JosƩ de Souza Martins*
Nestes
tempos de crise do pensamento crĆtico no Brasil, um dos aspectos de
consideraĆ§Ć£o urgente Ć© o da dificuldade de muitos cientistas para ver sua
prĆ³pria ciĆŖncia como objeto de conhecimento de outra ciĆŖncia. E de compreender
criticamente o carĆ”ter relativo e de certo modo provisĆ³rio do conhecimento jĆ”
acumulado em seu respectivo campo de saber.
Ć frequente, entre nĆ³s, que anĆ”lises baseadas nas ciĆŖncias sociais sejam confundidas com interpretaƧƵes de senso comum por parte de cientistas das demais Ć”reas do conhecimento. NĆ£o levam em conta o que Ć© metodologicamente prĆ³prio das diferentes ciĆŖncias. Provavelmente, nem sabem que uma das funƧƵes das ciĆŖncias sociais Ć© a de estudar e diagnosticar as consequĆŖncias socialmente problemĆ”ticas do prĆ³prio desenvolvimento cientĆfico.
Ć frequente, entre nĆ³s, que anĆ”lises baseadas nas ciĆŖncias sociais sejam confundidas com interpretaƧƵes de senso comum por parte de cientistas das demais Ć”reas do conhecimento. NĆ£o levam em conta o que Ć© metodologicamente prĆ³prio das diferentes ciĆŖncias. Provavelmente, nem sabem que uma das funƧƵes das ciĆŖncias sociais Ć© a de estudar e diagnosticar as consequĆŖncias socialmente problemĆ”ticas do prĆ³prio desenvolvimento cientĆfico.
Uma
inovaĆ§Ć£o agrĆcola lucrativa e produtiva pode levar Ć misĆ©ria milhares de
pessoas. Uma inovaĆ§Ć£o mĆ©dica, como uma vacina, pode aterrorizar multidƵes.
Tivemos no Rio a Revolta da Vacina, em 1904, em reaĆ§Ć£o Ć obrigatoriedade da
vacinaĆ§Ć£o contra varĆola. A alta racionalidade da ciĆŖncia nĆ£o Ć© imune a
irracionalidades sociais sociologicamente explicƔveis.
Num
momento politicamente difĆcil como este, interpretaƧƵes sociolĆ³gicas e
antropolĆ³gicas da realidade podem ser essenciais para o desenvolvimento de uma
consciĆŖncia socialmente crĆtica da situaĆ§Ć£o do paĆs, atĆ© mesmo em relaĆ§Ć£o a
ameaƧas que pesam sobre o trabalho cientĆfico e o ensino da ciĆŖncia.
Assim
como hĆ” uma ciĆŖncia das ideologias, no campo da sociologia do conhecimento, hĆ”
tambĆ©m a muito pouco analisada ideologia de cada ciĆŖncia e, por isso, a da
ideologia na ciĆŖncia. Pasteur, que nĆ£o era mĆ©dico, foi peitado pelos mĆ©dicos de
sua Ć©poca em nome de valores extracientĆficos que norteavam e limitavam
inovaƧƵes no campo mƩdico. O "errado" estava certo.
O
trabalho cientĆfico Ć© limitado pelas ideologias nĆ£o cientĆficas dos cientistas.
Em nome de religiĆ£o que eventualmente professe, um cientista pode cercear-se na
pesquisa, suprimindo temas e problemas de investigaĆ§Ć£o que contrariem suas
convicƧƵes religiosas. Ou, em nome de determinada opĆ§Ć£o polĆtico-partidĆ”ria,
mesmo um cientista social pode fazer danosas correƧƵes de interpretaĆ§Ć£o para
que nĆ£o colida com suas ideias nĆ£o cientĆficas.
Essas
invasƵes podem nĆ£o afetar o rigor tĆ©cnico e formal da pesquisa cientĆfica em
si, porque a interferĆŖncia se dĆ” antes, na escolha dos temas e na definiĆ§Ć£o dos
problemas de investigaĆ§Ć£o. Mas erguem as muralhas instransponĆveis do proibido
Ć descoberta cientĆfica.
Quando
governantes, louvados em seu poder, se arvoram em autoridade em campos como o
da ciĆŖncia e estabelecem condiƧƵes e limites para o que deve ser pesquisado e
estudado, ou para o que deve ser ensinado, estamos em face de pressƵes para
ideologizar a produĆ§Ć£o e a disseminaĆ§Ć£o do conhecimento. Ainda que sob o
pretexto de combater ideologias onde supostamente ideologias nĆ£o devem
interferir. Os danos do extravasamento dessa premissa autoritĆ”ria sĆ£o mais do
que provƔveis.
NĆ£o Ć©
raro que haja quem pense que a funĆ§Ć£o do cientista se baseia no pressuposto da
condiĆ§Ć£o de ateu. Em alguns casos, nas culturas de religiosidade extremada e
ultramontana, a opĆ§Ć£o pelo ateĆsmo favoreceu defensivamente a indagaĆ§Ć£o
cientĆfica. Nos cientistas de opĆ§Ć£o preferencial pela ciĆŖncia deixou aberta a
iluminadora porta da dĆŗvida em relaĆ§Ć£o ao propriamente extracientĆfico.
Exatamente porque a ciĆŖncia nĆ£o Ć© campo de certeza absoluta.
CiĆŖncia
sĆ³ Ć© ciĆŖncia cercada pela margem da incerteza, da dĆŗvida. Todo o tempo, a
ciĆŖncia pƵe em dĆŗvida o jĆ” sabido. Ainda que acumulativo, o conhecimento
cientĆfico Ć© provisĆ³rio e relativo. NĆ£o obstante, o senso comum do cientista Ć©
peculiar, diverso do da pessoa comum.
Ć claro
que hĆ” situaƧƵes em que um campo nĆ£o cientĆfico, como uma religiĆ£o, pode contribuir
poderosamente para destravar bloqueios ao conhecimento cientĆfico oriundos da
prĆ³pria religiĆ£o. Em 1994, novo catedrĆ”tico da Universidade de Cambridge, fui
um dos convidados do Master e dos fellows de St. John's College para participar
das celebraƧƵes de SĆ£o JoĆ£o Batista, patrono da instituiĆ§Ć£o.
Na
cerimĆ“nia religiosa, na capela, o pregador dissertou sobre a importĆ¢ncia do
calvinismo no desenvolvimento da ciĆŖncia em Cambridge. De fato, Cambridge foi
um cenƔrio decisivo nas controvƩrsias e debates sobre a Reforma protestante no
sĆ©culo XVI. O pĆŗlpito da Igreja de Santo Eduardo, Rei e MĆ”rtir ainda Ć© o mesmo
em que se pregou o primeiro sermĆ£o protestante da Inglaterra, em 1525.
Os
elementos racionais e, mesmo, seculares do calvinismo abriam perspectivas
responsƔveis por um novo senso comum que iluminava aspectos vetados ou obscuros
da realidade da vida.
----------------------- * JosĆ© de Souza Martins Ć© sociĆ³logo. Professor EmĆ©rito da Faculdade de Filosofia da USP. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de A Sociologia como Aventura (Contexto).
Fonte: https://www.valor.com.br/cultura/6161277/jose-de-souza-martins-ideologia-na-ciencia-no-brasil 15/03/2019
----------------------- * JosĆ© de Souza Martins Ć© sociĆ³logo. Professor EmĆ©rito da Faculdade de Filosofia da USP. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de A Sociologia como Aventura (Contexto).
Fonte: https://www.valor.com.br/cultura/6161277/jose-de-souza-martins-ideologia-na-ciencia-no-brasil 15/03/2019
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