Para Christian Dunker, atentado de Suzano
é a expressão de uma nova
lógica:
num país já violento, sobressai agora
a performance narcisista,
uma
‘indução delirante’
que permeia a sociedade
Dois jovens abriram fogo na quarta-feira (13) na escola estadual Raul
Brasil, em Suzano, na região metropolitana de São Paulo. O atentado,
considerado o maior massacre dentro de uma escola no estado, acabou com dez
pessoas mortas, incluindo os atiradores, que se suicidaram.
Os autores do atentado eram ex-alunos da escola. Foram identificados
como Guilherme Taucci Monteiro, de 17 anos, e Luiz Henrique de Castro, de 25
anos. Estavam mascarados e munidos de um revólver calibre 38, uma machadinha e
uma besta, arma medieval de disparo de flecha.
Antes do atentado, exibiam fotos suas com armas em redes sociais e um
deles chegou a dizer para um ex-aluno que gostaria de repetir o massacre de
Columbine, cidade americana do estado de Colorado, onde tiros de uma dupla de
estudantes fortemente armada deixaram 15 mortos, em 1999. A polícia investiga
se a dupla brasileira planejou o ataque em fóruns extremistas na internet.
“A tragédia de Suzano traz uma violência visceral contra uma instituição
simbólica: o lugar onde se estuda, onde se dialoga, onde se aprende”, disse o
psicanalista Christian Dunker, professor livre docente do Instituto de
Psicologia da USP, nesta entrevista ao Nexo.
“Temos, portanto, uma violência que se ancora num discurso disponível na
cultura atual, um discurso que legitima a violência e que recentemente se
mostrou vencedor na sociedade brasileira: as armas são a cura para todos os
males, são a força maior a dar fim aos conflitos. Este é o fator que altera a
equação”, afirmou. Confira os principais trechos da entrevista:
O
atentado em Suzano não é o primeiro na história recente do Brasil. O sr. vê
diferenças entre esses episódios e a violência cotidiana no país?
CHRISTIAN DUNKER Há diferenças, sim. Até a tragédia de Realengo, na zona
oeste do Rio, em 2011, dizia-se que atentados e crimes “em massa” não
aconteciam com tanta frequência no Brasil, apesar da violência cotidiana,
apesar do armamento ilegal, apesar da cultura militar. Isto é, apesar dos
pesares, não vivíamos esse tipo de episódio. A violência foi se infiltrando
paulatinamente nas instituições onde antes não estava, por exemplo, as escolas.
A partir daí, assistimos a uma escalada de assassinos em massa nessas esferas,
portando uma simbologia nova: eles estão atacando as pessoas e o que essas
pessoas representam. Seguem a lógica dos terroristas ao atirar um avião contra
as Torres Gêmeas ou ao imaginar instalar uma bomba na Torre Eiffel.
Algo se alterou nessa equação, de tal forma que a tragédia desta manhã é
substancialmente diferente da violência do cotidiano. A violência do cotidiano
vai do desagravo verbal à repressão policial, passando por agressões a mulheres
e minorias. A tragédia desta manhã, por outro lado, traz uma violência visceral
contra uma instituição simbólica: o lugar onde se estuda, onde se dialoga, onde
se aprende. Temos, portanto, uma violência que se ancora num discurso
disponível na cultura atual, um discurso que legitima a violência e que
recentemente se mostrou vencedor na sociedade brasileira: as armas são a cura
para todos os males, são a força maior a dar fim aos conflitos. Este é o fator
que altera a equação.
Diante de
tiroteios em escolas e universidades, vem à tona uma série de argumentos
diferentes para tentar compreendê-los: o acesso a armas, a cultura violenta de
videogames e fóruns da internet, a existência de gangues nos colégios, os
efeitos do bullying. Esses fatores contribuem para a compreensão do fenômeno?
CHRISTIAN DUNKER Em geral, os fatores estão combinados. Mas eu diria
que, além desses elementos, há um fator que não podemos esquecer: a
performance. Segundo os detalhes que já foram revelados na imprensa, os autores
do atentado não parecem, até agora, ter um perfil psicótico ou delirante. Ao
contrário, programaram as ações como um teatro, com armas medievais. Ao dizer
que pretendiam repetir Columbine, inclusive, já denotam essa ideia de “encenar”
e “exibir”, como se tudo não passasse de um jogo divertido, com um efeito
amargo de realidade. Movidos, talvez, por um tipo de narcisismo, uma vontade de
ser notado e “entrar para a história”.
Reitero: também a questão da performance indica uma mutação do discurso
dominante sobre o que é a violência, e o que é a violência “aceitável”,
“compreensível” ou “justificável” dentro da sociedade brasileira. Isso altera a
nossa realidade psíquica. E essa mutação promete ser muito nefasta, carregando,
inclusive, um sentimento de escalada: a violência vem aumentando, num ritmo
acelerado e errático.
O que o
alvo desses atentados simboliza?
CHRISTIAN DUNKER O que mais sensibiliza e indigna nesses atentados é
gratuidade, isto é, a violência gratuita. Por outro lado, está havendo uma
alteração importante no ponto de vista subjetivo e intersubjetivo sobre o que é
a escola. Cada vez mais, esses espaços estão sendo vistos como lugares
“tóxicos”. Por vários motivos, por exemplo: a escola era o último refúgio. Em uma
sociedade em que se diz que os políticos são todos corruptos, que a imprensa é
mentirosa, que a ciência é fake news, a escola também desmoronou. A escola
agora também é um antro de corrupção, de doutrinação, de controle da mente dos
outros. Também é parte de um complô internacional. É a expressão do efeito de
indução delirante que está permeando a sociedade. Combinado a um discurso
ascendente de carta branca para violência, temos um curto-circuito.
É
possível evitar essas explosões de violência?
CHRISTIAN DUNKER Quando vivemos o acontecimento, imaginamos medidas
pontuais para impedir que uma tragédia se repita: já vão dizer que é preciso
instalar detectores de metal nas escolas, dispensar professores e contratar
vigias, etc. Isso ignora que essas explosões são provocadas por uma série de
fatores sistêmicos, parte de uma estrutura invisível e complexa: a ideia de que
a violência é legítima.
Assim, o tratamento não pode ser punitivo, mas reeducativo. É preciso,
portanto, uma mudança de discurso. Vão dizer que isso é muito vago, mas é
justamente fechar os olhos para as discussões complexas e as contradições da
sociedade humana que acaba varrendo essas questões de fundo para debaixo do
tapete. Você se concentra tanto em confrontar inimigos imaginários, e não se dá
conta de impasses reais.
Sempre pensamos que o momento que vivemos é o auge de tudo, inclusive da
violência. Eu diria que o Brasil é violento, sim, e isso não deveria
surpreender ninguém. O Brasil vive uma escalada de violência tangível,
alavancada por um discurso. Não deveria surpreender ninguém, por exemplo, que
no dia seguinte à prisão dos acusados de matar Marielle Franco, um crime
histórico, simbólico, trágico, assistimos a um massacre brutal de estudantes.
Entretanto, sempre nos surpreendemos. Quantos ainda precisam acontecer para
compreendermos que é preciso mudar o discurso sobre a violência?
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Reportagem POR Juliana Sayuri
Fonte: https://www.nexojornal.com.br/entrevista/2019/03/14/%E2%80%98Algo-se-alterou-na-viol%C3%AAncia-brasileira%E2%80%99-diz-psicanalista?utm_campaign=sds&utm_source=Newsletter
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