quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Isabel Allende: "A escravidão de hoje está oculta"

A escritora chilena diz que o drama do Haiti colonial
ajuda a entender as situações atuais de opressão

ALEXANDRE MANSUR

O que a saga de uma escrava no Haiti no século XIX tem a ver com os dias de hoje? Para a escritora chilena Isabel Allende, muito. Seu novo livro, A ilha sob o mar, conta a história de Zarité, uma menina vendida a um jovem francês, dono de plantações de cana no Haiti. Em suas aventuras, ela se envolve com um dos líderes da revolta que libertou o país e depois foge para os Estados Unidos. Fruto de quatro anos de pesquisas, a novela ajuda a entender as origens do drama atual do Haiti. Para Isabel, também serve de alerta para a escravidão oculta nos tempos atuais. E para as relações de dominação tirânica, que acontecem em regimes opressores, organizações hierárquicas e até dentro de algumas famílias, como afirma Isabel em entrevista a ÉPOCA.

ENTREVISTA - ISABEL ALLENDE

ÉPOCA – Por que escrever sobre a escravidão hoje?

Isabel Allende – Há 27 milhões de escravos no mundo. Todos os países firmaram acordos para acabar com essa prática. Mas não conseguiram aboli-la. No Paquistão, há 1 milhão de escravos na agricultura. Aldeias inteiras estão escravizadas por servidões de dívida. O camponês se endivida com um negociante e precisa colocar os filhos e netos à disposição para trabalhar até pagar o que deve. Vendem suas filhas como empregadas domésticas ou para os prostíbulos. Em outros países, há a prática de vender as meninas de 9 anos para casar. Isso também é uma forma de escravidão. No Haiti, um país onde os negros escravos lutaram por sua independência, ainda há milhares de crianças em trabalhos domésticos forçados, porque seus pais não podem sustentá-las. No Nepal, meninas de 5 a 7 anos são vendidas por uma quantia equivalente a um par de cabras. A maioria dos casos ocorre no Sudeste Asiático, onde as fronteiras são permeáveis e ninguém controla o tráfico de pessoas.

ÉPOCA – Os movimentos abolicionistas do século XIX fracassaram?
Allende – Conseguiram abolir a escravidão oficialmente no mundo. O drama é que hoje ela está oculta. Antigamente, o escravo era investimento de capital e exigia cuidados para que rendesse com seu trabalho. Hoje, o negócio é clandestino. Os escravos não valem nada. O movimento abolicionista hoje está na internet, com campanhas como Free the Slaves (Soltem os Escravos).

ÉPOCA – Em que essa escravidão é diferente do desrespeito aos direitos humanos?
Allende – Há formas de violação dos direitos humanos que não incluem a escravidão. Ela é muito precisa. O escravo é alguém obrigado a trabalhar contra sua vontade, sob ameaça de violência, sem remuneração.

ÉPOCA – Isso não acabou, pelo menos nos países democráticos?
Allende – Conheci escravos até nos Estados Unidos. Alguns eram imigrantes ilegais que foram praticamente sequestrados. Trabalhavam sob ameaça de violência ou de ser denunciados às autoridades para deportação. Encontrei na Califórnia um garoto negro que tinha acabado de escapar. Aparentemente, uma igreja cristã circulava pelo sul do país com um coro de meninos que se apresentava em eventos públicos. Supostamente para juntar fundos para um orfanato na África. Mas o orfanato não existia, as crianças estavam sequestradas. Eu não estava pensando em nada disso quando comecei o livro. Queria resgatar algo da fascinante história de Nova Orleans. Na pesquisa, eu me dei conta que o sabor francês da cidade vinha do Haiti. Quando houve a revolta dos escravos no final dos anos 1700, cerca de 10 mil colonos franceses fugiram para lá.

ÉPOCA – Por que a escrava Zarité, personagem principal de seu livro, parece ser feliz?
Allende – Ela não é feliz. Mas tem uma grande dignidade. Sua obsessão pela busca da liberdade começa de criança. Por isso, foge várias vezes. Em um momento da novela, ela pode escapar com seu amante. Mas tem de escolher entre seus filhos e a liberdade, e fica com os filhos. Ela é feliz em alguns momentos de amor, mas vive uma situação de opressão.
VIDA COMPRADA
A ilha sob o mar (editora Bertrand) conta o drama de escravos no Haiti e na Louisiana.
Preço sugerido: R$ 44

ÉPOCA – As relações humanas estão mais éticas hoje?
Allende – Acho que não mudaram muito nestes séculos. O que me fascinou nesse livro foi a relação do poder com a impunidade. O amo tinha um poder absoluto, de vida ou morte. Podia violar as mulheres, porque a violência contra uma mulher de cor, escrava ou livre, não era considerada estupro. A lei só defendia as mulheres brancas. Essa relação de poder absoluto não ocorre só na escravidão. Também existe entre os militares. Um oficial graduado pode subjugar os subalternos. Nas prisões, os carcereiros fazem o que querem com os presos. Nas ditaduras, a polícia pode prender, matar e torturar alguém, como ocorreu no Chile. Isso acontece até dentro da família, se o pai psicótico ou alcoólatra abusa dos filhos.

ÉPOCA – Como está o Haiti hoje?
Allende – Numa situação muito triste. Já foi invadido e ocupado várias vezes. Tem um governo quebrado. Vive da caridade. E ainda foi atingido por furacões e um terremoto. O país não consegue ficar de pé. Nem teve oportunidade de avançar sozinho. A ajuda que recebeu não foi muitas vezes benéfica. Tantos países prometeram milhões de dólares. Mas pouco disso realmente foi para lá, e o dinheiro não vai para a reconstrução do país.

ÉPOCA – Que impacto a senhora busca com seus livros?
Allende – Os livros têm o poder de mudar as mentalidades. Mas os escritores não pensam nisso quando os escrevem. Obras como A cabana do Pai Tomás (livro americano que marcou o movimento abolicionista) tiveram impacto, mas a autora não imaginava isso antes. Ninguém pode almejar isso.
 
QUEM É
Escritora chilena, de 68 anos, mora na Califórnia com o marido. É sobrinha de Salvador Allende, presidente do Chile morto no golpe militar de 1973

O QUE PUBLICOU
É uma das autoras mais populares da América Latina, com 15 romances, além de livros de contos e peças de teatro. Ficou famosa com A casa dos espíritos, de 1982. Em 1995, escreveu Paula, sobre a filha, vítima de uma doença neurológica
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Revista/Epoca, 13/08/2010

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