FRANCISCO MARSHALL*
No exótico reino de Lisarb, terra
fadada à inversão dos fatos, ocorreu, em tempos hoje chamados de Ova
Era, a mais terrível das catástrofes: a revolta dos ignorantes, que
tomaram o poder. Terremotos e tsunamis parecem aurora com arco-íris,
quando se vê o que fazem ignorantes com caneta e carimbo. Macacos
tomaram a direção do ônibus, estavam em maioria, com poder legítimo,
tinham alianças, megafones e forças de repressão. Balbuciavam escassas
sentenças, refrões meio dementes e argumentos torpes, faziam mil
trapalhadas e grosserias, e tripudiavam dos demais, enquanto jogavam
enciclopédias pela janela e apedrejavam artistas, cientistas e
professores. Como isso pôde acontecer, perguntavam-se os acuados
sobreviventes. Afinal, quem eram os ignorantes, o que os produziu e como
se livrar deste flagelo?
Há vários tipos de ignorantes. O mais singelo nem merece este nome quando designa quem não tem o conhecimento, mas respeita e ambiciona o saber. Neste tipo, há os que pouco ou nada sabem e os que querem tudo saber, e precisam sempre aprender muito; somos todos ignorantes em vários assuntos. Há, também, o que foi privado de condições de desenvolvimento e foi, assim, conduzido para uma penosa vala de exclusão cultural e social. Afora estes, há ignorantes com pedigree, que odeiam o conhecimento, e foram estes que produziram a inversão da ordem em Lisarb e em reinos vizinhos. Viu-se que uma frota de milicianos ignaros, com ganas, é capaz de chinelear uma nação diante de uma obra de arte, sem saber o que dá o Di, sem ligar para o beabá.
A complexidade da Era do Conhecimento assusta a muitos; acuados, cedem a opções temerárias, contra o que creem ser a causa de sua angústia, formas da modernidade. Cansam de explicações que não compreendem, de novidades desafiadoras, da diferença cultural e de alteridades, desconfiam da ciência, da educação e da democracia, e buscam refúgio sob as duas asas da pior ave de rapina, a religião e o patriotismo; a ave de rapina chama-se tradição, e devora o futuro nas entranhas do presente. Filme antigo: a modernidade, sem ser culpada, induz a refluxo e recuo histórico.
Em Lisarb, rompeu-se o tênue fio vital de todas as sociedades, que conecta ignorância e conhecimento. Parte da culpa vinha dos que detinham o saber, que não souberam se antecipar à sublevação ignara, e parte maior na forma suicida com que aquele reino construiu classes dominantes sem qualidade de elite cultural; no apogeu da revolta ignara, a oligarquia de Lisarb preferiu assumir-se como ignorante e tentar desfrutar de uma atrevida liderança de brutos sobre incautos, contra educados.
A democracia vive da relação produtiva entre ignorância e saber, promove disputa e aperfeiçoamento, requer partilha ecológica do conhecimento e da autoria. Enquanto rugiam os broncos em Lisarb, democratas tratavam de reconstruir o fio da vida, em jardins onde também os ignaros poderiam elevar-se e libertar-se de sua horrível condição. Aos poucos, voltariam a grafar o nome da nação no correto sentido, sem fraude patriótica, com todas as cores e amores de um belo Brasil.
---------
* Professor. Dr. em História.
Fonte: https://flipzh.clicrbs.com.br/jornal-digital/pub/gruporbs/acessivel/materia.jsp?cd=2068438c1242b211de874545cdf4202f - Acesso 04/03/2019
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Há vários tipos de ignorantes. O mais singelo nem merece este nome quando designa quem não tem o conhecimento, mas respeita e ambiciona o saber. Neste tipo, há os que pouco ou nada sabem e os que querem tudo saber, e precisam sempre aprender muito; somos todos ignorantes em vários assuntos. Há, também, o que foi privado de condições de desenvolvimento e foi, assim, conduzido para uma penosa vala de exclusão cultural e social. Afora estes, há ignorantes com pedigree, que odeiam o conhecimento, e foram estes que produziram a inversão da ordem em Lisarb e em reinos vizinhos. Viu-se que uma frota de milicianos ignaros, com ganas, é capaz de chinelear uma nação diante de uma obra de arte, sem saber o que dá o Di, sem ligar para o beabá.
A complexidade da Era do Conhecimento assusta a muitos; acuados, cedem a opções temerárias, contra o que creem ser a causa de sua angústia, formas da modernidade. Cansam de explicações que não compreendem, de novidades desafiadoras, da diferença cultural e de alteridades, desconfiam da ciência, da educação e da democracia, e buscam refúgio sob as duas asas da pior ave de rapina, a religião e o patriotismo; a ave de rapina chama-se tradição, e devora o futuro nas entranhas do presente. Filme antigo: a modernidade, sem ser culpada, induz a refluxo e recuo histórico.
Em Lisarb, rompeu-se o tênue fio vital de todas as sociedades, que conecta ignorância e conhecimento. Parte da culpa vinha dos que detinham o saber, que não souberam se antecipar à sublevação ignara, e parte maior na forma suicida com que aquele reino construiu classes dominantes sem qualidade de elite cultural; no apogeu da revolta ignara, a oligarquia de Lisarb preferiu assumir-se como ignorante e tentar desfrutar de uma atrevida liderança de brutos sobre incautos, contra educados.
A democracia vive da relação produtiva entre ignorância e saber, promove disputa e aperfeiçoamento, requer partilha ecológica do conhecimento e da autoria. Enquanto rugiam os broncos em Lisarb, democratas tratavam de reconstruir o fio da vida, em jardins onde também os ignaros poderiam elevar-se e libertar-se de sua horrível condição. Aos poucos, voltariam a grafar o nome da nação no correto sentido, sem fraude patriótica, com todas as cores e amores de um belo Brasil.
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* Professor. Dr. em História.
Fonte: https://flipzh.clicrbs.com.br/jornal-digital/pub/gruporbs/acessivel/materia.jsp?cd=2068438c1242b211de874545cdf4202f - Acesso 04/03/2019
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