sexta-feira, 29 de março de 2019

José de Souza Martins: Fazemos economia com educação, mas não com ignorância e privilégios

José de Souza Martins*
 
Educação não é mercadoria, como frequentemente dizem alunos críticos. É interação e reciprocidade. 

Muito se fala sobre as deficiências da educação brasileira e, injustamente, imputa-se à escola pública o nosso atraso. Esse atraso, todos sabem, expressa as condições impróprias e insuficientes da escolaridade e do exercício do magistério. Fazemos economia com educação, mas não a fazemos com ignorância nem com privilégios descabidos dos poderosos.

Temos limitações e desafios. O problema maior de nossa educação está numa questão social simples: o divórcio entre o senso comum pobre e o conhecimento que a escola e os professores devem transmitir aos alunos.

A educação brasileira não sabe lidar com o senso comum que, em nosso caso, é um fator limitante do diálogo educativo. Nos países cultos, o senso comum, já entre os estudantes, é altamente informado pela cultura erudita, pelas visitas aos museus de história, de arte e de ciências, pelo teatro, pela música erudita, pelo cinema culto. Até mesmo pelo respeito à historicidade de paisagens rurais e de cenários urbanos cuja relevância educativa é reconhecida por todos. Aquilo que, classificado como adjetivo em relação às ruas e estradas, é entre nós tratado como feudo do carro pelos habitantes e pelo poder público.

De modo que, naqueles países, a sala de aula é dinâmico lugar da ampliação e do aperfeiçoamento das informações e da lógica do senso comum enriquecido pelas agências de difusão da cultura. Seria, aqui, um laboratório de preservação e de refinamento de nossas tradições humanistas e de aprimoramento crítico de nossa consciência social. Um meio de superar nossa danosa alienação.

Naqueles países, o senso comum em si mesmo puxa as novas gerações para cima, para uma compreensão culta da vida e da realidade social. Os estudantes de lá estão muito mais próximos da arte, da literatura e da ciência do que a imensa maioria dos estudantes daqui. Lá, a escola e os professores estão cotidianamente empenhados na ressocialização de jovens e crianças a partir da matéria-prima de um rico senso comum a isso propício.

A escola não deve ser um lugar de estranhices e de professores supostamente esquisitos, que é como muitos pais e estudantes os julgam. Os frequentes episódios de agressão a professores e mesmo a alunos e de depredação de escolas apenas expressam a incivilidade desse divórcio. Não é surpresa que a escola apareça na consciência de alunos e de pais de alunos como instituição que lhes é adversária.

Não há ou nem sempre há, entre esses dois mundos, o da escola e o do senso comum, o liame da continuidade criativa e emancipadora. A escola de enquadramento, pública ou particular, que politicamente se robustece neste momento, não educa.

Educação não é mercadoria, como frequentemente dizem alunos críticos. É interação e reciprocidade. Nesse sentido, o professor só é professor se for um aprendiz, aluno de seus alunos para ensinar-lhes a superar limitações, intolerância, impaciência e pobreza cultural.

No período mais fecundo da política educacional brasileira, sociologia e antropologia, além de psicologia, foram essenciais na formação do professor da escola elementar e da escola média. Porque ele só pode ser educador se for também ressocializador de seus alunos e, por meio deles, dos pais de alunos. Aqui, a escola deve ir além de muros e paredes. Mas, não raro, muros e paredes são arrombados pela barbárie da incompreensão.

O docente será educador se tiver a oportunidade de ser um agente criativo no processo de mudança social, que é contínuo e problemático. A escola, tampouco deve paralisar o mundo. A sala de aula é mais do que carteiras e quadro-negro. Ela nada será se não for sobretudo um laboratório de intercâmbios sociais, em que o docente é sujeito e objeto, do mesmo modo que o aluno é objeto e sujeito. Isso só é possível quando o professor tem sólida formação em ciências sociais, mesmo para ensinar matemática e biologia. Matemática fora da trama social que dá vida humana aos viventes é mera subtração e não multiplicação. Biologia socialmente desencarnada é corpo sem alma e sem vida.

Nosso senso comum é historicamente pobre e frequentemente instrumento da reprodução do atraso. Puxa-nos para baixo. Não nos abre perspectivas. Não nos abre caminhos de crescimento e emancipação.

Temos tido movimentos sociais pelo poder e pelos privilégios do poder. Mas não temos tido movimentos sociais pela educação para a liberdade, por um novo senso comum, só possível por meio da consciência crítica. Educar para que as novas gerações fiquem de pé e não de joelhos, como se pretende agora.

*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de A Sociologia como Aventura (Contexto).
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