sexta-feira, 15 de marƧo de 2019

A IDEOLOGIA NA CIƊNCIA NO BRASIL


JosƩ de Souza Martins*
 

Nestes tempos de crise do pensamento crĆ­tico no Brasil, um dos aspectos de consideraĆ§Ć£o urgente Ć© o da dificuldade de muitos cientistas para ver sua prĆ³pria ciĆŖncia como objeto de conhecimento de outra ciĆŖncia. E de compreender criticamente o carĆ”ter relativo e de certo modo provisĆ³rio do conhecimento jĆ” acumulado em seu respectivo campo de saber.

Ɖ frequente, entre nĆ³s, que anĆ”lises baseadas nas ciĆŖncias sociais sejam confundidas com interpretaƧƵes de senso comum por parte de cientistas das demais Ć”reas do conhecimento. NĆ£o levam em conta o que Ć© metodologicamente prĆ³prio das diferentes ciĆŖncias. Provavelmente, nem sabem que uma das funƧƵes das ciĆŖncias sociais Ć© a de estudar e diagnosticar as consequĆŖncias socialmente problemĆ”ticas do prĆ³prio desenvolvimento cientĆ­fico.

Uma inovaĆ§Ć£o agrĆ­cola lucrativa e produtiva pode levar Ć  misĆ©ria milhares de pessoas. Uma inovaĆ§Ć£o mĆ©dica, como uma vacina, pode aterrorizar multidƵes. Tivemos no Rio a Revolta da Vacina, em 1904, em reaĆ§Ć£o Ć  obrigatoriedade da vacinaĆ§Ć£o contra varĆ­ola. A alta racionalidade da ciĆŖncia nĆ£o Ć© imune a irracionalidades sociais sociologicamente explicĆ”veis.

Num momento politicamente difĆ­cil como este, interpretaƧƵes sociolĆ³gicas e antropolĆ³gicas da realidade podem ser essenciais para o desenvolvimento de uma consciĆŖncia socialmente crĆ­tica da situaĆ§Ć£o do paĆ­s, atĆ© mesmo em relaĆ§Ć£o a ameaƧas que pesam sobre o trabalho cientĆ­fico e o ensino da ciĆŖncia.

Assim como hĆ” uma ciĆŖncia das ideologias, no campo da sociologia do conhecimento, hĆ” tambĆ©m a muito pouco analisada ideologia de cada ciĆŖncia e, por isso, a da ideologia na ciĆŖncia. Pasteur, que nĆ£o era mĆ©dico, foi peitado pelos mĆ©dicos de sua Ć©poca em nome de valores extracientĆ­ficos que norteavam e limitavam inovaƧƵes no campo mĆ©dico. O "errado" estava certo.

O trabalho cientĆ­fico Ć© limitado pelas ideologias nĆ£o cientĆ­ficas dos cientistas. Em nome de religiĆ£o que eventualmente professe, um cientista pode cercear-se na pesquisa, suprimindo temas e problemas de investigaĆ§Ć£o que contrariem suas convicƧƵes religiosas. Ou, em nome de determinada opĆ§Ć£o polĆ­tico-partidĆ”ria, mesmo um cientista social pode fazer danosas correƧƵes de interpretaĆ§Ć£o para que nĆ£o colida com suas ideias nĆ£o cientĆ­ficas.

Essas invasƵes podem nĆ£o afetar o rigor tĆ©cnico e formal da pesquisa cientĆ­fica em si, porque a interferĆŖncia se dĆ” antes, na escolha dos temas e na definiĆ§Ć£o dos problemas de investigaĆ§Ć£o. Mas erguem as muralhas instransponĆ­veis do proibido Ć  descoberta cientĆ­fica.

Quando governantes, louvados em seu poder, se arvoram em autoridade em campos como o da ciĆŖncia e estabelecem condiƧƵes e limites para o que deve ser pesquisado e estudado, ou para o que deve ser ensinado, estamos em face de pressƵes para ideologizar a produĆ§Ć£o e a disseminaĆ§Ć£o do conhecimento. Ainda que sob o pretexto de combater ideologias onde supostamente ideologias nĆ£o devem interferir. Os danos do extravasamento dessa premissa autoritĆ”ria sĆ£o mais do que provĆ”veis.

NĆ£o Ć© raro que haja quem pense que a funĆ§Ć£o do cientista se baseia no pressuposto da condiĆ§Ć£o de ateu. Em alguns casos, nas culturas de religiosidade extremada e ultramontana, a opĆ§Ć£o pelo ateĆ­smo favoreceu defensivamente a indagaĆ§Ć£o cientĆ­fica. Nos cientistas de opĆ§Ć£o preferencial pela ciĆŖncia deixou aberta a iluminadora porta da dĆŗvida em relaĆ§Ć£o ao propriamente extracientĆ­fico. Exatamente porque a ciĆŖncia nĆ£o Ć© campo de certeza absoluta.

CiĆŖncia sĆ³ Ć© ciĆŖncia cercada pela margem da incerteza, da dĆŗvida. Todo o tempo, a ciĆŖncia pƵe em dĆŗvida o jĆ” sabido. Ainda que acumulativo, o conhecimento cientĆ­fico Ć© provisĆ³rio e relativo. NĆ£o obstante, o senso comum do cientista Ć© peculiar, diverso do da pessoa comum.

Ɖ claro que hĆ” situaƧƵes em que um campo nĆ£o cientĆ­fico, como uma religiĆ£o, pode contribuir poderosamente para destravar bloqueios ao conhecimento cientĆ­fico oriundos da prĆ³pria religiĆ£o. Em 1994, novo catedrĆ”tico da Universidade de Cambridge, fui um dos convidados do Master e dos fellows de St. John's College para participar das celebraƧƵes de SĆ£o JoĆ£o Batista, patrono da instituiĆ§Ć£o.

Na cerimĆ“nia religiosa, na capela, o pregador dissertou sobre a importĆ¢ncia do calvinismo no desenvolvimento da ciĆŖncia em Cambridge. De fato, Cambridge foi um cenĆ”rio decisivo nas controvĆ©rsias e debates sobre a Reforma protestante no sĆ©culo XVI. O pĆŗlpito da Igreja de Santo Eduardo, Rei e MĆ”rtir ainda Ć© o mesmo em que se pregou o primeiro sermĆ£o protestante da Inglaterra, em 1525.

Os elementos racionais e, mesmo, seculares do calvinismo abriam perspectivas responsƔveis por um novo senso comum que iluminava aspectos vetados ou obscuros da realidade da vida.
----------------------- * JosĆ© de Souza Martins Ć© sociĆ³logo. Professor EmĆ©rito da Faculdade de Filosofia da USP. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de “A Sociologia como Aventura” (Contexto).
Fonte: https://www.valor.com.br/cultura/6161277/jose-de-souza-martins-ideologia-na-ciencia-no-brasil 15/03/2019

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