FRANCISCO MARSHALL*
Em 458 a.C., Ésquilo apresentou, em
Atenas, a tragédia Prometeu Prisioneiro, parte de uma trilogia sobre as
relações de poder entre Zeus e o titã que o ajudou a conquistar o
Olimpo. Prometeu insulta Zeus com seu amor à humanidade e desobediência e
é punido com uma tortura estilo Cristo na cruz, preso por grilhões a um
rochedo, onde uma águia virá devorar seu fígado. Hefesto, deus
metalúrgico, cumpre a contragosto a ordem de agrilhoar Prometeu, vigiado
por dois personagens alegóricos, enviados por Zeus: Poder (Krátos) e
Violência (Bías). É como o dramaturgo representou a autoridade do pai
dos deuses, como uma crítica ao poder violento. Prometeu resiste, e
inspira o hino erguido em muitos momentos, inclusive na procissão dos
calouros da UFRGS, em Porto Alegre, 1968, ano duro da ditadura militar.
"És sempre impiedoso e atrevido", diz Hefesto ao Poder, refletindo o que
pensavam os atenienses sobre o poder concentrado, a que chamavam
tirania.
"O poder desagrada a quem não o tem", é a célebre frase
transmitida ao final de O Poderoso Chefão III; no filme de Coppola e
Mário Puzo, foi aplicada aos negócios mafiosos (milícias?), mas vale
para todas as sociedades. Em época ancestral, o poder foi concentrado
nas mãos de usurpadores que se diziam divinos, com apoio de sacerdotes
charlatães, ou dividido nas mãos de poucos provalecidos, até que os
gregos, após 150 anos de guerra civil, inventaram um modelo que dissolve
a soberania na sociedade e cria uma lógica cooperativa em que triunfa o
bem comum: a democracia. O poder passa a ser de todos e,
preferencialmente, rotativo; o que vale é o saber, e este é social,
compartilhado. Kratos ganha cidadania, perde sua arrogância e vai ser
atributo de uma multidão, o povo. Eis o regime de poder em uma
democracia, onde o autor e beneficiário passa a ser a sociedade, e a
vanguarda é da educação, na esfera pública.
A democracia, todavia, abre-se a agressores que a matam
e usurpam seu nome. Na antiguidade, a demagogia era o veneno, e
persiste, piorada pela malícia de novas tecnologias, adaptadas para
enganar a eleitores frágeis, e pela deseducação do povo. A democracia
falece, sobretudo, pelo movimento de captura do regime, realizado com
proficiência pelo grande capital, local e forasteiro, com a ilusão de
uma ideologia insidiosa, que promete liberdade e riqueza mas entrega
servidão e pobreza. A Justiça, que poderia nos salvar, anda cativa e
alienada, com agentes enlevados no vício oligárquico. Nesse caso, o que é
o poder? Parece ser a capacidade de enganar multidões com ocultamentos,
mentiras e ameaças, em proveito de poucos jogadores, e seus servos
obsequiosos. Isso é um pouco diferente da definição democrática, não?
Prometeu, no mito grego, deu-nos o fogo, com o qual
inventamos artes que nos fazem ser humanos. Ei-lo, novamente, hoje com o
nome de Democracia, atado em rocha íngreme, repasto para aves de
rapina. Aguardemos o fim desta trilogia - a de Ésquilo avançava com
Prometeu Liberto e se encerrava com Prometeu Porta-fogo, mas perdemos o
texto, teremos que reinventá-lo.
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* Historiador. Arqueólogo. Prof. Universitário UFRGS
Fonte: https://flipzh.clicrbs.com.br/jornal-digital/pub/zh/acessivel/materia.jsp?cd=98321aa0069213f160a772b5cf4437e4 Acesso 18/03/2019
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