Oscar Nestarez*
O colunista Oscar Nestarez reflete sobre os temas da obra clássica de Oscar Wilde
No
ensaio Por que Ler os Clássicos do livro que leva o mesmo nome, o
escritor e crítico italiano Italo Calvino (1923-1985) nos oferece
quatorze definições para o termo "clássico" na literatura. Entre elas,
“um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha
para dizer”. O autor referia-se à “inesgotabilidade de sentido” de
narrativas que, por esse e outros motivos, são consideradas imortais —
pelo menos até o momento em que este texto é escrito. O que equivale a
dizer que são inesgotáveis o prazer e o assombro que algumas dessas
obras nos causam, não importando a geração a que pertencemos. Publicado
pela primeira vez em 1890, O Retrato de Dorian Gray, do britânico Oscar Wilde, é uma dessas obras: após quase 129 anos, está longe de se calar.
Prova
disso é o fenômeno observado ao invertermos essa dinâmica: o quanto se
disse e se diz sobre o livro. Especialistas das mais diversas áreas do
saber já se debruçaram sobre a história do belíssimo rapaz que “esconde”
a própria alma no quadro com sua imagem. Até hoje, a obra é lida com a
mesma intensidade por filósofos, psicólogos, antropólogos, sociólogos,
historiadores, entre outros; são incontáveis as adaptações para o
cinema, para o teatro e para séries de TV.
Com
efeito, a narrativa oferece inúmeras portas pelas quais é possível
adentrá-la. Mas como este espaço é dedicado às vertentes sombrias da
literatura, escolhemos a porta de madeira maciça e escura, com uma
aldraba que ecoa ao ser acionada, e cujas dobradiças rangem ao serem
abertas: a porta do gótico e do horror.
Pois, para além da crítica
aos costumes da Inglaterra Vitoriana, para além do caráter ensaístico
contido na obra, manifesto sobretudo nas provocações do personagem Lord
Henry Wotton, para além do aspecto fáustico da trama, em que um
personagem estabelece um pacto em nome da juventude eterna, e para além
do dandismo hedonista que perpassa a história, do qual o próprio Wilde
era expoente, O Retrato de Dorian Gray é, também ao seu modo, uma história que assombra.
O incômodo do desconhecido
Nossa
afirmação tem base no pensamento do crítico italiano Mario Praz (1896 -
1982), importante estudioso da literatura de língua inglesa dos séculos
XVIII e XIX. De acordo com o que ele afirma na obra The Romantic Agony,
é possível constatar, nas narrativas consideradas pertencentes ao
romantismo (e, em certa medida, ao gótico), um desenvolvimento temático
relativo aos gêneros de personagens.
Segundo Praz, há nessas
obras, em um primeiro momento, a predominância do homem fatal: nobre e
belo, misterioso e decaído, satânico e perigoso, agente da ruína daquele
que os cercam. Em suma, uma figura essencialmente byroniana — as
próprias obras de Lord Byron (1788-1824) constituem bons exemplos disso e
Heathcliff, de O Morro dos Ventos Uivantes (1847), é outro.
A
seguir, observa-se o protagonismo de mulheres fatais, marcadas pelo
exotismo e pela perversidade. As personagens do francês Théophile
Gautier (1811-1872) e Carmilla (1872), de Joseph Sheridan Le Fanu, representam essa vertente.
Praz
observa o surgimento de alguns personagens indefinidos — figuras de
limiar, andrógenas, que reúnem em si qualidades de ambos os sexos, e
que, justamente por confrontarem a concepção binária de gênero da era
vitoriana, já causariam estranhamento, incômodo, até mesmo medo. Figuras
duplamente sedutoras e perigosas pelos riscos que representavam às
normas da época — das quais Dorian Gray é, sem dúvida, o principal
exemplo.
Venenoso e imoral
Esses riscos foram sentidos já na ocasião do lançamento de O Retrato de Dorian Gray. Publicada no periódico britânico Lippincott’s Monthly Magazine
em junho de 1890, a narrativa inflamou imediatamente os ânimos de
críticos e de leitores. “Impura”, “venenosa”, “nauseante” e “imoral”
foram alguns dos predicados com que boa parte do público recebeu o
lançamento.
A
comoção foi tamanha que a editora acabou recolhendo os exemplares
restantes da obra, cujo original já havia sido mutilado, com centenas de
palavras censuradas. Posteriormente, na primeira edição em livro, Wilde
defendeu-se, e com um prefácio contundente, afirma que “os que
encontram significados disformes em coisas belas são corruptos sem
agradarem, o que é um defeito”.
O fato é que seu protagonista
representou muitas ameaças às normas da sociedade de então. Elevando-se
acima dos padrões, Dorian Gray torna-se um enigma e, à medida que sobe,
projeta uma sombra que só faz crescer e inquietar. Indecifrável, causa
escândalo e horror.
Como se sua própria essência ambivalente,
masculino-feminina, já não bastasse, sua rotina era o escândalo. Ao
afastar-se da própria alma e abandonar a virtude em nome de vícios
sensuais, Dorian Gray assume a vida como sua obra de arte, sua
experiência extremada. Ao rejeitar a consciência coletiva em nome do
prazer individual, o protagonista inebria-se, diverte-se com a coleção
de homens e mulheres que seduz e descarta. Entre esses escombros,
encontramos Basil Hallward, o autor do quadro que preserva o terrível
segredo, cujo amor Gray não somente rejeita, mas aniquila com tremenda
violência.
Horror em diferentes níveis
Tudo
isso foi assustador na época, e ainda é hoje. A indiferença com que o
rapaz trata o sofrimento alheio permanece monstruosa. Devemos mencionar,
também, o criador “filosófico” desse monstro: Lord Henry, ou Harry, um
dos personagens mais interessantes e cínicos da literatura ocidental. É
ele quem, ao conhecer o jovem e ainda inocente Dorian Gray, apresenta-o à
efemeridade da beleza e aos horrores da decadência física. É essa
percepção que leva o rapaz a desejar tão ardentemente reter, para
sempre, a imagem que vê no quadro.
E não é só no enredo que O Retrato de Dorian Gray
se filia à contravenção gótica: também na construção retórica
encontramos evidências disso. Algumas passagens são povoadas por
espectros e assombrações noturnas, em que o suspense e a tensão são
minuciosamente trabalhados.
Como exemplos, temos a jornada de
Dorian Gray durante a madrugada até uma casa de ópio onde pretende se
livrar de seus próprios fantasmas. Há também os encontros com o retrato
já em estado avançado de corrupção: verdadeiros vislumbres do horror.
Mas
o ápice da tensão é reservado ao próprio protagonista, que descobre não
ser capaz de fugir de si para sempre. Aos poucos, sua consciência vai
se corroendo, mergulhando em uma crise da qual ele não consegue se
libertar, por mais que o busque. Descobre que tampouco é capaz de
reparar seus atos, após tentar mudar radicalmente sua própria natureza.
E
é no embate derradeiro com essa natureza, essa perversa e degenerada
natureza representada pela pintura, que o destino se cumpre. No desfecho
da narrativa, é impossível não evocarmos outro duelo narcísico das
histórias de horror, como o de William Wilson (1839), de Edgar Allan Poe (1809-1849), por exemplo.
Encerra-se
assim, assombrosa em diversos níveis, a obra-prima de Oscar Wilde: com
um personagem que, pela própria essência, ainda hoje choca ao confrontar
normas e julgamentos precipitados, como postulou Mario Praz. E com um
enredo que se abre a infindáveis leituras — mas que converge para uma
verdade, para muitos, insuportável: o monstro pode ser humano,
demasiadamente humano. Por mais que a recusemos, é isso que o livro
jamais cessará de afirmar, clássico absoluto que é.
----------------------- *Oscar Nestarez é ficcionista de horror e mestre em literatura e crítica literária. Publicou Poe e Lovecraft: Um Ensaio Sobre o Medo na Literatura (2013, Livrus), as antologias Sexorcista e Outros Relatos Insólitos (2014, Livrus) e Horror Adentro (2016, Kazuá), e o romance Bile Negra (Empíreo, 2017).
Fonte: https://revistagalileu.globo.com/Cultura/noticia/2019/02/o-retrato-de-dorian-gray-quando-o-horror-e-essencialmente-humano.html
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