quarta-feira, 25 de agosto de 2010

"A cultura da beleza viola a do mérito"

Deborah Rhode
A advogada americana defende lei para proteger as pessoas da discriminação pela aparência

Letícia Sorg

Ao organizar um evento sobre igualdade entre os sexos no trabalho, a advogada Deborah Rhode, professora da Universidade Stanford, sofreu pressão das amigas para comprar uma roupa nova para a ocasião: não poderia aparecer mal no telão. Deborah cedeu, não sem notar a ironia que ela mesma – que pesquisa a influência dos padrões de beleza no mundo do trabalho – não conseguia escapar das exigências da aparência. Em seu livro The beauty bias (numa tradução livre, O preconceito da beleza), recém-lançado nos Estados Unidos, Deborah analisa como a aparência prejudica carreiras e defende a aprovação de uma lei para impedir esse tipo de discriminação, que ela acredita ser tão intolerável quanto o preconceito de raça ou gênero.

ENTREVISTA - DEBORAH RHODE*

ÉPOCA – Admirar a beleza é instintivo para o ser humano. É factível pensar que uma lei vai mudar isso?
Deborah Rhode – Até certo ponto, nossas preferências são instintivas. Vivemos há milhões de anos em busca de fertilidade e mesmo bebês demonstram preferência por rostos simétricos. Mas reconhecer que há uma base biológica e sociológica para nosso comportamento não quer dizer que não possamos mudá-lo. Até porque algumas das normas atuais da boa aparência não são funcionais do ponto de vista reprodutivo. A preferência por mulheres muito magras é um exemplo. Mulheres muito abaixo do peso têm uma probabilidade muito maior de infertilidade do que as mulheres um pouco acima. Mesmo que alguns comportamentos estejam estabelecidos – como o de se sentir mais confortável entre seus semelhantes de cor, etnia ou sexo –, queremos que as pessoas consigam ir além. Daí a importância das leis.

ÉPOCA – Quais são as principais causas da busca pela aparência perfeita?
Deborah – Uma grande parte está relacionada à mídia e às imagens que ela mostra. Mas a indústria de produtos estéticos e de emagrecimento também lucra imensamente fazendo as pessoas acreditar que há um problema a ser solucionado. É preocupante que nos Estados Unidos não consigamos proibir a venda de produtos que prometem soluções mágicas para emagrecer, por exemplo. Isso é problemático, porque a maioria dos americanos não acredita que as empresas possam fazer essas alegações sem nenhuma comprovação. Existe uma lei contra isso, mas ninguém consegue colocá-la em prática. Então, muita gente é persuadida pela publicidade. E, em alguns casos, os produtos têm efeitos colaterais e não apresentaram resultados bons nos testes.

ÉPOCA – Qual é o prejuízo causado pelo preconceito baseado na aparência?
Deborah – Não existe um cálculo simples, porque, além do financeiro, existe o custo psicológico para as pessoas estigmatizadas. Elas sofrem assédio, perdem empregos e promoções. Mas um número relevante é o dinheiro gasto no mundo todo com produtos de beleza e emagrecimento –US$ 200 bilhões por ano. Os economistas também calculam que o prêmio – ou castigo, se preferirmos – por causa da aparência pode chegar a US$ 16 mil por ano para um trabalhador americano. A cultura da beleza viola o sistema de mérito porque ela acaba substituindo a habilidade.

ÉPOCA – De que forma a beleza influencia as decisões de empregadores sobre empregados?
Deborah – Os empregadores usam a aparência como um indicativo de outras características, como profissionalismo e disciplina. Também assumem, sem nenhuma prova, que o consumidor tem certas preferências. É o caso de um dono de pet shop que proibiu os funcionários homens de usar brinco, sob o pretexto de manter um “ambiente confortável de consumo”. Quem vai comprar ração para gato se importa com isso? Frequentemente, as restrições são formas disfarçadas de preconceito contra comportamentos que incomodam o empregador, não necessariamente o cliente.

ÉPOCA – Seis regiões americanas adotaram uma lei específica contra a discriminação pela aparência. Ela ajudou a diminuir o problema?
Deborah – Meus estudos mostram que o resultado da lei é bastante modesto. Não há muitos processos – como previam alguns críticos da lei –, mas as queixas despertam muita atenção da mídia. E provavelmente esse é o aspecto mais importante: tornar as pessoas conscientes dos custos desse tipo de preconceito.

ÉPOCA – Em São Francisco, em 2002, uma instrutora de ginástica processou a academia onde trabalhava com base na lei de preconceito pela aparência. Ela alegou ter sido demitida por estar acima do peso e venceu. Mas estar em forma não é uma exigência razoável nesse caso?
Deborah – Precisamos combater os pré-requisitos que não têm a ver com características essenciais para o trabalho e impõem um custo adicional ao empregado. Não é verdade que mulheres acima do peso não podem ser boas instrutoras de ginástica. Muitas alunas até preferem ter aulas com mulheres que se pareçam com elas. Há casos em que os empregadores alegam que os clientes compram mais de vendedores ou garçons atraentes. Não sei se isso é justificável, porque o argumento é o mesmo usado por quem se opôs, décadas atrás, a leis contra a discriminação racial. Eles diziam: clientes brancos não compram de vendedores negros. E isso era verdade no sul dos Estados Unidos. Até que veio uma lei obrigando os empresários a contratar funcionários negros. Então, não havia mais escolha. Foi uma maneira de gerar progresso social. O mesmo tipo de preconceito vale para a questão da aparência. Temos de ser tão intolerantes com ele quanto somos com o preconceito racial.
"Temos de ser tão intolerantes com
o preconceito de
aparência quanto somos com
o preconceito racial"


ÉPOCA – A senhora afirma que as mulheres são as principais vítimas do preconceito de aparência. Por quê?
Deborah – Os homens sofrem também com o problema, especialmente os mais baixos ou acima do peso. Mas as mulheres são mais prejudicadas porque os padrões estéticos são mais limitados e o preço por não atingi-los é maior. Elas são punidas por não se preocupar o suficiente e também por se preocupar demais com a aparência. Quem exagera nos cuidados é tido como narcisista, fútil. Quem se importa de menos é tido como preguiçoso, não profissional. Em minha opinião, a sexualização da mulher é uma maneira de puni-la, de diminuí-la no ambiente de trabalho. Um dos muitos exemplos que dou no livro: certa vez, Hillary Clinton (secretária de Estado americana) foi criticada por ter um quadril muito grande. Também vimos comentários sobre a aparência de Elena Kagan, nomeada para a Suprema Corte dos Estados Unidos. Como se ser atraente fosse uma credencial para fazer parte da Corte Suprema. Nenhum indicado homem teve de falar a respeito disso em sua sabatina no Congresso.

ÉPOCA – Recentemente, uma ex-funcionária do Citibank decidiu processar o banco alegando que foi demitida por causa de sua aparência, sensual demais. As belas também sofrem?
Deborah – Em algumas funções, geralmente as de alto escalão, antes ocupadas quase totalmente por homens, mulheres muito sexy ou atraentes não são consideradas inteligentes o suficiente. Elas também são julgadas por suas medidas, não por seus méritos.

ÉPOCA – O movimento feminista ajuda as mulheres a lidar com a pressão pela aparência?
Deborah – A história de que feministas teriam ateado fogo a sutiãs em frente a um concurso de beleza – na verdade, eles foram depositados junto com itens de maquiagem e outros acessórios numa lata de lixo – gerou a ideia de que as feministas eram feias e desajustadas. Hoje algumas feministas veem a aparência como parte da atitude de mulher, uma questão de escolha. Outras, porém, dizem que as escolhas são culturalmente restritas. Não há uma posição coerente a respeito do assunto. As feministas estão divididas entre usar ou não usar salto alto, Botox e silicone. Para mim, a preocupação com a aparência não é só uma questão de escolha pessoal. Temos de pensar nas limitações impostas pela sociedade e na maneira como as pessoas são punidas por não segui-las; no preço que pagam, financeira e psicologicamente, por não se preocupar com a aparência na medida que a sociedade espera. É importante fazer as pessoas perceber os aspectos perniciosos dessa preocupação e que é possível fazer algo para mudar. Seja uma lei, um boicote permanente, outras formas de políticas públicas. Não me iludo com o que podemos ou não mudar por meio dessas ações, mas podemos fazer muito mais do que fazemos agora.
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QUEM É
Advogada formada na Universidade Yale, é professora de Direito da Universidade Stanford
O QUE FEZ
Fundou e dirigiu o Centro de Ética Legal de Stanford e o instituto para estudos de gênero da universidade
O QUE PUBLICOU
Escreveu 20 livros, entre eles Legal ethics (Ética legal) (2004), Gender and law (Gênero e legislação) (2006) e The beauty bias (O preconceito da beleza) (2010)
Fonte: Revista ÉPOCA online, 20/08/2010

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