Livro reúne os diários de Franz Kafka escritos entre 1909 e 1912
Enquanto
gênero literário, o formato “diário” é excêntrico como um ornitorrinco.
O autor escreve para seus botões, não processando o texto com recursos
ficcionais, e rola uma quase simultaneidade entre as entradas e os
eventos descritos. Também ao contrário das autobiografias ou memórias, o
relato não é linear ou coeso, mas rapsódico, espasmódico, poroso – mais
confetes do que serpentinas.
Nos melhores casos, como aqueles salgadinhos que a gente não consegue
parar de comer (“Juro que este é o último!”). O leitor se sente como um
voyeur convidado. Daí a confissão de Oscar Wilde: “Nunca viajo sem o meu
diário. É legal ter uma coisa apaixonante para ler no trem”. As
editoras brasileiras já desconfiaram: depois dos Diários de Sylvia Plath, sai o primeiro volume do de Franz Kafka (L&PM). Faço figa para que o próximo seja o de Virginia Woolf, que o escreveu com duas luvas: uma de pelica e outra de boxe.
Kafka
(K) morreu em 3 de junho de 1924, num sanatório de Viena, aos 40 anos.
Há sete anos era fustigado pela tuberculose, e naquele verão o estado da
sua garganta tornara uma tortura comer ou beber, condenando-o à morte
por inanição. Na época, K escreveu o conto Um Artista da Fome,
sobre um cara cuja arte é o jejum – um dos textos mais patibulares da
obra do escritor (e olhem que a concorrência é renhida).
Max
Brod, amigo de Kafka, foi instruído por este a queimar todos os seus
manuscritos. Max fingiu que não ouviu: “Se Franz quisesse mesmo isso,
teria nomeado outro testamenteiro”. Brod organizou também os diários,
originalmente dispersos em 13 cadernos, numa cronologia errática e uma
lógica destrambelhada. Por vezes, o diarista escrevia da última página
para trás, bem como da primeira para frente, de modo que as entradas se
encontrassem no meio.
Teria K sido um workaholic da derrota, o
campeão mundial e invicto do revés? Walter Benjamin trolou-o para seu
amigo Gershom Scholem: “Para fazer justiça à Kafka, devemos reconhecer
que é a beleza e a pureza de um fracasso.” Como Milan Kundera (outro
checo), Benjamin odiava a canonização de K como santo e gênio
martirizado, tipo Mozart. Mais tarde, Jorge Luís Borges porá os pingos
nos is: “Se Kafka não terminou muitas de suas obras, é porque elas eram
intermináveis. Não há solução para o dilema de K.” No fundo, a tal dica
de Samuel Beckett: “Tente de novo. Falhe de novo. Falhe melhor.”
Nos
Diários, inúmeras entradas são um chororô lancinante, dignas de uma
carpideira italiana. “Ontem incapaz de escrever uma vírgula. Hoje, pior
ainda. Quem me salvará?” Ou: “Desespero total, impossível me recompor:
só quando me sentir satisfeito com o sofrimento posso parar”. Ou curto e
grosso: “Nada”. Para os mais perversos, um dos deleites do diário é o
que os alemães chamam de “Schadenfreude”, ou a alegria com as dores
alheias. E parece que às vezes K adivinha isso, o leitor espiando por
cima do seu ombro – e abre o bueiro. Claro que K não inventou o
pessimismo: apenas o aperfeiçoou. Como disse o escritor vitoriano Arnold
Bennett: “O pessimismo, quando você se acostuma com ele, pode ser tão
agradável quanto o otimismo”. Para K, se o tempo não curava todas as
feridas, ao menos feria todas as curas. Era um modo de ver o copo meio
cheio (de arsênico).
Quando inicia o diário, K reclama com sua
noiva Felice Bauer: “Não fiz nada meses a fio”. Apesar disso, tornara-se
proprietário parcial de uma pequena fábrica de amianto em Praga e batia
perna pela Alemanha, Áustria e Itália. Por outro lado, esse marmanjo de
28 anos ainda vivia com os pais (como os atuais millennials). E não era
nenhum monge: tinha amigos, ia ao teatro, frequentava cafés. Não
exatamente um pegador, era mulherengo: foi noivo e amante, passou
numerosas cantadas (meio canhestras é verdade) e frequentou bordéis. Ao
visitar a casa de Goethe em Weimar, teve um “crush” instantâneo pela
filha do zelador. Talvez haja dado um empurrãozinho o fato de ela se
chamar Margarethe (apelido: Gretchen), como a jovem ingênua seduzida por
Fausto depois do pacto com Mefistófeles.
Pois para K (como para
Joyce ou Flaubert, seu autor favorito), a literatura estava aberta 24
horas por dia, sete dias por semana. “Tudo o que sou é literatura, e não
quero nem sou capaz de ser outra coisa”. Daí que as fatias de pão deste
hot-dog possam ser o desespero e a lassidão, mas a salsicha é sempre a
escrita ficcional. Daí também aquele solipsismo burlesco, como na
célebre e concisa entrada de 2 de agosto de 1914: “A Alemanha declarou
guerra à Rússia. Natação à tarde.”
Os diários de K são kafkianos?
Mas que diabo é isso? Um dos biógrafos do autor, Frederick R. Karl,
acha que abusam do adjetivo. “Se pego um ônibus e descubro que os ônibus
já não circulam mais, isso não é kafkiano. Agora quando ingresso num
mundo em que meus padrões de controle e o modo como configuro minha
conduta entram em colapso, e quando encontro uma força alheia à maneira
como percebo o universo – e você não desiste, não se deita e morre, mas
luta contra isso com todos os seus recursos, embora nunca tenha tido a
menor chance... Bom, isso sim é kafkiano.”
Os diários de K são
kafkianos, mas também aforísticos. O aforismo é aquele formato
telegráfico que o escritor austríaco Thomas Bernard desdenhosamente
descreveu como “uma pequena arte da asma intelectual, frases de efeito
que acabam adornando as paredes da sala de espera de dentistas.”
Bom,
não os de K, não como este: “Há esperança, suficiente e até infinita
esperança. Mas não para nós.” A meu ver, devemos ler estes diários mais
como uns canapés (“happy hour” kafkiano seria um oximoro) do que como
uma refeição regular. Há abobrinhas insípidas, mas também epifanias
arrebatadoras. Não convém esquecer que, se alguém inventou o kafkiano,
provavelmente foi Kafka.
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*PAULO NOGUEIRA É AUTOR DE ‘O AMOR É UM LUGAR COMUM’ (INTERMEIOS)
Fonte: https://alias.estadao.com.br/noticias/geral,livro-reune-os-diarios-de-franz-kafka-escritos-entre-1909-e-1912,70002765027 - Acesso 27/03/2019
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