisa de um sonho para garantir-lhe a presença. Para existir.
                  Oxímoro: um corporeísmo místico. É esse oxímoro que a elite não conhece ou não quer entender. O expert não é mais um filósofo seguindo o árduo caminho do pensamento, mas, para usar o termo de Platão, um “filodoxo”. Ele corre, aqui e ali, para não perder nenhuma migalha da “sociedade do espetáculo”. É um elemento do show integrado. E não é mais, portanto, levado em consideração. Não se esqueça disso. É quando não sabemos dizer, com razão, o que é, quando o moralismo, aquilo que deveria ser, toma o controle, que o povo rompe. É também o momento em que os discursos demagógicos nascem, todos moldados com ódio, ressentimento e xenofobia. O desafio não é insignificante. Devemos encontrar as palavras menos falsas para enunciar o “prazer criativo” que, mais ou menos desajeitadamente, está em curso em nossa nascente pós-modernidade. Os lugares-comuns e as várias boas reflexões já não bastam, é preciso ter a audácia e a coragem de um pensamento de alto-mar. Mais uma vez, totalidade do ser, a coragem pode ser, ao mesmo tempo, “coração e raiva”.
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*Professor emérito da Sorbonne, membro do Instituto Universitário da França.
Fonte: Correio do Povo impresso. Caderno de Sábado, 30
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sábado, 30 de março de 2019

Por que somos egocêntricos, segundo este estudo


Resultado de imagem para Jesse Orrico/Unsplash
Pesquisa da Universidade Duke, nos EUA, revela que nosso cérebro tende a automaticamente 
priorizar tudo que se refere a nós mesmos, e não aos outros

Segundo estudo da Universidade Duke, o cérebro tende a automaticamente priorizar a auto-referência do indivíduo, 
o 'eu primeiro'

Um estudo publicado na edição de 1º de março de 2019 da revista científica Psychological Science indica que nós tendemos a reagir ao que acontece ao nosso redor se, primeiramente, o que está acontecendo se refere a nós mesmos, e não aos outros. Em outras palavras, prevalece a lógica do “eu primeiro”.

Ao divulgar a pesquisa, a Universidade Duke, na Carolina do Norte, nos Estados Unidos, deu um exemplo de como isso ocorre no dia a dia: você está conversando com alguém e, de repente, dá as costas para seu primeiro interlocutor porque ouviu outra pessoa dizendo seu nome.

“Nossas mentes automaticamente se voltam para nossos próprios nomes em lugares lotados e para nossos próprios rostos em fotografias”, exemplificou a agência de notícias Duke Today.

Como o estudo foi feito

O estudo foi feito por pesquisadores da área de psicologia e neurociência: Tobias Egner e yu-Chin Chiu (da Universidade Duke), Jie Sui (Universidade de Bath, no Reino Unido), Antao Chen e Shouhang Yin (Universidade Southwest, na China).

Os cientistas fizeram quatro experimentos, nos quais os 120 participantes voluntários foram treinados para associar palavras (“eu”, “amigo” e “estranho”) com cores aleatórias (azul, verde e roxo). “Eu”, por exemplo, poderia ser simbolizado pela cor “azul”.

Na sequência, um programa de computador pedia para os participantes localizarem as cores em um diagrama, como um jogo simples: pontinhos coloridos aparecem na tela e os participantes precisam memorizar onde estão as cores que se referem a eles e aos outros.

Nas quatro variações do experimento, os participantes localizaram muito mais rapidamente a cor que fazia referência à sua própria identidade (“azul”, por exemplo) e não identificaram imediatamente as cores dos outros (o “amigo” e o “estranho”).

Em uma das experiências, por exemplo, a cor do “eu” aparecia uma vez, enquanto as cores do “amigo” e do “estranho” apareciam duas vezes. Ainda assim, os participantes memorizaram melhor onde estava a cor do “eu”.

Isso indica, segundo as conclusões dos pesquisadores, que o cérebro humano tende a automaticamente priorizar a autorreferenciação (o “eu” como a referência para o que acontece ao redor) na memória de curto prazo, o que pode ajudar a compreender certos padrões egocêntricos no cotidiano.

O contexto do cérebro

O cérebro é formado por diferentes estruturas, com funções diferentes. Diversas estruturas cerebrais estão envolvidas no processo da memória de trabalho (também chamada de “memória de curto prazo”), que é um componente cognitivo que permite o armazenamento temporário de informação com capacidade limitada.

Em outras palavras, o cérebro armazena temporariamente o que considera “útil” no momento. Isso pode acontecer consciente ou inconscientemente.

A partir da memória de curto prazo, nós tomamos decisões diárias, simples ou complexas, pesando essas informações armazenadas no cérebro. Se alguém sempre dá prioridade a informações autorreferenciais, as decisões tendem a desconsiderar os outros e opiniões diferentes, privilegiando um ponto de vista egocêntrico.

Entre o egocentrismo e a empatia

A teoria do psicólogo suíço Jean Piaget (1896-1980), consagrada no século 20, defende que o egocentrismo não é inerente ao ser humano. Segundo sua tese, seria uma tendência da infância, que seria paulatinamente abandonada ao longo da vida. Entretanto, nos últimos anos, experimentos psicológicos têm investigado como o egocentrismo se manifesta na vida adulta.

Recentemente, estudos neurocientíficos também têm abordado como funciona a empatia, isto é, a capacidade de compreensão emocional do outro, que também ativa a rede neural do cérebro.

O estudo atual da Universidade Duke não diz o quanto o processo de autorreferenciação reflete um instinto “natural” ou se é possível evitar essa preferência egocêntrica e adotar uma postura mais empática.

“As pessoas priorizam elas mesmas nas suas mentes. A questão é: quão automática é essa priorização? É algo que não podemos evitar? Se não pudermos evitar, isso pode realmente influenciar preconceitos na tomada de decisões”
Tobias Egner professor do Departamento de Psicologia
e Neurociência da Universidade Duke, autor do estudo

 Segundo Egner, o próximo passo da pesquisa é conduzir novos testes para avaliar como se comporta essa tendência de prioridade egocêntrica diante de experimentos sobre altruísmo – um comportamento que beneficia e privilegia o outro, muitas vezes considerado sinônimo de “solidariedade”.
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Reportagem por Juliana Sayuri 26 Mar 2019 (atualizado 27/Mar 18h38)
Foto: Jesse Orrico/Unsplash
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Link para matéria: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2019/03/26/Por-que-somos-egoc%C3%AAntricos-segundo-este-estudo?utm_campaign=sds&utm_source=Newsletter

© 2019 | Todos os direitos deste material são reservados ao NEXO JORNAL LTDA., conforme a Lei nº 9.610/98. A sua publicação, redistribuição, transmissão e reescrita sem autorização prévia é proibida.
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sexta-feira, 29 de março de 2019

José de Souza Martins: Fazemos economia com educação, mas não com ignorância e privilégios

José de Souza Martins*
 
Educação não é mercadoria, como frequentemente dizem alunos críticos. É interação e reciprocidade. 

Muito se fala sobre as deficiências da educação brasileira e, injustamente, imputa-se à escola pública o nosso atraso. Esse atraso, todos sabem, expressa as condições impróprias e insuficientes da escolaridade e do exercício do magistério. Fazemos economia com educação, mas não a fazemos com ignorância nem com privilégios descabidos dos poderosos.

Temos limitações e desafios. O problema maior de nossa educação está numa questão social simples: o divórcio entre o senso comum pobre e o conhecimento que a escola e os professores devem transmitir aos alunos.

A educação brasileira não sabe lidar com o senso comum que, em nosso caso, é um fator limitante do diálogo educativo. Nos países cultos, o senso comum, já entre os estudantes, é altamente informado pela cultura erudita, pelas visitas aos museus de história, de arte e de ciências, pelo teatro, pela música erudita, pelo cinema culto. Até mesmo pelo respeito à historicidade de paisagens rurais e de cenários urbanos cuja relevância educativa é reconhecida por todos. Aquilo que, classificado como adjetivo em relação às ruas e estradas, é entre nós tratado como feudo do carro pelos habitantes e pelo poder público.

De modo que, naqueles países, a sala de aula é dinâmico lugar da ampliação e do aperfeiçoamento das informações e da lógica do senso comum enriquecido pelas agências de difusão da cultura. Seria, aqui, um laboratório de preservação e de refinamento de nossas tradições humanistas e de aprimoramento crítico de nossa consciência social. Um meio de superar nossa danosa alienação.

Naqueles países, o senso comum em si mesmo puxa as novas gerações para cima, para uma compreensão culta da vida e da realidade social. Os estudantes de lá estão muito mais próximos da arte, da literatura e da ciência do que a imensa maioria dos estudantes daqui. Lá, a escola e os professores estão cotidianamente empenhados na ressocialização de jovens e crianças a partir da matéria-prima de um rico senso comum a isso propício.

A escola não deve ser um lugar de estranhices e de professores supostamente esquisitos, que é como muitos pais e estudantes os julgam. Os frequentes episódios de agressão a professores e mesmo a alunos e de depredação de escolas apenas expressam a incivilidade desse divórcio. Não é surpresa que a escola apareça na consciência de alunos e de pais de alunos como instituição que lhes é adversária.

Não há ou nem sempre há, entre esses dois mundos, o da escola e o do senso comum, o liame da continuidade criativa e emancipadora. A escola de enquadramento, pública ou particular, que politicamente se robustece neste momento, não educa.

Educação não é mercadoria, como frequentemente dizem alunos críticos. É interação e reciprocidade. Nesse sentido, o professor só é professor se for um aprendiz, aluno de seus alunos para ensinar-lhes a superar limitações, intolerância, impaciência e pobreza cultural.

No período mais fecundo da política educacional brasileira, sociologia e antropologia, além de psicologia, foram essenciais na formação do professor da escola elementar e da escola média. Porque ele só pode ser educador se for também ressocializador de seus alunos e, por meio deles, dos pais de alunos. Aqui, a escola deve ir além de muros e paredes. Mas, não raro, muros e paredes são arrombados pela barbárie da incompreensão.

O docente será educador se tiver a oportunidade de ser um agente criativo no processo de mudança social, que é contínuo e problemático. A escola, tampouco deve paralisar o mundo. A sala de aula é mais do que carteiras e quadro-negro. Ela nada será se não for sobretudo um laboratório de intercâmbios sociais, em que o docente é sujeito e objeto, do mesmo modo que o aluno é objeto e sujeito. Isso só é possível quando o professor tem sólida formação em ciências sociais, mesmo para ensinar matemática e biologia. Matemática fora da trama social que dá vida humana aos viventes é mera subtração e não multiplicação. Biologia socialmente desencarnada é corpo sem alma e sem vida.

Nosso senso comum é historicamente pobre e frequentemente instrumento da reprodução do atraso. Puxa-nos para baixo. Não nos abre perspectivas. Não nos abre caminhos de crescimento e emancipação.

Temos tido movimentos sociais pelo poder e pelos privilégios do poder. Mas não temos tido movimentos sociais pela educação para a liberdade, por um novo senso comum, só possível por meio da consciência crítica. Educar para que as novas gerações fiquem de pé e não de joelhos, como se pretende agora.

*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de A Sociologia como Aventura (Contexto).
Fonte: