segunda-feira, 18 de março de 2019

PROMETEU E O PODER

 FRANCISCO MARSHALL*
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Em 458 a.C., Ésquilo apresentou, em Atenas, a tragédia Prometeu Prisioneiro, parte de uma trilogia sobre as relações de poder entre Zeus e o titã que o ajudou a conquistar o Olimpo. Prometeu insulta Zeus com seu amor à humanidade e desobediência e é punido com uma tortura estilo Cristo na cruz, preso por grilhões a um rochedo, onde uma águia virá devorar seu fígado. Hefesto, deus metalúrgico, cumpre a contragosto a ordem de agrilhoar Prometeu, vigiado por dois personagens alegóricos, enviados por Zeus: Poder (Krátos) e Violência (Bías). É como o dramaturgo representou a autoridade do pai dos deuses, como uma crítica ao poder violento. Prometeu resiste, e inspira o hino erguido em muitos momentos, inclusive na procissão dos calouros da UFRGS, em Porto Alegre, 1968, ano duro da ditadura militar. "És sempre impiedoso e atrevido", diz Hefesto ao Poder, refletindo o que pensavam os atenienses sobre o poder concentrado, a que chamavam tirania.

"O poder desagrada a quem não o tem", é a célebre frase transmitida ao final de O Poderoso Chefão III; no filme de Coppola e Mário Puzo, foi aplicada aos negócios mafiosos (milícias?), mas vale para todas as sociedades. Em época ancestral, o poder foi concentrado nas mãos de usurpadores que se diziam divinos, com apoio de sacerdotes charlatães, ou dividido nas mãos de poucos provalecidos, até que os gregos, após 150 anos de guerra civil, inventaram um modelo que dissolve a soberania na sociedade e cria uma lógica cooperativa em que triunfa o bem comum: a democracia. O poder passa a ser de todos e, preferencialmente, rotativo; o que vale é o saber, e este é social, compartilhado. Kratos ganha cidadania, perde sua arrogância e vai ser atributo de uma multidão, o povo. Eis o regime de poder em uma democracia, onde o autor e beneficiário passa a ser a sociedade, e a vanguarda é da educação, na esfera pública.

A democracia, todavia, abre-se a agressores que a matam e usurpam seu nome. Na antiguidade, a demagogia era o veneno, e persiste, piorada pela malícia de novas tecnologias, adaptadas para enganar a eleitores frágeis, e pela deseducação do povo. A democracia falece, sobretudo, pelo movimento de captura do regime, realizado com proficiência pelo grande capital, local e forasteiro, com a ilusão de uma ideologia insidiosa, que promete liberdade e riqueza mas entrega servidão e pobreza. A Justiça, que poderia nos salvar, anda cativa e alienada, com agentes enlevados no vício oligárquico. Nesse caso, o que é o poder? Parece ser a capacidade de enganar multidões com ocultamentos, mentiras e ameaças, em proveito de poucos jogadores, e seus servos obsequiosos. Isso é um pouco diferente da definição democrática, não?

Prometeu, no mito grego, deu-nos o fogo, com o qual inventamos artes que nos fazem ser humanos. Ei-lo, novamente, hoje com o nome de Democracia, atado em rocha íngreme, repasto para aves de rapina. Aguardemos o fim desta trilogia - a de Ésquilo avançava com Prometeu Liberto e se encerrava com Prometeu Porta-fogo, mas perdemos o texto, teremos que reinventá-lo.
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* Historiador. Arqueólogo. Prof. Universitário UFRGS
Fonte: https://flipzh.clicrbs.com.br/jornal-digital/pub/zh/acessivel/materia.jsp?cd=98321aa0069213f160a772b5cf4437e4 Acesso 18/03/2019
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