terça-feira, 31 de agosto de 2010

Tempos de mudança, e de céus que escurecem

Perspectivas:
 Tempestade à vista: envelhecimento,
mais globalização e disputas geopolíticas .

Robert Shapiro:
enquanto a globalização aumenta o retorno dos investimentos,
 a competição segura os salários

 Futurologia não é um exercício a ser levado muito a sério. Mas há modos e modos de imaginar horizontes. E este livro de Robert Shapiro - ex-subsecretário de Comércio dos Estados Unidos (1998-2001), principal conselheiro econômico de Bill Clinton e conselheiro de Al Gore e John Kerry - não se perde em leviandades. O autor até admite onde pode errar. O resultado é uma leitura inquietante.

Três forças globais, segundo Shapiro, estão se combinando para formar uma "tempestade" que varrerá o planeta num prazo de 10 ou, no máximo, 15 anos: o envelhecimento da população, o aprofundamento da globalização - sobretudo a dos serviços - e o rearranjo da geopolítica mundial em torno de uma única potência militar e econômica: os Estados Unidos.

O envelhecimento da população e seus diversos impactos sobre a contabilidade da previdência social, impostos, mercado de trabalho, salários e renda das famílias já constitui sério problema em grande parte dos países. China, Estados Unidos e Japão, por exemplo, compensaram a queda de produtividade com a desregulamentação de mercados, investimentos em tecnologia ou com políticas de imigração. O mesmo se vê na Europa.

Mas Shapiro traça um cenário ainda mais dramático: até 2020, a população idosa, no mundo, crescerá de 35 a 60%, forçando a elevação dos gastos públicos, o aumento de tributos e os déficits dos governos. Na Europa, o número de idosos que recebem pensões públicas e assistência médica aumentará cerca de 3% por ano, nos próximos dez anos, enquanto o total de habitantes em idade de trabalho cairá em torno de 1%. No Japão, o número de idosos equivalerá a mais de metade da população economicamente ativa. E esse [e um problema que só tenderá a se agravar: o número de crianças japonesas e europeias que, quando adultas, estarão trabalhando e pagando impostos em 2025 e 2035 está caindo mais rapidamente do que a população economicamente ativa.

Enquanto a população envelhece, a globalização se aprofunda. Em 2020, a maior parte dos produtos manufaturados e dos serviços consumidos por europeus, americanos e asiáticos terá origem em países em desenvolvimento, porque ali se pagam baixos salários. A China e a Indonésia produzirão bens pesados para o mercado europeu; a Turquia e a Romênia, para a Europa; e a América Latina, para o mercado americano. As manufaturas pesadas importantes terão desaparecido das economias avançadas.

Os serviços terão destino semelhante. O desenvolvimento de softwares permitirá às companhias fracionar um serviço complexo - de projeto de pesquisa e desenvolvimento a diagnósticos médicos, passando por áreas de controle de estoque - e distribuir tarefas entre empresas capacitadas em qualquer parte do mundo. A exemplo do que tem ocorrido com a manufatura, os preços dos serviços cairão, assim como a oferta de emprego nos países desenvolvidos.

Sem alternativas para elevar preços, nesse cenário demograficamente explosivo e de concorrência global, as empresas se voltam para empregos e salários para cortar custos. O céu já se tornou cinzento sobre a Europa e os Estados Unidos, onde renda e emprego estão estagnados ou em queda. Dez em cada 100 trabalhadores americanos estão desempregados e 4,5 milhões vivem do seguro-desemprego.

Quando as mudanças demográficas e as pressões econômicas entrarem em rota de colisão, uma parcela de rendas da sociedade será reivindicada para pensões públicas e serviços de assistência à saúde, por meio da elevação de impostos e desaceleração dos investimentos.

Nesse cenário, os conflitos internacionais não assumem a forma de confronto entre países poderosos, mas de tensão entre países conectados por redes globais de comércio e informação e países fora desse circuito. Assim, "órfãos ideológicos" do socialismo bradam contra as instituições responsáveis pela administração de interesses econômicos divergentes (OMC, FMI etc.) ou atacam os direitos tradicionais de propriedade intelectual, açulados pelo Brasil, Argentina e Índia, afirma Shapiro.

O terrorismo islâmico inscreve-se na mesma órbita periférica à globalização. Coreia do Norte e Irã poderão confrontar os Estados Unidos e aliados, mas Shapiro descarta a eventualidade de conflitos entre grandes potências. Não obstante, considera provável que a China, em 2020, terá se tornado concorrente militar do poder americano e estará disputando influência no Norte, Sul e Sudeste da Ásia.

As três "forças históricas", como ele diz, aprofundarão a desigualdade econômica no planeta: enquanto a globalização aumenta o retorno dos investimentos, a competição segura os salários. Mais que isso: a ideia substituirá ativos fixos como fonte de riqueza. Hoje, dois terços do valor contábil de uma grande companhia já são seus ativos intangíveis - patentes, direitos autorais, bancos de dados, marcas e qualificação de recursos humanos.

A prosperidade dos países, nos próximos dez anos, dependerá da capacidade de lidarem com essas três forças. As perspectivas, na China são mais positivas: a força de trabalho ganhará 90 milhões de pessoas até 2015, quando o efeito da baixa fertilidade começará a aparecer. Em 2020, o país poderá estar em primeiro lugar, no mundo, em termos de comércio global, e será grande investidor em empresas americanas e europeias, contanto que seu antiquado setor de serviços e o sistema financeiro não prejudiquem o progresso.

Shapiro não aprofunda a análise das perspectivas de futuro dos países latino-americanos. Aqueles que permanecerem "fechados" e não investirem em infraestrutura e em educação ficarão entre os perdedores. Políticas de estímulo ao empreendedorismo e redução das restrições a investimentos estrangeiros estão entre as recomendações de Shapiro. Mas, para manter o progresso nos próximos 10 a 15 anos, os países em desenvolvimento - inclusive a China - terão, sobretudo, de aceitar o "limite estratégico dos negócios modernos", representado pela proteção da propriedade intelectua

"A Previsão do Futuro"
Bloomberg
Robert J. Shapiro. Tradução de Mario Pina. Best Business.
518 págs., 64,90

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Reportagem: Por Claudia Izique , para o Valor, de São Paulo
Fonte: Valor Econômico online, 31/08/2010

Queda da desigualdade de renda no país coloca mais 31, 9 milhões no mercado


"No futuro, as pessoas não olharão Lula como o novo Getúlio Vargas. Mas entenderão Vargas como o Lula do passado. O presidente encarna a principal mudança por que passou o Brasil nos últimos anos, ele é a nova classe média. Lula é o Nelson Mandela tupiniquim". A análise é de Marcelo Néri, economista da Fundação Getulio Vargas do Rio de Janeiro (FGV-RJ) e um dos maiores especialistas em política social do país.

"Na última década, a desigualdade de renda caiu como nunca em nossa história. O equivalente a 31,9 milhões de pessoas ascenderam à classe C, ingressando no mercado consumidor, ampliando a capacidade de nossa economia crescer", avalia Neri, para quem, no entanto, o futuro do país está nas classes A e B. "Quando terminarmos o processo de transferir pessoas das classes D e E para a C, passaremos a transferi-las da C para cima, o que gerará maior pressão sobre os ricos."

A percepção de Neri não é isolada. Durante seminário realizado ontem pela Fundação Getulio Vargas, em São Paulo, economistas e cientistas políticos configuraram o atual momento da economia brasileira como "privilegiado". Para o cientista político André Singer, as condições econômicas e sociais estão próximas do período do New Deal, nos Estados Unidos, quando o governo americano, por meio de gastos em programas de amparo social e em obras de infraestrutura, impulsionou o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) após o "crash" de 1929. "Para ir além", disse Singer, "é indispensável manter a elevação do salário mínimo".

O processo virtuoso, conforme avaliação dos participantes do debate, está assentado em "pontos-chave", como denominou Neri. Segundo números do economista da FGV, a renda oriunda do trabalho respondeu por 67% da redução na desigualdade, a frente dos 17% oriundos de programas de transferência direta de renda, como Bolsa Família, e dos 15,7% provenientes da Previdência Social . "O tripé é este", diz Singer, "quer dizer, aumento do emprego, seguido de gastos com pobreza extrema e aposentadorias".

Este quadro, no entanto, também revela problemas. "Do ponto de vista do crescimento acelerado combinado com redução da desigualdade, o jogo como está colocado hoje é preocupante", avalia Mariano Laplane, economista da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). "Ficamos por quase 30 anos completamente à margem do desenvolvimento. O mundo moveu seu eixo tecnológico e industrial para os países asiáticos, ao longo dos anos 1970, e nós ficamos parados, assistindo isso tudo", afirma.

A lógica de Laplane, compartilhada por outros economistas da FGV, é que o ritmo acelerado do PIB - que neste ano, segundo estimativas do governo, deve passar por ampliação de 7%, a maior em 24 anos - não se sustentará, uma vez que o parque industrial brasileiro é pouco desenvolvido tecnologicamente, quando comparado com outros países, como a China.

"Os ganhos de produtividade que nossa indústria fez após a abertura comercial, em 1990, são claramente incapazes de fazer frente aos competidores externos", avalia Laplane, para quem a ampliação do mercado de trabalho passa, principalmente, por maior oferta de empregos no setor industrial.

"Nos próximos dez anos, nosso crescimento será focado no mercado interno. Se não quisermos que a renda que estamos dividindo vaze para o exterior, por meio do consumo de importados, é preciso atenção maior com a indústria", raciocina Paulo Gala, economista da FGV-SP.

A pressão por mudanças, no entanto, ocorrerá de forma difusa, avaliam Neri e Singer. Para este, a nova classe média é "parcialmente conservadora", uma vez que quer continuar ascendendo socialmente, mas deseja que isso ocorra dentro da ordem, sem radicalizações. "Seja para fortalecer o processo de redução da pobreza, seja para efetuar mudanças do lado econômico, como alterar o câmbio e reduzir os juros, o Estado têm diante de si um novo proletariado, que está no setor de serviços, como os operadores de telemarketing", diz Singer.

Para Neri, a nova classe média "não precisa tanto do Estado quanto os mais pobres", assim, passa a ser natural que o Estado "foque mais em políticas sociais aos mais necessitados, deixando a classe ascendente com margem para desenvolvimento próprio".
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Reportagem: PorJoão Villaverde, de São Paulo
Fonte: Valor Econômico online, 31/08/2010

A volta do bode preto da velha esquerda

Arnaldo Jabor*


Meu primeiro grande amor começou num "aparelho" do Partido Comunista Brasileiro em 1963, meses antes do golpe militar. Era um pequeno apartamento conjugado na Rua Djalma Ulrich em Copacabana, em cima de uma loja de discos. No apartamento, havia um sofá-cama com a paina aparecendo por um buraco da mola, entre manchas indistintas - marcas de amor ou de revolução? Na parede, um cartaz dos girassóis de Van Gogh e, numa tábua sobre tijolos, livros da Academia de Ciências da URSS. Um companheiro me emprestara a chave com olhar preocupado, sabendo que era para o amor e não para a política. "Cuidado, hein, se o dirigente da "base" souber..." - disse-me, vendo a gratidão em meus olhos.

Eu era virgem de sexo com namoradas, pois pouquíssimas moças "davam", nessa época anterior à pílula; transar para elas era ainda um ato de coragem política. As moças iam para a cama pálidas de medo, para romper com a "vida burguesa", correndo o risco da gravidez - supremo pavor. Famintos de amor, usávamos até Marx para convencer as meninas.

"Não. Aí eu não entro!", gemiam, empacadas na porta do apartamento. Nós usávamos argumentos que iam de Sartre e Simone até a revolução: "Mas, meu bem... deixa de ser "alienada"... A sexualidade é um ato de liberdade contra a direita..."

Tudo era ideológico em Ipanema - até a praia tinha um gosto de transgressão política. Éramos assim nos anos 60.

A guerra fria, Cuba, China, tudo dava a sensação de que a "revolução" estava próxima. "Revolução" era uma varinha de condão, uma mudança radical em tudo, desde nossos "pintinhos" até a reorganização das relações de produção. Não fazíamos diferença entre desejo e possibilidade. Eu era do "Grupo Vertigem", como colegas radicais nos apelidaram. Nossa revolução era poética, Rimbaud com Guevara; era uma esperança de um tempo futuro em que a feia confusão da vida se harmonizaria numa perfeição política e estética. Para os mais obsessivos, era uma tarefa a cumprir, uma disciplina infernal, um calvário de sacrifícios para atingir não sabíamos bem o quê. Tínhamos os fins, mas não tínhamos os meios.

E, como todos, tínhamos horror ao demônio do capital e da administração da realidade para a luta (coisa chata, sem utopia...) Por isso, a incompetência era arrepiante. Ninguém sabia administrar nada, mas essa mediocridade era compensada por bandeiras e frases bombásticas sobre justiça social, etc... Nunca vi gente tão incompetente quanto a velha esquerda que agora quer voltar ao poder como em 63, de novo com a ajuda de um presidente. Assim como foi com Jango, agora precisam do Lula. São as mesmas besteiras de pessoas que ainda pensam como nos anos 60 e, pior, anos 40.

"Revolução" era uma mão na roda para justificar sua ignorância, pois essa ala da esquerda burra (a inteligente cresceu e mudou...) não precisava estudar nada profundamente, por serem "a favor" do bem e da justiça - a "boa consciência", último refúgio dos boçais. Era generosidade e era egoísmo. A desgraça dos pobres nos doía como um problema existencial nosso, embora a miséria fosse deles. Em nossa "fome" pela justiça, nem pensávamos nas dificuldades de qualquer revolução, as tais "condições objetivas"; não sabíamos nada, mas o desejo bastava. Como hoje, os idiotas continuam com as mesmas palavras, se bem que aprenderam a roubar e mentir como "burgueses".

A democracia lhes repugnava, com suas fragilidades, sua lentidão. Era difícil fazer uma revolução? Deixávamos esses "detalhes mixurucas" para os militantes tarefeiros, que considerávamos inferiores, "peões" de Lenin ou (mais absurdo ainda) delegávamos o dever da revolução ao presidente da República, na melhor tradição de dependência ao Estado, como hoje. Deu nos 20 anos de bode preto da ditadura.

Por que escrevo essas coisas antigas, estimado leitor? Porque muita gente que está aí, gritando slogans, não quer entender que a via mais revolucionária para o Brasil de hoje é justamente o que chamávamos de "democracia burguesa", com boquinha de nojo. Muita gente sem idade e sem memória não sabe que o caminho para o crescimento e justiça social é o progressivo aperfeiçoamento da democracia, minando aos poucos, com reformas, a tradição escrota de oligarquias patrimonialistas. Escrevo isso porque acho que a luta de hoje é entre a verdadeira esquerda que amadureceu e uma esquerda que quer continuar a bobagem, não por romantismo, mas porque o Lula abri-lhes as portas para a lucrativa pelegagem. Vejo, assustado, que querem substituir o patrimonialismo "burguês" pelo sindicalista, claro que numa aliança de metas e métodos com o que há de pior na política deste país. Vão partir para um controle soviético e gramsciano vulgar do Estado para ter salvo-condutos para suas roubalheiras num país sem oposição, entregue a inimigos da liberdade de opinião. Escrevo isso enojado pela mentira vencendo com 80% de Ibope, apagando como da história brasileira o melhor governo que já tivemos de 94 a 2002, com o Plano Real, com a Lei de Responsabilidade Fiscal, com a telefonia moderna de hoje, com o Proer que limpou os bancos e impediu a crise nos atingir, com privatizações essenciais que mentem ao povo que "venderam nossos bens...", com a diminuição da pobreza em 35% e que abriu caminho para o progresso econômico de hoje que foi apropriado na "mão grande" por Lula e seus bolchevistas. Ladroeira pura, que o povo, anestesiado pelo Bolsa-Família e pelas rebolations do Lula na TV, não entende. Também estou enojado com os vergonhosos tucanos apanhando na cara por oito anos sem reagir. O governo Lula roubou FHC e o mais sério período do País e seus amigos nunca o defenderam nem reagiram. São pássaros ridículos em extinção.

Tenho orgulho de que, há 40 anos, no apartamento conjugado do Partidão com minha namorada, eu gostava mais dos girassóis de Van Gogh do que dos livros de Plenkanov.

Por isso, para levar meu primeiro amor ao apartamento, usei uma cantada de esquerda: "Nosso amor também é uma forma de luta contra o imperialismo norte-americano." E ela foi.
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* Cineasta, crítico e escritor brasileiro.
arnaldo.jabor@estadao.com.br  - O Estado de S.Paulo

Fonte: Estadão online, 31/08/2010

Abortos, canibais e peregrinos

JOÃO PEREIRA COUTINHO*

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O feto só é vida quando somos capazes
de imaginar uma vida para e com ele;
vida passa a ser uma opção

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24 DE AGOSTO

AS DISCUSSÕES sobre o aborto despertam o poeta que há em nós. Uma amiga disse-me hoje que era favorável ao aborto livre porque só existe vida, ser humano, "pessoa", quando existe um nome.

Entendo a metáfora: o feto converte-se em vida quando somos capazes de projetar uma identidade nele. Quando o feto deixa de ser feto e passa a ser, sei lá, Maria ou Manuel. Quando é, no fundo, desejado.

Em silêncio, ainda contemplei as vantagens de uma legislação que consagrasse essa espécie de "validade onomástica": os pais evitavam dar nome ao filho até os 12 ou 13 (anos, não meses) e esperavam para ver.

Se ele fosse um adolescente típico, com maus modos e péssima higiene, seria sempre possível despachar a "coisa", a inominada "coisa", para o outro mundo. E por que não?

Se o feto só é vida quando somos capazes de imaginar uma vida para ele e com ele, a própria noção de "vida humana" deixa de repousar nas mãos do mistério (evitemos referências ao patrão lá de cima) e passa a ser opção de cada um.

Como, na verdade, já é: podemos mascarar a discussão sobre o aborto com quilos de retórica social, feminista, criminal ou sanitária.

Mas a "liberalização do aborto" parte de uma atitude filosófica que consiste em "privatizar" a noção de vida humana.

Para uns, é Maria. Para outros, é um amontoado de células (benignas) que se remove como se removem as malignas. Caso encerrado.

27 DE AGOSTO

Um restaurante em Berlim que serve carne humana? Desconfiei. Acertei. Era piada, revelam os jornais. A Alemanha é pródiga em horrores mil, mas não existe restaurante canibal nenhum para cozinhar pratos de inspiração wari. Muito menos disposto a receber braços ou pernas de doadores beneméritos.

Pressinto alguma desilusão entre leitores "gourmet". Mas a inquietação teórica, com ou sem esse restaurante, mantém-se: será legítimo o canibalismo?

Montaigne, no século 16, dizia que sim, desde que a matéria-prima já estivesse morta. E se eu já posso legar o meu corpo para a ciência, por que não para a panela?

Boa pergunta. Pena que, na confusão mental em que vivemos, não haja uma resposta vigorosa para ela.

Como, por exemplo, lembrar os presentes que a forma como devemos honrar os ausentes não passa por assá-los no espeto. Isso seria uma forma de desrespeito, não necessariamente pelos mortos mas pela sensibilidade e humanidade dos vivos.

A exata sensibilidade e humanidade que nos impede de passear com cadáveres no shopping; de transformá-los em cabides ou bibelôs para a casa (depois de empalhados, claro); ou de usá-los para praticar tiro ao alvo, mesmo que todas essas fossem vontades expressas do defunto.

O episódio anedótico do restaurante berlinense serviu, ao menos, para lembrar que uma sociedade incapaz de respeitar os mortos é incapaz de se respeitar a si própria.

29 DE AGOSTO

Coincidências: a BBC informa que o vaso sanitário de John Lennon está à venda por 9.500 libras. O "Sunday Telegraph", no mesmo dia, informa que o vaso sanitário do escritor J.D. Salinger também. Por US$ 1 milhão. Como explicar essa diferença de preços?

Não quero ser acusado de preconceitos culturais, mas sempre disse que existe uma superioridade evidente da grande literatura sobre a música pop.

E, além disso, o vaso de Salinger foi usado durante meio século; o de Lennon, durante três anos. Deve ser incomparavelmente mais transcendente para o órfão respectivo sentar onde o patriarca teve os melhores pensamentos durante meio século, e não durante míseros três anos.

E digo "órfão" com todo o respeito: o historiador Paul Johnson escrevia em tempos que a adoração que dedicamos às "celebridades" é uma corruptela do tipo de adoração que os nossos antepassados dedicavam a santos, beatos e outros tipos de iluminados.

Johnson está certo. Tão certo que os peregrinos de hoje até imitam os peregrinos de ontem na busca desesperada de uma relíquia. Ontem, um pedaço de tecido. Hoje, um vaso sanitário. Amanhã, quem sabe, a língua de Madonna, enfiada num recipiente de formol, como a língua de santo Antônio de Lisboa que vi na Itália, anos atrás.
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* Frequentou a Escola Superior de Teatro e Cinema, em Lisboa, acabando por se licenciar em História (na variante de História da Arte), pela Universidade do Porto. Prossegiu estudos na Universidade Católica Portuguesa, onde se doutorou em Teoria e Ciência Política Contemporânea e é, actualmente, Professor Convidado. Escritor. Colunista da Folha.jpcoutinho@folha.com.br

Fonte: Folha online, 31/08/2010

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Consolidar a ruptura histórica operada pelo PT

Leonardo Boff *


Para mim o significado maior desta eleição é consolidar a ruptura que Lula e o PT instauraram na história política brasileira. Derrotaram as elites econômico-financeiras e seu braço ideológico, a grande imprensa comercial. Notoriamente, elas sempre mantiveram o povo à margem da cidadania, feito, na dura linguagem de nosso maior historiador mulato, Capistrano de Abreu, "capado e recapado, sangrado e ressangrado". Elas estiveram montadas no poder por quase 500 anos. Organizaram o Estado de tal forma que seus privilégios ficassem sempre salvaguradados. Por isso, segundo dados do Banco Mundial, são aquelas que, proporcionalmente, mais acumulam no mundo e se contam, política e socialmente, entre as mais atrasadas e insensíveis. São vinte mil famílias que, mais ou menos, controlam 46% de toda a riqueza nacional, sendo que 1% delas possui 44% de todas as terras. Não admira que estejamos entre os países mais desiguais do mundo, o que equivale dizer, um dos mais injustos e perversos do planeta.

Até a vitória de um filho da pobreza, Lula, a casa grande e a senzala constituíam os gonzos que sustentavam o mundo social das elites. A casa grande não permitia que a senzala descobrisse que a riqueza das elites fora construída com seu trabalho superexplorado, com seu sangue e suas vidas, feitas carvão no processo produtivo. Com alianças espertas, embaralhavam diferentemente as cartas para manter sempre o mesmo jogo e, gozadores, repetiam: "façamos nós a revolução antes que o povo a faça". E a revolução consistia em mudar um pouco para ficar tudo como antes. Destarte, abortavam a emergência de outro sujeito histórico de poder, capaz de ocupar a cena e inaugurar um tempo moderno e menos excludente. Entretanto, contra sua vontade, irromperam redes de movimentos sociais de resistência e de autonomia. Esse poder social se canalizou em poder político até conquistar o poder de Estado.

Escândalo dos escândalos para as mentes súcubas e alinhadas aos poderes mundiais: um operário, sobrevivente da grande tribulação, representante da cultura popular, um não educado academicamente na escola dos faraós, chegar ao poder central e devolver ao povo o sentimento de dignidade, de força histórica e de ser sujeito de uma democracia republicana, onde "a coisa pública", o social, a vida lascada do povo ganhasse centralidade. Na linha de Gandhi, Lula anunciou: "não vim para administrar, vim para cuidar; empresa eu administro, um povo vivo e sofrido eu cuido". Linguagem inaudita e instauradora de um novo tempo na política brasileira. O "Fome Zero", depois o "Bolsa Família", o "Crédito Consignado", o "Luz para Todos", o "Minha Casa, minha Vida, o "Agricultura familiar, o "Prouni", as "Escolas Profissionais", entre outras iniciativas sociais permitiram que a sociedade dos lascados conhecesse o que nunca as elites econômico-financeiras lhes permitiram: um salto de qualidade. Milhões passaram da miséria sofrida à pobreza digna e laboriosa e da pobreza para a classe média. Toda sociedade se mobilizou para melhor.

Mas essa derrota infligida às elites excludentes e anti-povo, deve ser consolidada nesta eleição por uma vitória convincente para que se configure um "não retorno definitivo" e elas percam a vergonha de se sentirem povo brasileiro assim como é e não como gostariam que fosse. Terminou o longo amanhecer.

Houve três olhares sobre o Brasil. Primeiro, foi visto a partir da praia: os índios assistindo a invasão de suas terras. Segundo, foi visto a partir das caravelas: os portugueses "descobrindo/encobrindo" o Brasil. O terceiro, o Brasil ousou ver-se a si mesmo e aí começou a invenção de uma república mestiça étnica e culturalmente que hoje somos. O Brasil enfrentou ainda quatro duras invasões: a colonização que dizimou os indígenas e introduziu a escravidão; a vinda dos povos novos, os emigrantes europeus que substituíram índios e escravos; a industrialização conservadora de substituição dos anos 30 do século passado mas que criou um vigoroso mercado interno e, por fim, a globalização econômico-financeira, inserindo-nos como sócios menores.

Face a esta história tortuosa, o Brasil se mostrou resiliente, quer dizer, enfrentou estas visões e intromissões, conseguindo dar a volta por cima e aprender de suas desgraças. Agora está colhendo os frutos.

Urge derrotar aquelas forças reacionárias que se escondem atrás do candidato da oposição. Não julgo a pessoa, coisa de Deus, mas o que representa como ator social. Celso Furtado, nosso melhor pensador em economia, morreu deixando uma advertência, título de seu livro A construção interrompida (1993): "Trata-se de saber se temos um futuro como nação que conta no devir humano. Ou se prevalecerão as forças que se empenham em interromper o nosso processo histórico de formação de um Estado-Nação" (p.35). Estas não podem prevalecer. Temos condições de completar a construção do Brasil, derrotando-as com Lula e as forças que realizarão o sonho de Celso Furtado e o nosso.
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* Teólogo, filósofo e escritor. Autor de Depois de 500 anos: que Brasil queremos, Vozes (2000).
Fonte: Adital, 30/08/2010

O virtuosismo acadêmico e suas grifes internacionais



Carlos Henrique Machado Freitas
Como andam os nossos filósofos de sentido contrário ao país?
Parece que há mesmo um verdadeiro temor em não mais nos purificarmos
 com a água sagrada européia.

A BANCA DO DISTINTO

(Billy Blanco**)

Não fala com pobre, não dá mão a preto

Não carrega embrulho

Pra que tanta pose, doutor

Pra que esse orgulho

A bruxa que é cega esbarra na gente

E a vida estanca

O enfarte lhe pega, doutor

E acaba essa banca

A vaidade é assim, põe o bobo no alto

E retira a escada

Mas fica por perto esperando sentada

Mais cedo ou mais tarde ele acaba no chão

Mais alto o coqueiro, maior é o tombo do coco afinal

Todo mundo é igual quando a vida termina

Com terra em cima e na horizontal

Essa espécie de comércio da sociedade que quer nos empurrar certo brasileiro isento de impurezas anda contaminando excessivamente certo corpo docente. Originais? Não. Ao contrário, a moléstia acadêmica é pura, aliás, eles não se intimidam com a razão, enfrentam a morte de suas análises com uma coragem indescritível. Mas por que seriam prudentes? Suas imortalidades nos assentos divinos nos mosteiros acadêmicos têm como verdade cultural a mesma dos magistrados peregrinos. A felicidade divina lhes é garantida com o diploma, mesmo que este venha acompanhado de um pensamento doente, mas jamais forasteiro. A fisionomia de piedade não cai bem aos que têm a sagrada missão de produzir a sobrevivência das almas através da mais alta elevação do gênero da raça. Essa gente escolhida a dedo por Deus é de fato o denominador comum do contrário. Ela é ímpar no fogo frio. Supomos que empilhar palavras seja o exercício que substitui o raciocínio em determinados homens capazes das maiores estripulias acadêmicas.

Certamente eles não andam nas ruas do Brasil, pois o sol é muito quente. Levam consigo a soberba de um lorde, na grife de sua casaca ou na fachada do seu prédio. Não há nada pior neste país do que a cólera culta. Essa gente que se aproxima da vida somente após o por do sol. Imaginem isso num país extraordinariamente alegre! Mas para eles, essa alegria, essa riqueza vem do baixo ventre, vem dos pedaços de pau ou da pedra lascada. Esses análogos tentam, por distração talvez, esquecer que aqui dentro existe um país, não como gênero, mas um país que tem narrativa própria, mesmo que seus ouvidos mocos e fugitivos não queiram ouvir o exame dos nossos argumentos.

Sempre prontos a nos desencorajar, essa demonstração de força contrária que vem dos castelos diplomados, jamais ergueu os olhos em direção ao país. São cheios de pudores, de destinos traçados, preferem beber o veneno do suicídio acadêmico do que ouvir o conselho que vem das ruas. A incorreção de suas linguagens sobre o Brasil não se recomenda ao pior inimigo. A moralidade de plantão que vive de palavra em palavra sugerindo a morte do nacional em nome do universal, é escrito no Brasil por ensaístas provincianos há quinhentos anos. E hoje, mantendo a tradição e a ordem cronológica, os guardiões da causa intelectual, universal julgam legislar em causa própria. Aristocratas e primitivistas suas associações pitagóricas são de um beque de fazenda que dão um bicudo acadêmico para onde o nariz aponta, tentando assim criar a república das leis culturais. Uma república que por definição é enigmática e sem ação. Mas julgam eles que foi anunciada por Deus.

O grande problema é a sobrevivência das almas, assim suponho. No caso do Brasil jamais dependeu desse raciocínio, ao contrário, as nossas numerosas formas de nos relacionarmos com as expressões artísticas sempre se apresentaram a partir do calor das nossas próprias opiniões. Como se vê na prática os exemplos citados por conseqüências morais da mais sábia corte não conseguem persuasão possível para condenar ou destruir nossos órfãos. O que esperam de nós? Seguiremos seu conselho, doutor? A natureza de nossas almas carece do raciocínio superior do seu diploma? Sim. Quer que eu seja suficientemente fraco para compreender as suas recomendações? Mas quais são elas? Sabe mesmo o que diz? Tem uma lógica objetiva do que fala? Creio que não. Parece-me mais um possuidor de inteligência artificial de empilhadeira de papéis desencontrados entre a antiga tradição e o virtuosismo técnico. Atordoados, perturbados, incapazes de distinguir suas próprias pernas, por isso tantos tropeços.

Precisamos falar mais do primitivismo global que afasta as pessoas do sentido real. A unidade fracionada nas citações, mas unidas na incapacidade de compreender as realidades, já ultrapassou, sobretudo no Brasil, o limite da estupidez. Está na hora de bater as panelas debaixo das janelas dos monges pra ver se tiramos os ácaros e as naftalinas que impedem a progressão da nossa soberania cuja dominação depende da presença massiva, geração após geração, dos proprietários da cultura de opinião comprada e contrária ao Brasil, mas que infelizmente carregam com eles ainda, em pleno 2010, a cera e o anel dos diplomas das academias brasileiras de arte.
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**William Blanco Abrunhosa Trindade (Belém do Pará, 8 de maio de 1924) é um arquiteto, músico, compositor e escritor brasileiro.
Atraído pela música desde criança, quando começou a compor tinha o cuidado ao escrever seus sambas, com letras elaboradas, assuntos e composições das canções.
Nos anos de 1940, quando cursava o segundo ano de engenharia, foi para São Paulo, para fazer o curso de arquitetura, ingressou no Mackenzie College em 1946. Foi para o Rio de Janeiro, e estudou na Faculdade de Arquitetura e Belas Artes, em 1948. Graduando-se em 1950, em arquitetura.
Fonte: http://www.culturaemercado.com.br 28/08/2010

domingo, 29 de agosto de 2010

Os céus da invenção

Dayse de Vasconcelos Mayer*

Escrevi recentemente uma crônica focando a solidão do poder. O tema de hoje é recorrente. Desta vez a inspiração é encontrada na mitologia grega e nas musas - divindades inspiradoras das artes. Foram cantadas, por escritores como Camões e Shakespeare. O segundo escreve, no prólogo de Henrique V: “Que uma musa de fogo ascenda aos mais brilhantes céus da invenção”.

As musas também cortejavam os revolucionários. Recordo, nesse aspecto, a figura quase desconhecida no Brasil de Thomas Paine. Este travou uma batalha histórica pelos direitos do homem e desafiou o poder corrupto das igrejas. Foi considerado o mais célebre inspirador da Revolução Norte-Americana. Gerou grandes polêmicas e despertou animosidades várias. Até porque abrigava ideias consideradas desajuizadas ou extravagantes para minimizar as injustiças sociais na Inglaterra: queria um governo representativo forte que decretasse a assistência "temporária" aos pobres, pensão vitalícia para os idosos, auxílio público para estabelecer a universalidade da educação, salário compatível para o trabalhador... Como se observa, os nossos governantes não estão sendo nada criativos em suas políticas. Apenas aplicam a Lei de Lavoisier com as devidas acomodações.

Foi nos EUA que o escritor granjeou maior fama, graças à amizade, entre outros, com Benjamin Franklin, Thomas Jefferson e George Washington.

Surpreende a trajetória de Paine. Abandona a escola aos 12 anos para iniciar o ofício de fabricante de espartilhos. Desiste do trabalho para se juntar à tripulação de um navio corsário. Cansado da vida no mar aceita o convite para lecionar inglês. Renuncia à docência para ser pastor metodista. Neste ofício ganha notável experiência na oratória ou arte de falar em público. Ainda assim, esquece o serviço religioso para ser cobrador de impostos. É exonerado do cargo no instante em que divulga um panfleto exigindo aumento de salário para a classe de cobradores. Casou duas vezes e foi largado. A segunda mulher não suportou a falência do marido na condição de dono de mercearia e negociante de tabaco.

Convicto da sua fraca vocação para os negócios, decide polir seus conhecimentos em filosofia e política. A aproximação com Jefferson tornou possível a obtenção de um contrato para ser editor do The Pennsylvania Magazine. Novamente foi demitido. Inicia a escrita e publicação da obra Senso comum, que teve o grande mérito de precipitar os debates em torno da sublevação norte-americana contra o domínio inglês.

Com a independência dos EUA, em 1776, o revolucionário passa a viver da pensão aprovada pelo Congresso norte-americano. Os recursos são aplicados na construção de pontes nos EUA contando com o auxílio de patrocinadores estrangeiros. Não logrou êxito uma vez mais e foi à bancarrota. A obra Rights of man (Os direitos do homem) - dedicada a George Washington e escrita durante a Revolução Francesa - fomenta a insatisfação do povo contra os governantes. Os jornais favoráveis ao governo passam a chamar Paine de "Tom, o louco". É acusado pelos jacobinos de subversão e calúnia. Inicia a escrita do seu trabalho mais controverso Age of reason (A idade da razão) em que defende o deísmo considerando a razão a via exclusiva para assegurar a existência de Deus. Erradicava, nesse aspecto, qualquer ideia de revelação divina e rejeitava dogmas e tradição. Levado à prisão sem julgamento e sob a ameaça de guilhotina, salva-se por um feliz engano. Em 1802 retorna aos EUA. Sob o protesto dos federalistas, o presidente Thomas Jefferson recebe-o de forma amistosa e corajosa na Casa Branca.

Durante os últimos anos de vida o trágico herói conheceu a pobreza extrema, a doença e o abandono até dos melhores amigos. Restou unicamente Marguerite de Bonneville que lhe ofereceu a sua casa. Morreu em 1809 e nenhum cemitério quis aceitar o seu corpo. Apenas três pessoas compareceram ao funeral revelando o que já sabemos: o homem nasce, vive e morre só.
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* Dayse de Vasconcelos Mayer é docente e advogada
Fonte: JC online, 29/08/2010

Em que esquina dobrei errado?

MARTHA MEDEIROS*

Quanta gente perde a vida que almejou por ter virado numa esquina que não conduzia a lugar algum?

Aconteceu em Paris. Estava sozinha e tinha duas horas livres antes de chamar o táxi que me levaria ao aeroporto, de onde embarcaria de volta para o Brasil. Mala fechada, resolvi gastar esse par de horas caminhando até a Place des Voges, que era perto do hotel. Depois de chuvas torrenciais, fazia sol na minha última manhã na cidade, então Place des Voges, lá vou eu. E fui.

Sem um mapa à mão, tinha certeza de que acertaria o caminho, não era minha primeira vez na cidade. Mas por um desatino do meu senso de orientação, dobrei errado numa esquina. Em vez de ir para a esquerda, entrei à direita. Mais adiante, aí sim, virei à esquerda, mas não encontrei nenhuma referência do que desejava. Segui reto: estaria a Place des Voges logo em frente? Mais umas quadras, esquerda de novo. Gozado, era por aqui, eu pensava. Não que fosse um sacrifício se perder em Paris, mas eu parecia estar mais longe do hotel do que era conveniente. Mais caminhada, e então, várias quadras adiante, não foi a Place des Voges que surgiu, e sim a Place de la Republique. Eu tinha atravessado uns três bairros de Paris, mon Dieu.

Perguntei a um morador o caminho mais curto para voltar à rua onde ficava meu hotel, e ele me apontou um táxi. Teimosa, pensei: ainda tenho um tempinho, voltarei a pé. E assim foram minhas duas últimas horas em Paris, uma estabanada andando às pressas, saltando as poças da noite anterior, olhando aflita para o relógio em vez de flanar como a cidade pede. Cheguei bufando no hotel, peguei minha mala e, por causa da correria, esqueci no hall de entrada uma gravura linda que havia comprado e que planejava trazer em mãos no voo. Tudo por causa de uma esquina que dobrei errado.

"...e aí um dia a gente se olha no espelho
e enxerga um rosto envelhecido e amargurado,
um rosto de quem não realizou o que desejava,
não alcançou suas metas,
perdeu o rumo".

Foram apenas duas horas inúteis e cansativas, e duas horas não é nada na vida de ninguém. Mas quanta gente perde a vida que almejou por ter virado numa esquina que não conduzia a lugar algum?

Alguns desacertos pelo caminho fazem a gente perder três anos da nossa juventude, fazem a gente perder uma oportunidade profissional, fazem a gente perder um amor, fazem a gente perder uma chance de evoluir. Por desorientação, vamos parar no lado oposto de onde nos aguardava uma área de conforto, onde encontraríamos pessoas afetivas e uma felicidade não de cinema, mas real. Por sair em desatino sem a humildade de pedir informação a quem conhece bem o trajeto ou de consultar um mapa, gastamos sola de sapato à toa e um tempo que ninguém tem para esbanjar. Se a vida fosse férias em Paris, perder-se poderia resultar apenas numa aventura, mesmo com o risco de o avião partir sem nós. Mas a vida não é férias em Paris, e aí um dia a gente se olha no espelho e enxerga um rosto envelhecido e amargurado, um rosto de quem não realizou o que desejava, não alcançou suas metas, perdeu o rumo: não consegue voltar para o início, para os seus amores, para as suas verdades, para o que deixou pra trás. Não existe GPS que assegure se estamos no caminho certo. Só nos resta prestar mais atenção.
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*Escritora. Crônista.
Fonte: ZH online, 29/08/2010

No país das 5 raças (ou seriam 130?)

Brasileiros consideram seu espectro racial um arco-íris
 em que cada um escolhe a cor à qual pertencer,
explica antropóloga a americano


Robert Darnton*

Estive no Brasil pela primeira vez em 1989, quando a hiperinflação tinha provocado a virtual paralisação da economia, as favelas ferviam com os tiroteios e Lula, um herói do movimento sindical, mas ainda inseguro de si enquanto político, enfrentava sua primeira campanha para a Presidência.
A viagem causou fascínio e espanto. Em minha segunda visita, alguns anos mais tarde, conheci Lilia Moritz Schwarcz, respeitada antropóloga do País, e seu marido, Luiz Schwarcz. Eles me proporcionaram um dia tão repleto de brasilidade que ficou marcado em minha memória como uma das experiências mais felizes da minha vida: de manhã, caminhada na companhia deles e de seus filhos pelo principal parque de São Paulo, onde famílias de todos os tons de pele participavam de piqueniques e brincavam ao sol. O almoço foi uma amostra de especialidades brasileiras jamais imaginadas pela minha filosofia culinária (mas nada de orelha ou rabo de porco, pois não era dia de feijoada). Uma partida internacional de futebol (o Brasil venceu a Venezuela, e as arquibancadas explodiram de alegria). Depois, incontáveis caipirinhas e um show de Caetano Veloso no auge de seu lirismo e provocação política.
Desde então nunca deixei de admirar a energia e a originalidade da cultura brasileira. Mas não finjo compreendê-la, principalmente porque ela está em eterna mutação e eu não falo português. Posso apenas fazer perguntas em inglês e me esforçar para entender as respostas. Será que o mito do Brasil como "gigante adormecido" se transformou numa profecia que leva ao próprio cumprimento? "Ele despertou", é o que dizem hoje. A economia prospera, os serviços de saúde estão se ampliando, a alfabetização avança. Há também profecias nefastas, porque o histórico econômico brasileiro se assemelha a uma sucessão de ciclos de prosperidade e falência imposta por séculos de escravidão e pauperização.
Ainda assim, o presidente Lula está chegando ao fim de um segundo e último mandato presidencial. Independentemente do que pensem os brasileiros sobre sua política externa, que inclui o cultivo de relações amigáveis com o Irã (a maioria da população não demonstra interesse no assunto), em geral eles concordam que sua administração da economia foi competente e reconhecem os esforços feitos para melhorar a situação dos pobres. O mandato de Lula chegará ao fim no início do próximo ano, e ele declarou seu apoio à candidata Dilma Rousseff, sua ex-ministra-chefe da Casa Civil, nas eleições de outubro. As chances de vitória dela são muito grandes, ajudadas pela popularidade do próprio Lula. O primeiro debate da nova campanha presidencial, em 5 de agosto, foi um acontecimento cheio de cerimônia e dignidade - indicação, segundo me disseram, de que a democracia vai bem e os dias dos golpes militares são coisa do passado. Mas hoje estrangeiros fazem perguntas sobre a personalidade dessa grande potência emergente, o Brasil. Encaminhei a Lilia algumas das mais frequentes.



ROBERT DARNTON A ascensão do Brasil ao grupo dos principais países do mundo leva a perguntas a respeito de sua identidade nacional, e algumas delas são hostis, como a que você disse ter ouvido em sua última visita aos EUA: como os brasileiros podem viver em um país dominado pelas favelas e pela violência? Qual é sua resposta?

LILIA MORITZ SCHWARCZ É estranho que haja uma nova imagem do Brasil elaborada pelo exterior. Estávamos habituados a ser vistos como "exóticos", o país da capoeira, do candomblé, do carnaval e das mulatas. Agora ainda somos vistos como exóticos, mas esse exotismo tem um novo ingrediente: a violência, e até uma nova estética da violência, presente sobretudo na forma com a qual o Brasil é retratado em filmes contemporâneos como Cidade de Deus. O fascínio pelas favelas verificado entre muitas pessoas fora do Brasil é ambíguo. Por um lado, as favelas são vistas como comunidades violentas, sujeitas a líderes violentos que escapam da autoridade do Estado. Por outro lado, elas são apenas "diferentes" - cenas de uma cultura externa à cultura dominante, com sua maneira própria de festejar, dançar, jogar futebol. Não temos favelas em toda parte, mas é isso que os estrangeiros gostam de pensar. Desenvolvemos um novo tipo de turismo, que proporciona um "passeio pela favela". Tudo é falso, mas os turistas apreciam a ilusão de provar um mundo diferente. E quanto a você, Bob? Tem medo de caminhar em certas partes de Nova York? Será que o Harlem é uma espécie de favela?

DARNTON Sim. Como muitos nova-iorquinos, tenho meus momentos de medo quando desço do metrô na estação errada ou quando me afasto muito da Rua 125. Mas, quando visito o Brasil, gosto de pensar que estou num país que está lidando bem com seu histórico de racismo. Será que o Brasil poderia evoluir para uma sociedade mestiça de múltiplas nuances, como aquela imaginada pelo sociólogo brasileiro Gilberto Freyre?

LILIA Permita-me perguntar primeiro, Bob: você acha que Obama é um "presidente negro"? Faço essa pergunta porque, no Brasil, a definição da cor da pele depende do contexto, do momento e do temperamento da pessoa que faz a pergunta e também daquela que a responde.

DARNTON Pergunte a qualquer americano, pergunte ao próprio Obama, e a resposta será invariavelmente a mesma: ele é, sim, um presidente negro. Nos EUA, apesar das muitas variações de tom de pele, não possuímos uma noção de raça com múltiplas nuances. A pessoa é negra ou branca, ou é definida por algum adjetivo que não esteja diretamente associado à cor, como chinesa ou hispânica.

LILIA No Brasil, a autodescrição da pessoa define o que ela de fato é. Oficialmente, temos cinco cores diferentes - negro, branco, amarelo, indígena e pardo (o equivalente a diferentes tons de "marrom"), mas, na realidade, como demonstraram as pesquisas, temos mais de 130 cores de pele. Os brasileiros gostam de descrever seu espectro de cores como um arco-íris, e também pensamos na cor como uma maneira flexível de se categorizar as pessoas. Faz muitos anos que estudo uma partida de futebol chamada de "Pretos x Brancos" que é organizada na favela paulista de Heliópolis. Em tese, são escolhidos 11 jogadores negros e 11 jogadores brancos para cada time, respectivamente. Mas a cada ano eles mudam de cor como quem troca de camisa - certo ano o jogador escolhe jogar por uma das equipes, e no ano seguinte, opta pela outra, explicando simplesmente, "estou me sentindo mais negro", ou "estou me sentindo mais branco". Além disso, no Brasil, se uma pessoa enriquece, ela se torna mais branca. Conversei recentemente com um dentista em Minas Gerais. Com o envelhecimento, seu cabelo ficou branco, e ele é muito conhecido na cidadezinha em que mora. Começou a fumar charuto, a fazer parte do Rotary Club local e me disse: "Quando eu era negro, minha vida era muito difícil". Assim, podemos ver como ser branco ainda carrega uma simbologia poderosa, mesmo nos tempos atuais. Temos nesse exemplo duas faces da mesma imagem: por um lado, a identidade é flexível; por outro, ser branco pode ser a aspiração máxima de algumas pessoas. Mas existe entre elas um aspecto em comum: a ideia da possibilidade de manipular a própria cor e raça.

DARNTON Isso significa que o Brasil esteja desenvolvendo um tipo menos virulento de racismo?

LILIA Acho que todos os tipos de racismo são igualmente desprezíveis. Estou apenas dizendo que o tipo brasileiro é diferente. Em 2000, por exemplo, completamos um projeto de pesquisa que consistia em três perguntas aparentemente simples: "Você tem algum tipo de preconceito?" 97% dos participantes responderam negativamente. "Conhece alguém que tenha preconceitos?" 99% responderam afirmativamente. Para aqueles que responderam sim à segunda pergunta, pedimos que fosse descrito o relacionamento mantido com a pessoa considerada racista. Não pedimos nomes, mas as pessoas muitas vezes os forneceram, identificando amigos e parentes. Concluímos que todo brasileiro se considera uma ilha de democracia racial cercada por um oceano de racismo. Mas as coisas estão mudando. Apesar de a ação afirmativa ter começado somente na década de 80, ela é atualmente bastante eficaz, e temos um sistema de cotas e bonificações nas universidades (o sistema beneficia principalmente os alunos pobres que estudaram em escolas públicas e, consequentemente, os negros). Hoje a história da África é uma disciplina obrigatória nas escolas. Estamos começando a compreender a complexidade do preconceito racial, em vez de negar sua existência.

DARNTON Imagino então que os estrangeiros não possam tomar o Orfeu Negro como uma medida das atitudes raciais no Brasil. Mas como lidar com outros elementos que fazem parte da noção estereotipada da identidade brasileira? A cultura popular brasileira se resume ao samba e ao futebol?

LILIA Essa é a imagem mais comum do nosso país, e na verdade foi, de certa maneira, uma construção artificial criada por Getúlio Vargas, o presidente populista da década de 30. Por assim dizer, ele "nacionalizou" a capoeira, o candomblé, o samba e o futebol. Ele até estabeleceu a feijoada (prato adaptado da culinária dos escravos) como símbolo do Brasil. O branco do arroz, disse ele, representava a população branca. O preto do feijão representava os africanos. O vermelho da pimenta corresponderia aos indígenas. O amarelo da mandioca simbolizava os japoneses e chineses que vieram em grandes números ao País no início do século 20. E a cor das verduras seria a floresta. Poderíamos chamar essa iniciativa de marketing político, mas foi algo muito inteligente, tanto que ainda vemos o Brasil como um país de uma única cultura, apesar de termos muitas subculturas. Será que poderíamos dizer algo parecido a respeito dos Estados Unidos?

DARNTON Lá, falamos num grande caldeirão no qual tudo se mistura, mas nem todos acreditam nessa ideia; e, se algo foi preparado nesse caldeirão, certamente não foi a feijoada.
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TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL
* EM RECENTE PASSAGEM PELO BRASIL COMO CONVIDADO DA FESTA LITERÁRIA DE PARATY, O HISTORIADOR ROBERT DARNTON VISITOU O MUSEU AFROBRASIL E ENTÃO PROPÔS UM DIÁLOGO SOBRE O TEMA RACIAL PARA A ANTROPÓLOGA LILIA SCHWARCZ. ESTA CONVERSA DE AMBOS, INICIADA AO VIVO E FINALIZADA POR EMAIL, FOI ORIGINALMENTE PUBLICADA NO BLOG DO THE NEW YORK REVIEW OF BOOKS. DARNTON HOJE CUIDA DO CONJUNTO DAS BIBLIOTECAS DA UNIVERSIDADE HARVARD. E LILIA VOLTOU DE UM PERÍODO NA UNIVERSIDADE PRINCETON, ONDE ATUOU COMO PROFESSORA VISITANTE.
Fonte: Estadão online, 28/08/2010

PANNIKAR : “a grande epidemia moderna é a banalidade”.

Pannikar, pensador único e irrepetível
Foi, sem dúvida, um dos pensadores mais lúcidos de nosso tempo.
Raimon Pannikar marcou uma forma de fazer teologia e de ser teólogo.
Tive a sorte de coincidir com ele e de entrevistá-lo em várias ocasiões e
sempre saía do encontro com uma esperança rediviva e redimensionada.
Era como um santão hindu, porém na forma de teólogo católico.
 Um enamorado do diálogo inter-religioso e
um homem com um decurso vital excepcional.
Soube transitar desde a sensibilidade mais conservadora do Opus Dei
até outras mais ecumênicas e fronteiriças.
Sem grandes estardalhaços. Sem fazer demasiado ruído.
Deslizando suavemente, com seu eterno sorriso e
suas gafes a la Gandhi.

José Manuel Vidal*

A última vez que o vi foi em Montserrat, num encontro inter-religioso internacional. Parecia ser tão monge como os monges, sem ser monge. E estava no centro do simpósio. Todo o mundo estava pendente do que ele dizia. Era uma autêntica autoridade. E uma pessoa autêntica. Com uma obra centrada no diálogo inter-religioso e intercultural, avalizado por mais de 50 livros.

Costumava dizer: “A religião não é um experimento, senão uma experiência de vida através da qual se toma parte da aventura cósmica”. Ou: “a grande epidemia moderna é a banalidade”.

Durante 30 anos teve um contato intenso com a Índia, que visitou por primeira vez em 1954. “Viajei cristão, me descobri hindu e retorno budista, sem ter deixado de ser cristão”, costumava repetir para explicar seu ser crente.

“Onde você encontra sua identidade?”, lhe perguntaram certa ocasião. E ele respondeu: “Perdendo-a, não a buscando: não querendo me aferrar a uma identidade que ainda não está realizada e que não se pode encontrar desde logo no passado, porque então seria uma cópia de algo velho. A vida é risco; a aventura é novidade radical; a criação se produz todos os dias, como algo absolutamente novo e imprevisível”.

Descanse em paz este grande pensador e grande pessoa que abriu o caminho do diálogo inter-religioso “dialogal” e autêntico.
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* O artigo é de José Manuel Vidal, jornalista, e publicado pelo sítio Religión Digital. A tradução é de Benno Dischinger.

Fonte: IHU online, 29/08/2010

RETIRO - SER HUMANO (Final)

Frei Irineu Costella*

Dez palavras para você ser feliz: Eu. Sujeito. Silêncio. Bíblia. O olhar. Vida. Montanha. Perdão. Fiquemos com essas oito que já é de bom tamanho, menino. Vamos com Jessé, Voa Liberdade:

“Voa, voa minha liberdade.

Entra se eu servir como morada.

Deixa eu voar na sua altura.

Agarrado na cintura da eterna namorada...”

Convido vocês para irem à 1 Cor 13,1-13: É o grande mandamento. Vocês já o ouviram muitas vezes. “Se eu falar a língua dos anjos e dos homens, mas não tiver , sou como o bronze que soa ou o tímpano que retine... O amor jamais há de acabar... No presente permanecem estas três coisas: fé, esperança e amor, mas a maior delas é o amor”

Com o saca-rolhas, a vivaz beneditina, convidou-nos para conferir as qualidades do olhar contemplativo, que é mais do que olho físico. É um olhar interior. E colheu: compassivo. Compreensivo. Límpido. Gratuito. Sincero. Auxiliador. Misericordioso. Terno. Fraterno. Que procura.
 Olhar que perdoa, acorda, provoca, desafia, estimula. Respeita, aceita. Acolhe. Olhar de cumplicidade. Isso é bom demais. Sim, precisamos ser cúmplices, no bom sentido – só faltaria que uma beneditina não fosse cúmplice no bom sentido. A liberdade é a eterna liberdade. É sedução. É paixão. É muito bom ser seduzido, viver apaixonado. Para completar, sobre o olhar, busquem os textos de Rubem Alves e Juvenal Arduíni.

Agora, vamos à “Metade", com Osvaldo Montenegro. É o último texto do retiro:

E que a força do medo que tenho

Não me impeça de ver o que anseio.

Que a morte de tudo que acredito

Não me tape os ouvidos e a boca

Porque metade de mim é o que grito,

Mas a outra metade é silêncio

Que as música que ouço aos longe seja linda,

Ainda que tristeza

Que a mulher que eu amo seja pra sempre

Amada, mesmo que distante

Porque metade de mim é partida

E a outra metade é saudade.

Que as palavras que eu falo não sejam ouvidas

Como prece e nem repetidas com fervor.

Apenas respeitadas, como a única cosia que resta

A um homem inundado de sentimentos,

Porque a metade de mim é o que ouço,

Mas a outra metade é o que calo.

Que essa minha vontade de ir embora

Se transforme na calma e na paz que eu mereço.

Que essa tensão que me corrói por dentro

Seja um dia recompensada.

Porque metade de mim é o que penso

E a outra metade é um vulcão

Que o medo da solidão se afaste,

Que o convívio comigo mesmo se torne ao menos suportável,

Que o espelho reflita em meu rosto um doce sorriso

Que me lembro ter dado na infância.

Porque metade de mim é a lembrança do que fui,

A outra metade não sei.

Ao seja preciso mais do que uma simples alegria

Para me fazer aquietar o espírito.

E que o silêncio me fale, cada vez mais.

Porque metade de mim é abrigo,

Mas a outra metade é cansaço.

Que a arte nos aponte uma resposta,

Mesmo que ela não saiba.

E que ninguém a tente complicar porque

É preciso simplicidade para fazê-la florescer

Porque metade é de mim é a plateia

E a outra metade é a canção.

E que a minha loucura seja perdoada,

Porque metade de mim é amor

E a outra metade... também.

“Vou falar bem baixinho para vocês, agora: quando eu cheguei, eu estava com medo. Falar para homens... Nossa... Mas, que nada. Somos todos iguais. No RS. e no Araxás”. E foi calorosamente aplaudida.

A jovem do Araxás, cavou com a pá junto ao sicômoro da sacristia. Descobriu o tesouro com pedrarias de uma conquista que o proprietário de a muito havia esquecido.

O retiro estava findando

E o vento voltou a soprar no sicômoro. Era o minuano vindo de Pelotas, Porto Alegre, Caxias do Sul, Ipê, Veranópolis, Vila Flores, Ijuí, Tramandaí , São José do Herval, São João do Sul e Praia Grande. Não levava consigo o medo paralisante e acovardador do deserto. Nem a ameaça da língua solta. Trazia consigo o suave perfume que ele, sicômoro, conhecia muito bem. E o som de um beijo que vinha vindo devagar, devagar... até pousar lentamente em seus lábios. E o sicômoro sorriu. Era a primeira vez que ele fazia isso com tamanha felicidade.

Sílvia, estou retornando, disse ele.
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Lembre-se:

- Quem cospe para cima...

- Quando chove lá fora chuvisca no convento.

- O animal pode ser levado até a fonte, mas só ele pode beber.

- Retiro é tempo de desplugar-se, desconectar-se...

- Você é itinerante!

- O que nos une: Ser humano, eclesial, consagrado, social.

- As 4 grandes palavras de Deus: a criação, a Bíblia, a Tradição e o Ser humano.

- Atenção à lei do Eterno Retorno: tudo o que você faz ao outro, volta para você,

paradoxo!

- Isto não acontece aqui, só no Araxás.

Textos utilizados durante o Retiro

A Bíblia Pastoral
Paradoxo - Juvenal Arduini
O homem: As viagens - Carlos Drummond de Andrade
Ser Estranho – Jessé
Voa Liberdade - Jessé
Metade – Osvaldo Montenegro
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* Frade capuchinho. Pároco em Ijuí. Escritor. Colunista do Diário Gaúcho.

"Sexy e eficiente sem gosto de remédio"

Meu design:
Tad Toulis, diretor de criação da Teague,
 destaca o papel da mobilidade e da sustentabilidade no design

Ana Paula Paiva/Valor
Toulis:
"o design precisa vender uma visão e
fazer com que os outros acreditem que
esse olhar também considera
as ideias e necessidades
de outras pessoas"

Tad Toulis acredita que não dá para lutar contra o destino. Filho de professores do Pratt Institute, em Nova York, cresceu no campus da universidade - local a que voltaria anos depois para fazer mestrado em desenho industrial. Trabalhou como um dos principais designers na Samsung e na Motorola e hoje é diretor de criação da consultoria de design Teague, uma das mais conceituadas dos Estados Unidos, com clientes como Philips, Panasonic e Nike.

"Sempre estive exposto à minha profissão. Lembro que gostava de contemplar os trabalhos abstratos dos alunos do meu pai". Apesar disso, Toulis estudou primeiro literatura inglesa e artes plásticas na Universidade de Wesleyan, em Connecticut. "Só nos anos 90 decidi focar seriamente no design industrial". De lá para cá, não parou. A experiência que teve nas empresas de celulares foi determinante na visão de mobilidade que ele carrega hoje. Para Toulis, o conceito é ponto de partida para a criação de seus projetos. "A mobilidade é cada vez menos um assunto separado do que é a normalidade".

Na Motorola, tinha uma função especial: "buscar ideias ainda não exploradas e transformar isso em oportunidades para a empresa". Atualmente, na Teague, ele gerencia uma equipe de 15 designers e também cuida de um grupo de cinco pessoas responsáveis por pesquisa e estratégia. "Preciso inspirar a minha equipe e os meus clientes. Muitas vezes há a tentação de fazer a coisa mais segura, a única que já foi feita antes, mas essa é geralmente a saída menos necessária e menos estimulante".
Em seu currículo, ele acumula prêmios importantes como o IDEA Awards e o IF Awards. Toulis defende um conceito de criação que ele chama de "regra smart/sexy", segundo a qual os projetos precisam ter um equilíbrio de inteligência e beleza. Ele não admite um objeto "sexy" e irritante, assim como desaprova uma solução eficiente, mas "com gosto de remédio". Ao mesmo tempo em que valoriza a importância do design para "ajudar as pessoas a viverem suas próprias vidas", é contra a onda dos "designers-celebridades", que correm o risco de perder o foco da criação.
Em tempos de sustentabilidade, aposta na criatividade e na responsabilidade de cada designer para cuidar dos recursos naturais. Apesar de conhecer apenas os ícones do design brasileiro, acredita que o Brasil pode ajudar o design global a encontrar soluções sem perder o olhar aos recursos naturais. Toulis já morou em Milão, São Francisco, Nova Iorque e hoje vive em Seatle. Esta semana está no Brasil para participar do 2º MOB Design, evento organizado pela Associação Objeto Brasil, em parceria com a Apex e o Sebrae. O objetivo do encontro é promover a discussão sobre o design mundial. O tema deste ano é "O Intangível". Em entrevista ao Valor, Toulis fala, entre outros assuntos, sobre os desafios de seu trabalho em uma época de consumo exagerado e sobre a preocupação com os recursos naturais.

Valor: Como o sr. se sente ao criar algo que interfere no modo como as pessoas vivem e se relacionam com seus objetos?
Tad Toulis: Esta é a grande alegria e, claro, uma imensa responsabilidade do design, criar momentos de produtividade e prazer em torno de um problema resolvido. O designer, especialmente hoje, tem a responsabilidade de exercer o seu talento de modo intencional e disciplinado. Claro que queremos produzir coisas bonitas, mas também é importante usar a nossa habilidade para fazer escolhas construtivas. Cada vez mais o designer deve conciliar o desejo de reconhecimento de sua autoria com as necessidades do grupo e do planeta. Essa é uma ideia verdadeiramente nova e emergente. É uma mudança de direção difícil, mas estou otimista de que é possível fazer isso. Afinal, a criatividade não é rígida, é flexível.

Valor: Em sua opinião, qual é o futuro da mobilidade?
Tad Toulis: A mobilidade é cada vez menos um assunto separado da normalidade ou do que é o ' novo normal ' . Eu não faço design para a mobilidade, realizo projetos com a mobilidade em mente, como um ponto de partida, pelo menos para soluções em que a produtividade, o acesso ao conteúdo e a criação estão envolvidos. Acho que o futuro da mobilidade está na otimização e na evolução da forma como usamos as ferramentas. Há dez anos, quem poderia pensar que seríamos capazes de fazer um smartphone que caberia no bolso? No futuro, vamos fazer ainda mais com softwares mais inteligentes. Softwares capazes de fornecer apenas o que a gente quer ou precisa ver. É claro que há um grande perigo aqui, o de viver em um mundo onde a informação será sempre filtrada passivamente para nós. Mas esse é um outro assunto.

Valor: Qual é o conceito mais importante no seu trabalho hoje?
Tad Toulis: Chegar a um design ao mesmo tempo atraente e que faça sentido. Eu posso simplificar esse desafio chamando-o de ' regra smart/sexy ' . Eu não quero fazer uma coisa inteligente e feia, com gosto de remédio. Nem quero um produto sexy, mas burro e irritante. Minha proposta é oferecer uma solução que seja ao mesmo tempo inteligente e sexy. E preciso falar à cabeça e ao coração. É mais difícil, mas é muito mais compensador. Na Teague trabalhamos duro para continuar a tradição iniciada por Walter Dorwin Teague, que sabia equilibrar essas duas forças com muita elegância.

Valor: Quais os designers, arquitetos e artistas que o sr. mais admira? Como é que eles influenciaram seu trabalho?
Tad Toulis: Para admirar um profissional preciso apreciar o seu trabalho, mas também a pessoa que ele é. Gosto de Konstantin Grcic, Stefan Sagmeister, Paola Urquiola, Alberto Meda, Herzog de Meuron. Eles têm uma voz única, um trabalho autêntico e lúdico. O design hoje está cheio de celebridades. Eu acho ótimo quando a pessoa por trás de um projeto interessante faz sucesso, mas o trabalho deve estar em primeiro lugar, e isso acaba explicando algo sobre o próprio designer. É fácil celebrar aquele que diz: 'Faço isso do meu jeito'. Mas o design precisa vender uma visão e fazer com que os outros acreditem que esse olhar também considera as ideias e as necessidades de outras pessoas.

Valor: Até agora o sr. tem desenvolvido principalmente produtos de outras marcas. O sr. já pensou em ter sua própria marca?
Tad Toulis: Mais e mais as empresas de design estão percebendo que elas possuem uma capacidade muito particular de conceber e executar de um modo muito mais rápido e muito mais barato do que as empresas de manufatura tradicionais. O desafio é que tradicionalmente a maioria das empresas de design não pode executar seus projetos em grande escala. Hoje, com novos protótipos e modelos de distribuição, isso está mudando. Passa a ser importante conceber e executar em pequena ou limitada quantidade, também. Como as ferramentas se tornam mais baratas para a produção e a infraestrutura de distribuição dos produtos fica mais democrática, aumenta o nicho de pequenas soluções de design artesanal. Curiosamente, esses projetos têm um recurso local e estão muito alinhados com a ideia de sustentabilidade.

Valor: Hoje, mais e mais pessoas parecem estar interessadas em design. Isso gera um comportamento consumista de querer comprar e comprar mais ainda?
Tad Toulis: Sim. Uma das coisas que eu considero desafiadora é o fato de que, no meio de tantas mudanças no mundo, o design continuou, em geral, focado no consumo. Tem havido um crescimento de uma linha de design que tenta compensar isso por meio da venda do processo do design, mas isso representa apenas uma pequena parte do setor. É a venda da ideia e não apenas do produto. Outro desafio nessa equação é que há economias crescendo e criando novos grupos de consumidores. Quem pode dizer que esses consumidores não podem comprar o que eles querem? Como o número de consumidores cresce, é importante substituir o modelo tradicional de consumo. É preciso apoiar a liberdade de escolha para os consumidores ao mesmo tempo em que se busca maneiras de diminuir o impacto sobre os recursos compartilhados. Isso requer um redirecionamento total da indústria de design, da concepção e da educação do designer, mas acredito que tudo isso pode ser feito.

"Eu acredito que nós precisamos parar de pensar em sustentabilidade
como um conjunto de problemas separados do design em geral.
Quando separamos as coisas,
criamos uma desculpa para não enfrentar a
questão de frente."

Valor: Na sua opinião, qual seria o papel de um designer para evitar o consumismo exagerado?
Tad Toulis: Há uma classe emergente de designers que acredita que pode criar uma experiência ou um serviço com a reutilização de ideias, o que é interessante. Nos Estados Unidos, temos alguns exemplos disso, como o carro Zip. Ele é comum no serviço de aluguel de automóveis, algo muito popular no aglomerado das zonas urbanas, onde ter um carro nem sempre é prático ou necessário. Esse serviço é muito bem projetado. Há vários pontos de contato que atraem os usuários e os mantêm engajados no serviço. Se essa ideia pode prosperar no berço do capitalismo e do consumismo, então há uma boa chance da imaginação ser usada em outros lugares. O que é realmente agradável nesse caso é o fato de que a comunidade é parte do recurso e da solução. Todos precisam estar envolvidos nessa questão, já que enfrentamos os mesmos desafios globais.

Valor: É possível manter um alto nível de criatividade pensando em sustentabilidade?
Tad Toulis: Eu acho que sim. Sustentabilidade é apenas outra restrição do design e, como tal, pode ser atendida pelo design como outros desafios são superados. Eu acredito que nós precisamos parar de pensar em sustentabilidade como um conjunto de problemas separados do design em geral. Quando separamos as coisas, criamos uma desculpa para não enfrentar a questão de frente. Conceber uma forma bonita ou uma solução inteligente é realmente o piso térreo do design. Resolver problemas e necessidades dentro de um determinado conjunto de restrições é onde o design realmente vive e brilha. Dizem que a generosidade começa em casa, portanto, a maneira mais simples para o designer atuar de forma sustentável é ser honesto e fazer a si mesmo muitas perguntas, o tempo todo.
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Reportagem Por Marjorie Umeda, de São Paulo
Fonte: Valor Econômico online, 27/08/2010