segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019

Sexualidade humana, comportamentos desviantes, celibato – um comentário do psicanalista João Seabra Diniz


João Seabra Diniz*
 
 Amantes, pintura no claustro da Abadia de São Domingos de Silos (séc. XV), em Burgos (Espanha)

As reflexões que se seguem foram motivadas pelos movimentos que se têm desencadeado na Igreja Católica, a propósito de abusos sexuais frequentes da parte do clero, e do seu encobrimento por parte das autoridades eclesiásticas responsáveis. Serei muito conciso, reservando para um segundo momento uma análise mais desenvolvida do mesmo problema.

Penso que as afirmações que têm sido feitas devem ser enquadradas numa reflexão mais alargada do que aquela que nos tem sido transmitida pelos meios de comunicação social.
Nestes últimos dias, o Papa tomou a iniciativa de denunciar publicamente a situação existente.

1 – Inevitavelmente, a primeira área de reflexão terá que ser a sexualidade humana.
Cito uma passagem muito clara de que é autora uma psicanalista de língua inglesa, que trabalhou em Paris e é muito considerada. Em 1995, publicou um livro, cujo título é “The Many Faces of Eros”, que começa com a seguinte frase, bem clara:  

 Human sexuality is inherently traumatic. The many psychic conflicts encountered in the search for love and satisfaction, arising as a result of the clash between the inner world of primitive instinctual drives and the constraining forces of the external world, begin with our first sensuous relationship. (…) The slowly acquired relation of an “other” – of an object separated from the self – is born out of frustration, rage and a primitive form of depression that every baby experiences in relation to the primordial object of love and desire. Felicity lies in the abolition of the difference between self and other.( Joyce McDougall, The Many Faces of Eros, Free Association Books – London, 1995)

Isto é afirmado dentro de um pensamento científico sobre a sexualidade humana em geral. Nada tem a ver com o celibato nem com posições religiosas.

Refere-se ao facto indiscutível de que, no homem, o desejo e o comportamento sexual dependem de forma decisiva do mundo da emoção e da fantasia que se faz sobre a realidade em que se vive. Essa fantasia tem uma componente inconsciente, que determina a maneira como o indivíduo se apercebe do que sente e da maneira como concretiza, ou tenta concretizar, o desejo relacionado.

A história do amor humano e das relações mais diretamente relacionadas com o comportamento sexual, desde os testemunhos mais antigos que possuímos, é extremamente vasta. Dá-nos um exemplo esclarecedor das dificuldades existentes nesta área da existência humana.

É o conhecimento desta realidade que leva a autora que acabo de citar, a iniciar o seu livro com aquela afirmação lapidar: Human sexuality is inherently traumatic.

Muitos exemplos concretos  se podem dar, que ilustrariam bem a afirmação feita. Mas penso que esta concepção da sexualidade humana não é sequer discutível.

A história das perversões sexuais é abundante. Entre muitos outros casos, refiro só a obra do Marquês de Sade e de Sacher Masoch, de onde proveem os termos técnicos de “sadismo” e “masoquismo”.

Deixo só, como muito significativa, a afirmação frequente, usada como comentário a factos chocantes, de que “a prostituição é a mais antiga profissão do mundo”.

2 – É importante o reconhecimento deste facto. E é também fundamental reconhecer que a teorização científica sobre ele é muito recente na história da cultura. Em especial, o reconhecimento e o estudo da componente inconsciente do psiquismo é do final do séc. XIX.  
Até há muito pouco tempo, aos desvios do comportamento sexual, às transgressões, às perversões, davam-se explicações variadas, como sejam “más inclinações, “desonestidade”, “tentações do demónio”, “efeitos de magia”, etc. E as soluções ou terapias propostas tinham a ver com esta concepção das suas causas. Por isso, eram quase sempre de tipo religioso.

Crimes sexuais, violências sexuais, sobre crianças e adultos, sempre existiram. Esse facto não tem a ver com o celibato, mas tem a ver com o ser humano.

3 – No seu desenvolvimento como pessoa, o homem teve, pois, que se confrontar com as ansiedades, as angústias, as dificuldades, os dramas, os crimes, ou simplesmente a culpabilidade, ligados à sexualidade humana, aos desejos proibidos e à sua eventual satisfação.
Antonio Canova, “Psique reanimada pelo beijo do Amor”, escultura de 1793, 
actualmente no Museu do Louvre, em Paris (foto Pixabay)

Isto levou certas correntes de pensamento, e muitas pessoas singulares, a considerar, ou mesmo a proclamar, que a renúncia ao exercício da sexualidade representava uma decisão sensata, uma atitude de virtude heroica e um desejo de encontrar um caminho de virtude.

Surgia, assim, a decisão de renunciar ao que era vivido como más inclinações e de procurar um caminho de maior dignidade, para o que parecia aconselhável a renúncia à sexualidade e, portanto, a opção pelo celibato. Não está em causa a sinceridade de muitas destas decisões.

Tudo isto, como se sabe, ligado, quase sempre, também, a posições e ideais religiosos. E a Igreja considerou “estados de perfeição” estes caminhos de renúncia.

4 – Compreende-se, assim, que a consideração da  complexidade humana que representa o assumir a própria sexualidade e a relação pessoal que isso implica, tenha levado a renunciar à própria sexualidade pessoas que se sentem perturbadas e angustiadas com tudo o que sentem no seu íntimo a este propósito. 
Pode reconhecer-se que a escolha do celibato, em certas circunstâncias, seja uma decisão compreensível e respeitável. Mas, na realidade complexa da vida de cada um, não podemos excluir que muitas pessoas possam escolher o celibato por razões que têm a ver com angústias, culpabilidades e dificuldades que não conseguem resolver, e para as quais procuram encontrar solução deste modo. Renunciando. Quer dizer, negando o problema. O que poderá ter graves consequências no equilíbrio da pessoa.

Quando é assim, não há dúvida de que estes indivíduos ficam numa posição de grande fragilidade para enfrentar uma situação emocionalmente muito exigente, como é o celibato.

É indiscutível que este exige uma motivação esclarecida e sólida, em personalidades com características especiais de maturidade e equilíbrio, que não são frequentes. E, sobretudo, nunca pode ser uma fuga de dificuldades sentidas.

Portanto, para uma compreensão deste problema, é indispensável distinguir entre o celibato como estado e as pessoas que escolhem este caminho. A seleção dos candidatos é uma tarefa difícil, que exige uma preparação especializada de quem a faz.

A quem se confiará esta responsabilidade? A resposta não é fácil. Mas seja quem for que assuma essa tarefa, terá que estar bem consciente que a qualidade da motivação com que se escolhe o celibato, bem como o realismo e o esclarecimento com que se toma a decisão, são elementos decisivos.

Em muitos casos, e atendendo ao que tem acontecido, não podemos excluir que essa seleção, na prática, já seja feita por pessoas que, elas próprias, estão longe de corresponder a estas exigências.

Lucas Cranach, Adão e Eva (1530), 
Museo Nacional de San Carlos, México

5 – É razoável pensar que aquilo que hoje é denunciado publicamente, também foi sempre acontecendo no passado. A palavra pedofilia não era usada, embora existisse a realidade que agora se designa com essa palavra. Os factos existiam mas eram silenciados.
Por outro lado, mesmo quando tornados públicos, a divulgação da informação era completamente diferente do que é hoje. O encobrimento dos factos era a regra geral, e muitas pessoas aceitavam essa atitude como a mais “prudente”. Para evitar o escândalo.

É  bem significativo que muitos das denunciados que agora aparecem nos novos meios de comunicação social, se referem a factos ocorridos há muitos anos, e de que nunca se tinha falado, porque não havia condições para isso.

E são estes novos meios de difusão da notícia que tornaram impossível o “piedoso encobrimento” das transgressões, que era feito sistematicamente.

A novidade está, fundamentalmente, na divulgação da notícia e não nos factos em si, que sempre se soube que existiam. Antes, havia uma dificuldade em aceitar a situação que se sabia que existia, mas que era convenção aceite que não seria divulgada, para manter a idealização do celibato.  Porém, as condições atuais tornam impossível continuar a ignorar os factos.

É importante referir que temos assistido, recentemente, também a frequentes denúncias de abusos e violências no campo da sexualidade cometidos por várias figuras públicas, às vezes durante muitos anos, e que só agora foram divulgados, porque antes não era possível a divulgação.

Isto porque o problema não é só do celibato. É um problema da sexualidade humana, mas é evidente que o que se passa num contexto de violação de compromissos religiosos torna-se muito mais chocante.

A situação atual tornou impossível tentar ignorar estes factos. Mas há inúmeras referências ao longo da história a situações de transgressão das obrigações do celibato, algumas bem conhecidas dos contemporâneos

Na atualidade há uma mudança fundamental, e da maior importância, na atitude da Igreja. O Papa tomou a decisão, até agora inédita, de promover a denúncia das situações de transgressão. Quer dizer que há uma nova maneira de reagir a factos que sempre existiram, e que não têm a ver diretamente com o celibato, mas com as condicionantes da sexualidade humana.

Faço uma referência à história, entre muitas que se podiam dar. Stendhal, num livro em que conta as suas viagens no Norte da Itália em 1816, e em que descreve o modo de vida local, diz, sem qualquer comentário, apenas narrando, o que passo a transcrever.

Antes e depois de S. Carlos (Borromeo), os párocos da região de Milão tiveram amantes. (Acabava de mencionar um facto desse tempo). Nada parece mais natural. Ninguém os censura. E dizem-nos com simplicidade: “eles não são casados”. E num domingo de manhã vi uma senhora muito empenhada em não faltar à missa que iria ser celebrada por um padre seu amante. (Stendhal, Rome, Naples et Florence, Gallimard, Paris, 1987 , p.74)

6 – Mas, a meu ver, há um outro problema. É uma situação extremamente grave, que torna tudo mais melindroso, mas que até agora nunca vi referida. Trata-se da relação de grande proximidade que a confissão e a direção espiritual estabelecem entre as duas pessoas, uma em situação de autoridade, como quem ensina, outra na dependência da “orientação” ou  do “juízo” que vai receber. Por esta razão, deveria ser expressamente proibido manter relações de convívio social ou de amizade, com as pessoas que se ouvem em confissão ou em direção espiritual. É evidente que esta grande proximidade é muito melindrosa e facilmente cria uma dependência patológica. É muito significativo que nunca tenha sido denunciada, embora seja muito corrente.

Também é muito significativo que a hierarquia da Igreja pareça nunca se ter preocupado com isso.

Creio que todos podíamos contar histórias sobre este assunto.

 (Na foto: padres portugueses na embaixada de Portugal junto da Santa Sé, em Roma, em 1942;) 
“Parece, pois, que o celibato obrigatório, nas condições culturais e sociais em que hoje vivemos, 
não poderá continuar a ser exigido como até aqui.” 

7 – Parece, pois, que o celibato obrigatório, nas condições culturais e sociais em que hoje vivemos, não poderá continuar a ser exigido como até aqui. A meu ver, exige-se uma profunda revisão, clarificando, à luz do pensamento contemporâneo, o que a Igreja pensa sobre a sexualidade, que terá que incluir o caso dos “recasados” e a homossexualidade.

Lisboa, Fevereiro de 2019
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* João Seabra Diniz é psicanalista e membro da Sociedade Portuguesa de Psicanálise
Fonte:  http://setemargens.com/sexualidade-humana-comportamentos-desviantes-celibato-um-comentario-do-psicanalista-joao-seabra-diniz/?utm_term=7Margens+-+Hoje+-+2019-02-25&utm_campaign=Sete+Margens&utm_source=e-goi&utm_medium=email

A intimidade

Miguel Esteves Cardoso*

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A intimidade não só não se gasta como cresce quando vivemos dentro dela. Precisa-se sempre de mais –? 
e vem sempre mais.

Na intimidade cada um pode ser exactamente como é e dizer aquilo que apetece dizer. Tem-se liberdade para ser inconsistente e contraditório: está-se à vontade, sem pensar no que se vai dizer – ou nas consequências.

Para haver intimidade os amigos e os amores têm de se conhecer muito bem – e depois passar essa fase absurda de se conhecerem muito bem para começarem a conhecer-se a si próprios, os dois ao mesmo tempo.

Passaram o tempo, a frustração e o esforço de se conhecerem um ao outro. Esse trabalho está feito. Agora tu e eu podemos divertirmo-nos a descobrir a liberdade e a alegria de ser: tu a seres tu, eu a ser eu e nós a sermos nós.
Podemos ser maus, dizer maldades, não ter cuidado, não ter medo, não ter rodeios, estar calados, ler o que nos apetece, chamar nomes um ao outro, sermos ternos sem receio de parecermos piegas, fazer piadas duvidosas, ser excessivos, ser exagerados, imitar as caras dos outros, cortar nas casacas, pedir ajuda e sermos ajudados, dizer que estamos arrependidos, pedir perdão, exprimir ideias que nunca foram pensadas até ao fim, brincarmos com a espontaneidade, ver até aonde as coisas nos levam –​ e depois desistir e começar outra vez. Ou não.

A intimidade não só não se gasta como cresce quando vivemos dentro dela. Precisa-se sempre de mais –​ e vem sempre mais.
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* Jornalista. Escritor. Crítico português.
Fonte:  https://www.publico.pt/2019/02/25/sociedade/cronica/intimidade-1863234#gs.NB95UyAG 
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domingo, 24 de fevereiro de 2019

EDUCAÇÃO HIPSTER OU NÃO?

LEANDRO KARNAL*
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  A vida sempre será o maior professor de todos nós. 
É preciso ter esperança.
 
O ano letivo engrena e chega a um novo momento para pensar na imensa tarefa de educar. Se você é mãe ou pai responsável, deve ter medo. Se você for um professor de qualidade, pode estar apreensivo. Quem sabe a responsabilidade da escola na definição do futuro de alguém tem apreensões.

Não existe receita. Vamos trazer dados objetivos para que cada mãe e cada pai, cada escola e cada professor possam acrescentar sua visão de mundo e complementar (ou contradizer) o que proponho a seguir.

1) Alguém é educado da mesma maneira que alguém peca na liturgia católica: "Por pensamentos e palavras, atos e omissões". Você educa pelo que diz, pelo que omite, pelo que faz e até por pensamentos, já que eles provocam marolas no olhar ou são pais de gestos concretos. Ao dirigir, você está educando um filho que está na cadeirinha do banco de trás. Ao entrar na sala de aula, sua roupa, seu tom de voz, sua postura, seu sorriso ou seu azedume estão educando. O chamado "currículo oculto" é, quase sempre, o mais poderoso da educação.

2) Educação deve ser um equilíbrio entre o prazer lúdico que produz muito conhecimento e, por vezes, a insistência do esforço que não está acompanhado de resultado imediato. Focar em sorrisos 100% do tempo atende o aluno-consumidor e não ao ser humano maduro. É errado supor que tudo deva ser sofrimento e equivocado dizer que só tem valor quando fazemos com gargalhadas. A "chatice" nunca é um bom projeto, mas o gosto do esforço deve e pode ser estimulado.

3) A sala de aula e as atividades culturais declaradas são importantes, porém existe a autonomia do indivíduo. O desejo de consumo, por exemplo, é quase igual para todos os alunos ao emergirem do Ensino Médio. Nenhuma aula disse que o smartphone X era o melhor, mas o mundo inteiro disse algo assim. Isso deve nos deixar um pouco menos preocupados: fazemos muito, não controlamos tudo. Nem todos os desejos e as repulsas dos alunos derivam do gosto dos pais ou da orientação dos professores.

4) Muitos pais de classe média e alta dão celulares bem cedo para os filhos sob o argumento de que "todos os colegas possuem um". A ida para a Disney segue lógica similar. Uma roupa da moda acaba sendo imposta porque a criança/adolescente ficaria deslocada/do em outro traje. Quem pensa assim está produzindo uniformidade, time, torcida ou batalhão militar. Uma parte do sucesso no futuro dependerá de autonomia, inteligência, originalidade. Em resumo, querer tudo igual torna seu filho e sua filha iguais em demasia e, como tal, mais aptos à repetição. Ser "hipster" no sentido original e positivo da palavra é uma estratégia boa de sucesso. Pensar de forma autônoma dá mais futuro.

5) Se alguém de 14 anos fosse maduro e equilibrado, soubesse aprender por si e fosse sábio, pais e professores poderiam ser dispensados. Um médico é procurado por doentes. Educar é lidar com imaturidade, inconstância, crises artificiais, egoísmos, narcisos feridos, incapacidade de ver o outro e uma insegurança brutal que se traveste de arrogância. Pais e mães têm poder sobre os filhos porque os filhos necessitam do poder. São seres únicos, ainda que sejam na teoria e na prática incapazes judicialmente. Professores estão ali para fazer parte do processo longo, penoso e desgastante de pressionar o carvão para que surja algum diamante. É por serem difíceis que a criança e o jovem necessitam de você.

6) Não cansarei de repetir: não educo para suprir dores da minha educação, para sublimar o que ouvi no passado ou para ressignificar minhas frustrações. Educo um ser único, especial, parte da minha biografia, todavia autônomo nas coisas boas e ruins. Educo para o futuro, educo-me junto, reaprendo valores, entendo que gerações anteriores tinham vantagens e defeitos e, por fim, pratico a suprema lição ecológica: amparar o animal selvagem ferido é, exclusivamente, para reinseri-lo na natureza. O grande objetivo de toda educação é liberar o educando no mundo selvagem e complicado. O cativeiro protege e imbeciliza. A jaula é desejo de controle do proprietário, raramente um anelo do bicho. Bichos/animais no mesmo parágrafo que alunos e filhos? Se alguma fera lê o Estadão eu peço desculpas. Foi um pleonasmo didático.

7) Há pais, professores, mães e outros educadores que criam fronteiras e regras bem demarcadas. Há quem prefira laços mais frouxos. Há os que ligam de meia em meia hora e há os que se controlam. As linhas variam e dependem de muitos fatores. Só existe uma questão que jovens não perdoarão no futuro: a indiferença. Dá para superar um pai controlador, difícil encarar o omisso. Educar é um projeto enorme e duradouro. Já escrevi que há mais gente fértil no mundo do que vocações autênticas de pai e de mãe. Há mais gente com diploma de licenciatura do que professores de verdade. Sua linha pode variar. O que nunca será esquecido é se você esteve presente, integral, empenhado e com todo o seu corpo e alma no momento. Pode errar junto, nunca distante.

A escola e a família podem muito, mas não podem tudo. Você é responsável e seu papel fundamental, todavia o mundo lhe excede, o futuro não lhe pertence e o ser humano não é determinado pelos pais e professores. Tente fazer o melhor, haverá erros e lacunas enormes, mas tudo pode ser reparado se existiu um projeto genuíno de estimular liberdade, conhecimento, curiosidade e valores coerentes. O resto? Devemos dar uma chance profissional a terapeutas e psicólogos. A vida sempre será o maior professor de todos nós. É preciso ter esperança.
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* Historiador, professor da Unicamp, autor de, entre outros, "Todos Contra Todos: o Ódio Nosso de Cada Dia.
Fonte:  https://flipzh.clicrbs.com.br/jornal-digital/pub/gruporbs/acessivel/materia.jsp?cd=51d3cab6da2603ad816083eb371d13ad
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Estado laico é neutro, não ateu, escreve professor de direito da USP

André Ramos Tavares*
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Alguma ligação entre religião e poder estatal pode ser salutar, argumenta André Ramos Tavares

[RESUMO]  Professor de direito da USP argumenta que Estado laico não significa aversão à religião e que alguma ligação entre essas entidades pode ser salutar.

Como salvar a sociedade brasileira? A provocação pode ensejar colocações de matizes variados, sendo as mais evocativas as de cunho religioso. A busca pela “salvação”, apesar dessa inevitável fisionomia religiosa, também é capaz de gerar propostas econômicas, jurídicas, tecnológicas e mesmo ações políticas determinadas, como uma “caça aos corruptos”.

Nesse contexto, não posso deixar de me referir, preliminarmente, a um segmento da literatura jurídica que fala da “fidelidade constitucional”. Ela pode ser melhor visualizada, simbolicamente falando, no juramento de cumprir e defender a Constituição, exigido do presidente e vice-presidente, ao tomarem posse (art. 78 da Constituição de 1988), e também na obrigação do poder público, em todos os níveis, de zelar pela sua guarda, além da imanente atribuição conferida ao STF de guardião constitucional (art. 102, caput).

Essa tese da fidelidade constitucional, embora pouco difundida, não chega a ser questionada ou controversa. Como lembra o americano Jack Balkin, “para um juiz, dizer que a fidelidade à Constituição não é importante é escandaloso (...); para um político (...), é traição (...); para um professor de direito (...), é admitir que ele não está mais fazendo direito constitucional”.

Mas há algo além, uma espécie de fé implícita no constitucionalismo, que pode ser sintetizada da seguinte forma: a Constituição é melhor do que aquilo que teríamos se nós a abandonássemos, na advertência precisa do professor William Michael Treanor.

De fato, é consenso que, em em uma sociedade constitucional, questões envolvendo o Estado e suas autoridades sejam delimitadas pela aplicação dos comandos constitucionais. Podemos chamar isso de fidelidade constitucional ou de qualquer outro nome.
Com a religião e a fé propriamente ditas, o encaminhamento é o mesmo. Um conjunto robusto de normas, incluindo direitos fundamentais, disciplinou o assunto em seus principais elementos, o que bem retrata a relevância do tema religioso para a sociedade brasileira.

Para falar de Estado laico no Brasil, tema central da relação direito-fé, parece oportuno retomar os dados do IBGE, no censo demográfico de 2010. Somos, sem dúvida, uma nação cristã no sentido da opção religiosa de nosso povo, mas não no sentido jurídico de Estado. Em termos religiosos, quem mais cresce no Brasil são os evangélicos. No entanto, permanecemos a maior nação católica do mundo (64,6% da população).

Há razões históricas para isso, como nossa primeira Constituição, de 1824, que configurou o Estado brasileiro como confessional, não obstante permitisse o culto das demais religiões. Se é verdade que a Constituição de 1891 rompeu com esse Estado religioso, o processo em muito se ateve ao âmbito formal e pouco alterou o cotidiano e a própria vida institucional do país. Vale sempre a perspectiva de que o direito é um fenômeno cultural.

Daí o tratamento especial a algumas religiões com lastro no interesse público e, sobretudo, na proteção constitucional da cultura e do patrimônio histórico nacional, previsto no artigo 215 da Constituição de 1988. Emerge aí, desde logo, uma certa condição ambivalente, como manifestação cultural e religiosa, reconhecida, por exemplo, no Decreto da Santa Sé, de 2010.

Se o Estado é laico no Brasil, seria isso, rigorosamente falando, legítimo? Uma primeira advertência é que não se pode tomar o termo laico como portador de um sentido unívoco. Ele pode variar fortemente, de país para país, a partir das experiências culturais, dos percursos históricos e da normatividade em vigor.

Assim é que se compreende a razão de uma França repressiva quando o assunto é manifestação religiosa, e de uma Itália amigável no mesmo tema. Isso dito, fica evidente que modelos estrangeiros não podem servir como paradigmas autoaplicáveis, imediatamente mimetizáveis pelo Estado brasileiro.

De maneira propedêutica, posso afirmar que Estado laico pressupõe postura estatal de neutralidade religiosa. Isso é básico. O conceito de neutralidade, contudo, não propugna por um Estado ateu ou contrarreligioso, como tenho advertido há algum tempo. Pelo contrário, não se quer, com neutralidade, um Estado alheio ao fenômeno religioso. Vejamos, então, o sentido constitucional do Estado laico no Brasil.

O caráter secular tem como norma basilar de sustentação o artigo 19, inciso I, da Constituição de 1988, que veda “estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público”.

Dada a predominância proibitiva da semântica constitucional que norteia a relação Estado-religião, poderíamos ser tentados a equiparar, no Brasil, Estado laico e laicismo, sendo esta última uma postura de aversão religiosa, de intolerância. Se o propósito da Constituição e dos constituintes fosse o de uma segregação plena entre as instituições, então o teriam feito expressamente, ou, ao menos, não teriam admitido textualmente a ressalva da colaboração, seguindo a Carta do Estado Novo.

É inquestionável que a dinâmica estabelecida pela Constituição do Brasil não é hostil ao contato e à correlação entre ambos. Pelo contrário. Determina-se, em diversos pontos e momentos, uma necessária e salutar imbricação mútua, sempre com o objetivo de privilegiar o interesse público. E do Estado se esperam ações positivas, como as de afastar barreiras que possam impedir ou dificultar determinadas opções em matéria de fé, como destacou o ministro Gilmar Mendes, do STF, em julgamento de 2009. 

Há, sim, uma distinção necessária e saudável, o que interessa sobretudo a uma sociedade plural e diversa. É corolário que o discurso oficial do Estado, e de suas autoridades, não possa assumir uma religião como se fosse oficial. Apesar disso, a liberdade de expressão individual precisa ser respeitada.

O enfrentamento deste tema pela discussão do Estado laico, porém, é insuficiente. Como saber se a autoridade pública pode invocar uma ampla e intensa liberdade de expressão religiosa? Poderiam um ministro, um parlamentar, um governador ou mesmo o presidente do país exercer uma ampla liberdade religiosa, expressando-a por meio do exercício de um cargo ou mandato público? O assunto deve também ser analisado a partir dessa perspectiva dos direitos fundamentais e dos deveres institucionais.

Um dos pressupostos centrais, aqui, é que algumas religiões ostentam ambição universalista, por serem teorias morais de primeira ordem. Cristianismo, judaísmo e islamismo acabam por exercer essa pretensão nos discursos de seus praticantes, na evangelização e no proselitismo —discurso que almeja converter membros de outras religiões. Isso exige um cuidado maior, uma tutela mais constante da liberdade de crença, protegida em nossa Constituição.

Recorro, de início, à Corte Suprema dos EUA, coincidentemente uma instituição de pretensões universais, com sua autoimagem de berço das liberdades e única fonte do melhor direito. Essa corte, na decisão tomada no caso Cantwell v. Connecticut (1940), considerou que o proselitismo está protegido, inclusive em suas manifestações de ataque (teórico, verbal) às demais religiões.

Considerou-se que, a longo prazo, essas liberdades são essenciais à plena cidadania na democracia. A conclusão é plenamente aproveitável, não pela fonte da qual emana, mas pelas razões adiante. Vejamos.

Hoje, o proselitismo está albergado no seio da liberdade religiosa, direito constitucional no Brasil, nos termos do artigo 5º: “É inviolável a liberdade de consciência e de crença”. Ao dizer que também a Constituição brasileira protege essa ocorrência, isso significa, dentre outros aspectos, que as religiões têm o direito de serem intolerantes. Mais do que isso, não se lhes pode impor nem mesmo a indiferença religiosa. Isso seria negar a própria liberdade de crença e de prática da fé. Mais ainda, romperia também com a livre construção da personalidade individual.

A liberdade de expressão religiosa, como se vê, é um tanto diversa da mera liberdade de expressão. Ela não expressa uma mensagem qualquer ou comunicação. Se assim fosse, bastaria consagrar a liberdade ampla de expressão. Bem por isso não se aplicam, por exemplo, as regras do Código de Defesa do Consumidor às mensagens transcendentais emanadas de uma religião com cunho universal. Nesse sentido, a liberdade de expressão religiosa é mais robusta, tem alcance maior e mereceu um tratamento próprio na Constituição.

Por tudo isso, qualquer ato de censura pelo exercício dessa liberdade é, no caso brasileiro, muito delicado. A tarefa complexa é identificar limites por antecipação de condutas. Alguns decerto são velhos conhecidos do direito. Não está protegido o discurso de ódio ou discriminatório, nem se protege o discurso que leve à quebra da paz ou da ordem pública. Não se poderia praticar uma guerra santa em nome dessa liberdade constitucional.

É evidente que a compreensão das fronteiras entre direitos e deveres constitucionais se torna conturbada quando ocorrem interseções ou choques, como coloquei no dilema acima, na concomitância do proselitismo religioso com o exercício estrito de cargos públicos ou mandatos populares, nos quais é forte o influxo de deveres e normas limitativas em geral.

Cito mais uma vez a Corte Suprema dos EUA, para divergir. No caso Rosenberger v. Universidade da Virgínia (1995), a corte entendeu que é proibido ao governo encampar em seu discurso uma dada religião. Mas os contextos de nossos países são diversos, e os EUA não nos servem de padrão.

Creio que possa haver justo receio quando ocorrem reiterados discursos religiosos por indivíduos que exercem também autoridade pública. Entre nós, ilícitos existirão se os canais de comando estatal ou a autoridade que deles deriva servirem para propagar privilégios ou assegurar uma eficácia proselitista.
No entanto, há excesso em identificar, no discurso isolado, no posicionamento pessoal tornado público, um atentado à Constituição, uma violação de direitos ou mesmo a violação de nosso acordo constitucional de neutralidade.

O que mais importa é impedir práticas espúrias, combatendo atos revestidos de legalidade externa, de legalidade formal e de legalidade aparente, mas que configuram fraude à Constituição.

Por isso entendo que são relevantes as ações, e menos os discursos (geralmente segmentados por plateia), como aponta a teoria da fidelidade constitucional. Muitas ações inconstitucionais, aliás, são adotadas em um contexto de absoluto silêncio discursivo.

Uma boa chave de leitura, quando o temor é a direção do Estado por alguma religião, está na obrigação constitucional de promover e incentivar a ciência, a pesquisa e a capacitação tecnológica da sociedade. Estão vedados os retrocessos culturais e educacionais.

Em tempos de grandes desafios econômicos postos pelas tecnologias, por uma quarta Revolução Industrial, a linha de frente de nossas atenções, discussões e políticas estaria mais bem localizada exatamente nestes quadrantes, o que atenderia, de maneira inovadora, à Constituição. Neste tema sim deveríamos empregar algum radicalismo piedoso, resguardando o futuro próximo de nossa sociedade.

André Ramos Tavares é professor titular da Faculdade de Direito da USP.
Fonte:  https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2019/02/estado-laico-e-neutro-nao-ateu-escreve-professor-de-direito-da-usp.shtml

Como enfrentar o medo de mudança

Como enfrentar o medo de mudança

Nosso cérebro foi projetado para a sobrevivência, não para a felicidade

A vida é mudança, mas a mudança nos assusta. Às vezes, dá vontade de fazer coro à reflexão de Mafalda: pare o mundo que eu quero descer. A origem desse mal-estar está na biologia. Segundo o arqueólogo espanhol Eudald Carbonell, codiretor das escavações de Atapuerca (Espanha), nosso cérebro é o resultado de 2,5 milhões de anos de evolução. Levamos muito tempo vivendo em cavernas e pouco tempo em cidades. Isso significa que temos “codificadas” respostas automáticas para responder com sucesso às ameaças daquela época. Se agora vemos um leão solto passeando pela rua, nosso cérebro não perderá tempo tentando saber de que subespécie ele é; simplesmente nos mandará sair correndo para sermos mais rápidos – não mais do que o felino, e sim de quem está ao nosso lado (também temos outra alternativa: a de ficarmos congelados, esperando que o leão não nos veja). No entanto, esses circuitos tão maravilhosos, que nos permitiram chegar até aqui como espécie, não estão preparados para enfrentar ameaças mais sutis, como a digitalização, as mudanças de regulação de um setor ou a possibilidade de ficarmos sem emprego. Esses medos são novos, evolutivamente falando, e por isso nem sempre nos damos bem com a transformação. Recordemos uma máxima importante: nosso cérebro foi projetado para a sobrevivência, não para a felicidade. Diante de mudanças, portanto, temos que encontrar uma forma de navegar por elas, entendê-las como oportunidades e aprender com as suas possibilidades. E isso não é automático como sair correndo ante uma ameaça. Exige esforço, treinamento e capacidade de superar os medos que nos afligem.

A gestão da mudança é hoje mais difícil do que nunca, mas também mais fácil do que no futuro. Por um motivo simples: a velocidade. Para se ter uma ideia da magnitude, há 10 anos tínhamos 500 milhões de aparelhos conectados à Internet. Em 2020, estima-se que serão 50 bilhões; em uma década, um trilhão. Ou seja: estamos só no começo. Isso sem falar do que virá por meio da inteligência artificial, da criopreservação de nossos corpos, dos avanços genéticos e das viagens espaciais. Estamos apenas no início de um tsunami que transformará a forma como nos relacionamos, trabalhamos e vivemos. Portanto, vêm aí mais e mais mudanças. A boa notícia é que nosso cérebro, embora provenha da época das cavernas, tem uma enorme plasticidade que lhe permitiu chegar até aqui e construir toda uma tecnologia que está revolucionando o mundo.

Por isso, temos uma margem de manobra. Vejamos como podemos começar com dicas muito simples.
Primeiro, precisamos de treinos diários da nossa mente. Assim como existem academias para o corpo, devemos colocar em forma o músculo do cérebro. Todos os dias – todos – fazer algo diferente. Ler fontes de informação variadas, ir ao trabalho por outro caminho, experimentar um sabor exótico... o que for. Mas aceite o desafio de fazer algo novo diariamente. A aprendizagem é o melhor antídoto contra o medo.

Segundo, precisamos relativizar o que nos acontece. Um bom método é, paradoxalmente, ler história. Devemos perceber que, embora vivamos no tsunami da mudança, foram justamente todos esses avanços que nos permitiram aumentar nossa esperança de vida e não sofrer por possíveis epidemias ou por guerras mundiais. Na medida em que tivermos perspectiva, poderemos entender a parte benéfica.

Terceiro, devemos buscar a “desdigitalização”. Apesar da velocidade que nos rodeia, precisamos encontrar a conexão com nós mesmos e com o próximo. Se vivermos sempre expostos aos impactos da Internet, não teremos tempo para integrar a aprendizagem e encontrar os oásis necessários a uma certa tranquilidade. Por exemplo, você pode abrir mão do celular no fim de semana ou deixá-lo no modo avião.

Por último, precisamos confiar. Afinal, tudo tem solução – melhor ou pior, mas tem. O que nos asfixiava anos atrás, como a prova do colégio ou um conflito difícil, agora não nos parece tão terrível. E se fomos capazes de driblar situações difíceis, por que não poderemos fazer isso com o que temos agora?

Por isso, na medida em que confiarmos, mantivermos a curiosidade e a aprendizagem, soubermos relativizar e criarmos espaços de paz, poderemos encontrar recursos para contemplar a mudança de maneira mais positiva e construtiva. 
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 Fonte: https://brasil.elpais.com/brasil/2019/01/27/actualidad/1548618819_579161.html 

O Mercado da solidão

A tecnologia facilita a vida de quem vive só, mas há quem pague por um abraço






A advogada Renata Cruz, 44, não nega ombro às amigas e aos amigos. Fica a postos 24 horas por dia, seja pessoalmente, por WhatsApp ou Skype (para aqueles que moram longe). Quando eles mais precisam, está pronta para ouvir e acolher suas lamúrias. Além disso, faz questão de acompanhar cada caso e saber o desfecho. "Eu não dou conselhos genéricos. Estudo a problemática e faço o possível para ajudar a resolver", afirma Renata, com a segurança de quem é perita no assunto.

Renata atua como amiga profissional - ou "personal friend", como é chamado o serviço que oferece há duas décadas. "Era muito comum que as pessoas me abordassem em lugares públicos, como o ponto de ônibus ou o trem, para desabafar", conta ela, que morava em Portugal quando começou a oferecer o serviço. "Percebi que tem muita gente com necessidade de conversar e sem ninguém para ouvir e que eu poderia ajudar de maneira profissional. Hoje eu tenho formação de coach, o que aperfeiçoou meu atendimento". Os valores das sessões variam entre R$ 120 e R$ 170 reais por hora.
O "personal friend" é só um dos produtos e serviços disponíveis para quem vive sozinho. Segundo a Síntese de Indicadores Sociais do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) divulgada em 2015, esse grupo já soma 10,4 milhões de pessoas. Trata-se de um aumento de 73,3% em relação à década anterior, mostrando que o Brasil segue uma tendência mundial, vivida sobretudo pelos países mais desenvolvidos.

Em 2016, o Canadá atingiu pela primeira vez em sua história um número maior de casas com uma só pessoa do que qualquer outro tipo de habitação. Segundo dados daquele ano, 28,2% dos domicílios tinham apenas um morador no país. Ainda assim, a porcentagem é significativamente menor que a de vários países europeus: Dinamarca, Finlândia, Alemanha e Noruega, por exemplo, têm mais de 30% de suas casas com um só morador. A estimativa é que esse já seja o modelo adotado em 15% dos dois bilhões de residências que existem no mundo todo.

PRODUTO SOLIDÃO

Além do amigo de aluguel, há uma variedade enorme de opções para atender a essa turma. Segundo o Sindicato da Habitação de São Paulo, a capital paulista teve em 2018 um crescimento de 91% nos lançamentos de unidades residenciais com até 45 metros quadrados. Em 2017, 42,6% dos imóveis lançados tinham esse tamanho. Nesses ninhos de um pássaro só, dá para fazer de tudo sem colocar o pé para fora da porta ou estabelecer vínculo com ninguém. Graças, principalmente, à tecnologia. Os aplicativos, por exemplo, incrementaram os serviços de entrega em domicílio. Hoje é possível ir ao supermercado, à farmácia, à papelaria e até sacar dinheiro sem colocar o pé para fora da porta de casa. O silêncio incomoda? Na internet, há áudios de horas ininterruptas com o som de pessoas conversando, como se estivesse acontecendo uma festa em sua casa. Isso sem falar no mundo do sexo virtual, que garante até a experiência de estar dentro de uma casa de swing ou coisa do tipo.

O Japão, onde imóveis minúsculos e códigos rígidos de convívio fazem parte da cultura, o atendimento a esse público chegou ao extremo. Lá, estão se popularizando os "cuddle cafes", locais onde é possível pagar para dormir de conchinha. Em 2012, foi inaugurado o primeiro, no distrito de Akihabara, em Tóquio, chamado Soineya, que literalmente significa "dormir juntos".

Os clientes, todos homens, precisam pagar uma taxa para entrar no estabelecimento. Os preços variam de acordo com o tempo gasto com o serviço: entre US$ 40 para vinte minutos, e US$ 645 para uma noite completa de 10 horas. Para quem deseja ainda mais calor humano, há pacotes opcionais que incluem itens como troca de olhares. Inspirados na experiência oriental, empresários de Nova York e Portland, nos Estados Unidos, e Vancouver, no Canadá, estão abrindo negócios semelhantes, porém para atender também as mulheres.

O surgimento de tantos produtos para este, digamos, mercado da solidão, levanta algumas questões: estar só é uma escolha, uma busca do sujeito pós-moderno, ou uma condição imposta pela vida contemporânea, marcada pela fragilidade dos laços afetivos? Existe uma dose segura e aconselhável de solidão? O historiador Leandro Karnal publicou em 2018 um livro com discussões semelhantes: "O dilema do porco espinho - como encarar a solidão" (Ed. Planeta).

Já na introdução, ele nos expõe o paradoxo por meio da metáfora do porco-espinho, usada pela primeira vez pelo filósofo Arthur Schopenhauer: assim como aquele animal, precisamos nos unir para nos proteger do frio. A proximidade, no entanto, espeta, machuca. E, então, nos afastamos. A vida moderna, onde quase tudo é possível, impõe o dilema: "Quero estar sozinho, quero companhia e gostaria de controlar esses dois momentos de acordo com minha vontade. Não é possível. A busca do equilíbrio tem sido um desafio constante para estimular casamentos e divórcios", escreveu.




A SOLIDÃO COMO DOENÇA

A busca pelo equilíbrio entre a liberdade de estar só e o convívio saudável com outras pessoas parece estar desbalanceada. A solidão extrema é, sim, considerada um mal moderno e tem sido tratada como epidemia em alguns países. No início do ano passado, o Reino Unido, por exemplo, anunciou a criação do Ministério da Solidão. Naquele país, a preocupação é principalmente com os idosos, mas acomete cerca de nove milhões de indivíduos de idades variadas.

"Para muitas pessoas, a solidão é a triste realidade da vida moderna", disse a primeira-ministra Theresa May, ao anunciar a medida. "Quero enfrentar esse desafio pela nossa sociedade e para que todos nós possamos agir para combater a solidão enfrentada pelos mais velhos, pelos cuidadores, por aqueles que perderam seus entes amados - pessoas que não têm ninguém para conversar ou compartilhar seus pensamentos e experiências", completou a premiê.

A apreensão inglesa tem justificativa. A solidão está na origem de uma série de patologias. "Causa irritação, isolamento, depressão e está associada a um aumento de 26% do risco de morte prematura", alerta o especialista no assunto John Cacioppo em artigo publicado recentemente na revista científica "The Lancet". "Solidão é uma condição particular na qual um indivíduo se percebe socialmente isolado mesmo quando está entre outras pessoas", escreveu Cacioppo.

Sem ninguém por perto com quem contar, adoecemos porque andamos na contramão de nossa essência. Ficar muito só está para a alma assim como a falta de água está para a pele. "Bebês não comem se não forem alimentados, não se locomovem se não forem transportados", disse ao TAB o psicanalista Armando Colognese Júnior, professor e supervisor do Departamento de Formação em Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.

Nossa fisiologia é feita para buscar o convívio. O simples toque, como carícia, libera ocitocina (o chamado "hormônio do amor", do acolhimento, que promove calma e bem-estar). O olho no olho também deflagra uma cascata de reações químicas, em geral benéficas. Em sua obra "O Ser e o Nada", o filósofo francês Jean Paul-Sartre, marido de Simone de Beauvoir, discorre sobre o processo de identidade em que o sujeito se descobre como indivíduo. Segundo ele, isso só acontece na presença (ou na experiência) do outro. Sobre isso, escreveu: "O Outro é mediador indispensável entre mim e mim mesmo (...) Reconheço que sou como o Outro me vê".

O pintor americano Edward Hopper (1882 - 1967) dedicou parte importante de sua obra para retratar cenas da solidão da vida moderna. Inspirado em algumas das mais emblemáticas, em 2013 o diretor de cinema Gustav Deutsch criou a história de Shirley, uma mulher que vive nos Estados Unidos entre as décadas de 1930 e 1960. No filme, as imagens de Hopper compõem uma narrativa única, ganhando movimento e som. Além da trilha sonora, ouvimos os pensamentos da personagem, que divaga sobre grandes fatos históricos: a Grande Depressão, a Segunda Guerra Mundial, o Macartismo... Trechos do longa ilustram este TAB.



O CONVÍVIO COMO INCÔMODO

É de Sartre também a célebre frase: "O inferno são os outros". Ora, como o mesmo pensador discorre sobre a importância do outro para o indivíduo e diz que ele é seu inferno? Na verdade, as afirmações são complementares e fazem parte da teoria existencialista do francês. O que ele quer dizer é que, ao convivermos, enxergamos no interlocutor aquilo que somos e também o que não somos. O outro nos tira da ignorância sobre nós e nos impõe um problema. Ele nos tolhe a liberdade, cria limites sociais. A vergonha, por exemplo, só existe quando não estamos sozinhos. Escreveu ele: " (...) a vergonha, em sua estrutura primeira, é vergonha diante de alguém. Acabo de cometer um gesto desastrado ou vulgar: esse gesto gruda em mim, não o julgo, nem o censuro, apenas vivencio (...) Mas, de repente, levanto a cabeça: alguém estava ali e me viu. Constato subitamente a vulgaridade de meu gesto e sinto vergonha".

Ou seja, se por um lado a solidão nos é fatal, a vida em comum nem sempre é pacífica. Viver junto requer concessões. É preciso abrir mão de vontades, de desejos pessoais em nome do outro sem deixar de reivindicar seu próprio espaço, proteger-se dos espinhos. Cansa, dá trabalho, desmotiva muitas vezes. Ao mesmo tempo, foi-se a época em que casar e formar família eram sinônimos de felicidade ou sucesso pessoal.

Hoje em dia, já é aceitável a escolha pela vida de solteiro em que as ambições sejam variadas e nada tenham a ver com família - uma carreira de sucesso, viagens, busca por transcendência espiritual, entre outras possibilidades. Viver só é uma facilidade. "Em nosso mundo de furiosa 'individualização', os relacionamentos são bênçãos ambíguas. Oscilam entre o sonho e o pesadelo, e não há como determinar quando um se transforma no outro", escreveu o sociólogo polonês Zygmunt Bauman (1925-2017) em "Amor Líquido - sobre a fragilidade dos laços humanos".

SOZINHA E MAIS FAMÍLIA

A SOLIDÃO COMO REMÉDIO

Há mais de uma década, a professora de inglês Carolina Ferrari, 45, optou por viver sozinha (assista à entrevista acima). Prestes a completar 30 anos, ela, que é a filha caçula, ainda vivia na casa dos pais. "Casar, ter filhos, formar uma família clássica, nunca estiveram nos meus planos, mas imagino que meus pais esperavam que eu só fosse embora casada. Foi uma frustração para eles", afirma.

Com o passar do tempo, porém, Carolina percebeu que o relacionamento com a família melhorou. "Se antes eu vivia no meu quarto e mal encontrava meus pais, depois que saí de casa passei a visitá-los periodicamente, a organizar viagens e passeios juntos", diz ela, que vive com Luigi, seu cachorro, e nos momentos difíceis não hesita em procurar os amigos - sem precisar pagar por isso.

Por reconhecer o lado positivo da vida sozinho, Leandro Karnal faz uma ponderação em seu livro: "Precisamos fazer uma distinção possível, ainda que não aceita por todos, entre solidão e solitude. A primeira pode ser considerada negativa, independendo, inclusive, de estar isolado, apartado da sociedade, pois podemos nos sentir solitários na multidão. A solitude, por outro lado, tem caráter positivo, enseja ao ser a possibilidade de escuta de seu 'eu' e é condição imprescindível para qualquer forma de expressão estética.

São inúmeros os casos de escritores, artistas plásticos e músicos que precisam de reclusão para produzir. Uma das obras mais famosas da escritora inglesa Virginia Woolf, "Um teto só seu", trata da dificuldade que as mulheres de seu tempo, o início do século 20, enfrentavam para escrever. Entre outros problemas, elas não tinham a oportunidade de ficar sós. "Em primeiro lugar, ter um espaço próprio, que dirá um espaço silencioso ou à prova de som, estava fora de questão", escreveu. Treinada em redações barulhentas, a repórter que assina este TAB é capaz de escrever no meio da multidão. Ainda assim, só consegue pensar no que e em como será escrito realizando atividades solitárias, como tomar banho, caminhar, andar de bicicleta ou nadar.

Ao contrário da solidão patológica, a busca pela solitude pode ser um indício de saúde emocional. "Apenas procura ficar sozinho quem está emocionalmente equilibrado para encarar a si mesmo sem ninguém por perto", diz Colognese. Esses momentos de introspecção, no entanto, têm um limite saudável também. "Quem tem alguém por perto com frequência alimenta-se, dorme, cuida-se melhor", completa o psicanalista.

Em 1992, o garoto americano Chris McCandless embarcou em uma profunda experiência de solidão rumo ao Alasca, mas acabou morrendo envenenado por uma planta que comera. Chegou a tentar pedir ajuda, mas foi em vão. A história é contada no livro do jornalista John Krakauer e no filme dirigido por Sean Penn, ambos com o mesmo título: "Na Natureza Selvagem". Em um livro encontrado junto a seus pertences, McCandless escreveu: "A felicidade só é real quando compartilhada".
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* Reportagem teve informação corrigida em 21 de fevereiro de 2019 sobre o número de pessoas que vivem sozinhas no Brasil 
olaborou nesta edição

sábado, 23 de fevereiro de 2019

O Horizonte da Derrota: entrevista com Idelber Avelar


Em entrevista, o crítico cultural Idelber Avelar analisa a trajetória que levou Bolsonaro à presidência do Brasil, os erros de Lula e o papel das "fake news" no cenário político brasileiro.


Estado da Arte
22 Fevereiro 2019 


por Pablo Makovsky*

Em 1999, antes de que a Argentina retomasse os julgamentos dos crimes de lesa-humanidade cometidos pela última ditadura civil-militar, e quando Hugo Chávez  começava na Venezuela, o crítico cultural brasileiro Idelber Avelar publicou Alegorias da Derrota, um livro magistral que analisava os processos de representação da memória ditatorial na democracia e postulava que as ditaduras que se propagaram na América Latina durante os anos 1960 foram condicionantes das atuais democracias, que por sua vez não questionaram o ordenamento imposto a sangue e fogo e se apresentavam como mero arremedo do antigo desejo de democracia radical. 
Claro que resumir tal livro dessa forma não lhe faz justiça, pois Avelar explorava as diversas facetas de todo esse processo através das representações presentes na literatura. Somente as páginas dedicadas ao boom latino-americano dos anos 60, a reviravolta naturalista da literatura de testemunho e a discussão em torno do realismo mereceriam artigos exclusivos sobre conceitos ainda vigentes e vigorosos. O que Alegorias da Derrota (cujo subtítulo é A Ficção Pós-Ditatorial e o Trabalho do Luto) delineia é essa passagem do Estado para o mercado, como será exemplificado nesta conversa de maneira sintética: a percepção de que a democracia liberal é a continuação do processo que começou com as ditaduras de início dos anos 70 na América Latina, em uma análise que manteve sua relevância: “a memória do mercado – ele escreve – pretende pensar o passado em uma operação de substituição sem restos. Ou seja, ela concebe o passado como um tempo vazio e homogêneo e o presente como mera transição. A relação da memória do mercado com seu objeto tenderia a ser, então, simbólico-totalizante”. 

Recém chegado do Brasil a Nova Orleans, cidade na qual é professor da Universidade Tulane, Avelar disseca nesta entrevista o processo que levou Jair Bolsonaro ao poder em seu país. Dimensiona o erro trágico de Lula ao alentar a candidatura de Jair Bolsonaro na crença de que seu candidato, Fernando Haddad, o derrotaria. Também traça uma linha de continuidade entre a campanha de Fake News das eleições deste ano com as de 2014, que levaram Dilma Rousseff à presidência através da demonização de Marina Silva; sustenta que o processo de memória histórica e de julgamentos de responsabilidades sobre a última ditadura argentina fazem que seja muito difícil que um Bolsonaro ascenda no país e conclui que a atual derrota das esquerdas compartilha o mesmo horizonte epocal dos anos 70. 

Sobre o processo de direitização da região, como você consideraria uma atualização do seu livro Alegorias da Derrota?
Imagino que se tivéssemos que atualizar Alegorias da Derrota, primeiramente teríamos que prestar atenção em alguns processos que são especificamente nacionais e que ocorreram nos últimos 20 anos. Creio, porém, que a hipótese básica do livro continua válida: as ditaduras e o chamado processo de redemocratização não só não se opõem entre si, como são parte do mesmo processo através do qual as classes dominantes latino-americanas realizaram o que chamo de transição epocal, a transição de um modo de acumulação fundamentalmente nacional para um cenário onde não há travas substanciais para a inserção do país em um modo de acumulação global. Mas também acredito que algumas diferenças históricas nacionais deveriam ser enfatizadas e trabalhadas mais detalhadamente. Refiro-me, sobretudo, aos processos de elaboração da memória na Argentina e no Brasil, tão diferentes entre si. Acredito que no caso argentino é incorreto falar em amnésia institucional. Trata-se de um país que tem discutido seu destino nas últimas décadas sistematicamente no terreno da memória. Isso fica claro na maneira em que os governos kirchneristas se apropriaram de um discurso sobre a memória e os direitos humanos e converteram-no em política de Estado. Nada remotamente parecido ocorreu no Brasil, onde não julgamos sequer um único ditador ou torturador. Não falo de condenações, de sentenças condenatórias, mas da mera existência de um território jurídico em que a memória de um país possa ser discutida e rearticulada na polis. Esse déficit de memória, essa forma peculiarmente amnésica através da qual se produzem os fatos políticos do Brasil, nos levou a uma encruzilhada cujo emblema foi a eleição de Jair Bolsonaro, que é um personagem político que me parece impensável na Argentina. É bem possível que venha a existir uma direita dura e viável eleitoralmente na Argentina, mas não me parece que o trabalho de negação da memória que viabilizou Bolsonaro seja factível aí. 

Jair Bolsonaro representa, segundo os analistas mais destacados, uma ligação entre o Brasil ditatorial – que muitos, como o filósofo Vladimir Safatle, não consideram relacionado à onda de ajustes neoliberais – e um desmoronamento do discurso do “politicamente correto” que se associou às democracias desde o fim das ditaduras nos anos 80. O que Bolsonaro representa nesse contexto?
Primeiramente, o que mais chama atenção é o quão antineoliberal Bolsonaro foi em seus tempos de Deputado. O histórico de votação de Bolsonaro é notoriamente parecido com o da esquerda desenvolvimentista em matéria econômica. Refiro-me ao fato de que Bolsonaro já votou junto ao PT contra as medidas de desregulamentação econômica, a favor de prerrogativas corporativas do funcionalismo público, a favor das empresas estatais e em defesa de aspectos vários disso que poderíamos chamar patrimonialismo do Estado brasileiro. É um fenômeno notável e me parece que passa despercebido fora do Brasil. Tem-se prestado muita atenção nos aspectos reacionário, homofóbico, racista e quase fascista da candidatura de Bolsonaro, com boas razões, mas ele surge como representante do que chamamos de “baixo clero” no Brasil: os deputados de base que negociam a portas fechadas sua adesão às propostas da maioria que esteja liderando o Congresso naquele momento. A candidatura de Bolsonaro se apresenta como viável somente quando consegue se desvincular desse histórico de votação — que é, insisto, corporativista, pró-funcionalismo público, pró-empresas estatais, desenvolvimentista e pró-Brasil Grande.
O que mais chama atenção é o quão anti-neoliberal Bolsonaro foi em seus tempos de Deputado. O histórico de votação de Bolsonaro é notoriamente parecido com o da esquerda
Para legitimar sua candidatura e rasurar esse histórico de votação, Bolsonaro convida Paulo Guedes, um economista ultra-neoliberal, para deixar palatável sua candidatura ao mercado financeiro. Essa operação teve êxito eleitoral e viabilizou-o, mas ela ficou incompleta. Nas últimas semanas do primeiro turno, era evidente o movimento de setores do mercado na busca de uma candidatura viável que pudesse representar uma alternativa a Bolsonaro e ao lulismo. Durante meses, o mercado buscou uma candidatura que fosse mais confiável. Sua preferência era Geraldo Alckmin, do PSDB, o partido que antagonizou o PT durante 20 anos como polo de centro-direita e que segue sendo forte em São Paulo. No entanto, a candidatura de Alckmin não saía de 5 a 8 por cento das intenções de voto. O mercado teria abraçado com certa confiança a candidatura de Marina Silva, na medida em que ela era progressista em alguns aspectos, mas também muito firme na defesa de pilares macroeconômicos: o câmbio flutuante, o superávit primário e as metas de inflação. Marina se convenceu da importância do tripé econômico e teria sido uma candidatura viável para o mercado se tivesse ganhado musculatura eleitoral. Nenhuma dessas candidaturas decolou, nem mesmo a de Ciro Gomes, que é uma figura um pouco mais problemática para o mercado, porque flerta com premissas nacionalistas, estatizantes ou desenvolvimentistas, mas ainda assim seria uma figura mais confiável que a de Bolsonaro, que acarreta certa instabilidade que o mercado vê com muita desconfiança. 

Todas essas alternativas foram deslegitimadas eleitoralmente e o que presenciamos nas últimas semanas foi um mercado que tentava se convencer a si mesmo de que Bolsonaro havia feito uma conversão sincera ao neoliberalismo, sólida o suficiente para que os agentes do mercado pudessem aceitá-lo. Esse abraço do mercado a Bolsonaro não se dá sem certa desconfiança, precariedade e incerteza, e depende da convocação de Paulo Guedes como “Posto Ipiranga” que tem todas as respostas. É um exemplo notável de candidato que se elege declarando-se ignorante em economia. No período pós-eleitoral já se produziram tensões entre Bolsonaro e Guedes que explicam o porquê de esse abraço do mercado a ele continuar precário, incerto e instável. 

E como Bolsonaro foi eleito?
Nenhuma resposta acerca do que Bolsonaro representa estaria completa sem mencionar a dinâmica particular que permite que o bolsonarismo surja como força política, que é sua relação antagônica com o lulismo. Não se pode enfatizar isso suficientemente e é importante que isso seja compreendido fora do Brasil. Ainda a poucos dias antes do primeiro turno estava claríssimo que a única possibilidade de Bolsonaro ganhar o pleito era contra o lulismo. Bolsonaro sempre soube disso, pelo menos sempre apostou nisso, e se apresentou como o anti-Lula. Bolsonaro flerta com militarismo, homofobia, machismo e racismo, mas a âncora que o manteve firme foi o antipetismo, mais até que o antilulismo. O antipetismo foi a condição necessária para essa candidatura. E Lula também sempre soube disso e por isso optou claramente por não atacá-lo, por legitimá-lo, por escolhê-lo como adversário ideal para o segundo turno. O erro de calculo de Lula foi imaginar que a rejeição a Bolsonaro seria tão avassaladora que levaria à vitória de seu candidato. Isso se provou um erro trágico, irresponsável e previsível para todos os que acompanhavam com atenção o fenômeno do anti-petismo. 

Acredito que continue sendo correto dizer que qualquer uma das outras candidaturas–Marina, Ciro, Alckmin–poderia ter derrotado Bolsonaro no segundo turno com certa facilidade, mas a luta pela hegemonia dentro da esquerda, o que poderíamos chamar o hegemonismo petista, impôs um cálculo absolutamente kamikaze, suicida de Lula, que nos levou a uma eleição estranhíssima, na qual os dois principais candidatos eram também os de maior rejeição. Tivemos, então, um segundo turno com os dois candidatos mais odiados. Fernando Haddad não era pessoalmente odiado, mas passou a sê-lo na medida em que se apresentou como candidato de Lula. Essa dinâmica alçou Bolsonaro a uma condição à qual o movimento que ele representa jamais teria chegado sozinho. O petismo tem na sociedade brasileira uma característica particular: é uma força política que leva consigo seguramente uns 25% do eleitorado a qualquer movimento seu, mas também provoca o antagonismo de quase 50%. Chegou, portanto, a um ponto em que é inviável eleitoralmente para o executivo nacional, mas forte o suficiente para arrastar ao precipício qualquer alternativa a ele. Em 2018, ele optou por fazê-lo, e o resultado disso se chama Jair Bolsonaro. 

Alegorias da Derrota já discute esse eterno presente–sua edição inglesa foi intitulada Untimely Present— de uma literatura que, ancorada no boom dos anos 60-70, se constroi a partir da nostalgia. Se você chamou de derrota essa época que culminou com as ditaduras na América Latina, como se refere a esta época de retorno do conservadorismo na região? Que autores já perceberam esta nova derrota?
O título em inglês é uma historia divertida. Mais que de presente eterno, imagino que poderíamos falar de presente intempestivo. Untimely é a palavra que utilizamos em inglês para o que acontece a destempo, fora de seu tempo. Uma das razões por que não utilizei a palavra intempestivo no castelhano e no português é por ela soar demasiado acadêmica, enquanto que em inglês untimely é uma palavra comum e corrente, ao mesmo tempo em que é também a tradução utilizada para o conceito nietszcheano de Das Unzeitgemässe, que vertemos ao castelhano e português como intempestivo ou extemporâneo. O unzeitgemässe nietszchiano seria tudo que está em desacordo com o presente, que está em desacordo com o tempo, mas que também atua sobre sobre esse  tempo, apontando para aquilo que esse tempo constitutivamente teria esquecido, reprimido e silenciado. Então o untimely seria, antes de mais nada, um destempo e um contratempo, mais que uma espécie de dimensão atemporal ou transtemporal que poderíamos igualar à eternidade. Nesse sentido, essa nova etapa histórica é um outro momento da derrota epocal que descrevo no livro. A derrota ali não se limitava a um acontecimento histórico particular ou a um período histórico determinado. Ela era uma espécie de horizonte epocal das sociedades latino-americanas pós-Salvador Allende, pós-11 de setembro de 1973 ou, para dizer de outra maneira, pós-sonhos letrados do boom. Em seu caráter de horizonte epocal, mais que de um período histórico fixo e determinado, a derrota continua se manifestando entre nós; suas dinâmicas me parecem ser, em grande medida, atualizações das dinâmicas descritas no livro. Acerca dos autores que melhor vislumbraram esse novo momento, mais que na literatura experimental ou vanguardista, eu veria em autores como Cristóvão Tezza uma compreensão muito aguda dos antagonismos dos últimos 20 anos. Na Argentina penso em ficcionistas como Martín Kohan e, em uma geração um pouco posterior, em Hernán Ronsino. Trata-se de autores que de alguma maneira têm atualizado a percepção desse horizonte epocal que é a derrota. Em todo caso, eu não diria que se trata de uma nova derrota, me parece que é uma atualização da mesma derrota, ou um novo momento do mesmo horizonte epocal que estava descrito no livro como derrota. 

Em recentes especulações jornalísticas sobre Bolsonaro, surge o argumento de que a ditadura brasileira não foi de todo neoliberal e que os militares poderiam ser uma espécie de barreira que bloqueasse o abraço de Bolsonaro ao neoliberalismo. Você, que analisou o discurso com que Fernando Henrique Cardoso saudou a democracia, enxerga esse cenário como possível?
Imagino que não seria errado dizer que a ditadura brasileira não foi neoliberal. Se você dá uma olhada na construção dos gigantescos aparatos estatais de cultura, do turismo, do cinema, do planejamento regional, enfim, a ditadura brasileira possui uma dimensão que poderíamos chamar de nacional-empreendedorista que, obviamente, as ditaduras argentina e chilena não tiveram. Mas tampouco me parece errado dizer que a ditadura brasileira, assim como a argentina e a chilena, abriu caminho para a inserção do Brasil em uma ordem capitalista global, através da eliminação de toda a resistência a esse projeto. Acredito que se podem afirmar as duas coisas simultaneamente. A ditadura brasileira não tinha um projeto neoliberal, mas eliminou do corpo social aquelas forças que poderiam se opor a ele. Acredito que são distinções importantes, pois o termo neoliberal nos últimos 20 anos tem se derivado para alguns usos que não estavam muito claros no momento em que escrevi Alegorias da Derrota, mas que neste momento haveria de apontar. Em boa parte dos discursos da esquerda, o termo passou a ser um simples sinônimo de feio, chato e bobo. É um conceito a se usar com cuidado e auto-consciência. 

Portanto, sim, no caso da ditadura brasileira, deve-se sublinhar esse aspecto nacional-empreendedorista, estatizante em muitos casos e que compartilha com a esquerda lulo-dilmista um imaginário fortemente desenvolvimentista, que acredita que o Estado pode ser sempre uma força desencadeadora do crescimento. Isso é o que o período Geisel, dos anos 1970, e o período Dilma, dos anos 2010, têm em comum: a nova matriz econômica que surge com Dilma em 2012 é muito parecida com o projeto desenvolvimentista de Ernesto Geisel. Então, a entrada do Brasil na ordem capitalista global nas últimas décadas combina esses dois movimentos, um movimento estritamente neoliberal de eliminação dos direitos trabalhistas, privatização, desregulamentação dos mecanismos de travas ao mercado financeiro, enfim, uma série de medidas que seriam neoliberais, com outras medidas que poderíamos chamar de nacional-desenvolvimentistas e que continuam dominantes na esquerda brasileira, tão dominantes que em sua maioria a esquerda brasileira sequer começou a refletir sobre as possíveis responsabilidades do nacional-desenvolvimentismo de esquerda na instalação de uma ordem dominada e hegemonizada pela direita, que é a ordem pós-2018. 

Você poderia falar sobre os vários imaginários que disputam por narrar o Brasil: um carioca, outro mais despojado, como o de Joaõ Gilberto Noll e assim por diante? Como esses imaginários deságuam em Bolsonaro?
Uso aqui imaginário no sentido mais pedestre de conjunto de imagens. Nesse sentido, poderíamos dizer que estão em disputa diferentes imaginários políticos nas formas de narrar o Brasil nos últimos anos. Uma possibilidade é essa que você apontou na pergunta, imaginários regionais que estão em luta e muitas vezes em processo violento de colonização um sobre o outro. Poderíamos pensar, por exemplo, que existe um imaginário amazônico na cultura brasileira que foi soterrado ou colonizado na ditadura militar, com sua concepção da Amazônia como território a ocupar. A ditadura concebeu a Amazônia como território vazio e colônia energética que, ao ser incorporada à pátria, serviria a um projeto de Brasil Grande. Essa disputa entre imaginários, essa colonização de uns imaginários por outros, é um processo que se desdobra na ascensão de Bolsonaro. Em Bolsonaro se combinam imaginários reativos e não apenas reacionários; eles têm tanto uma dimensão histórica como outra que poderíamos chamar de “comportamental”. Por um lado, como todos os fascismos, o bolsonarismo nos propõe uma era de ouro. Ele já chegou a dizer que seu projeto era retroceder o Brasil em 50 anos, a uma época em que o cidadão de bem podia sair de casa sem temer a violência, em que se cumpria a lei etc. Há então, por um lado, um imaginário reacionário que se combina com, por outro lado, um imaginário reativo. Boa parte dos laços de pertencimento que o bolsonarismo consegue articular no interior da sociedade brasileira se relacionam com reações a processos que poderíamos chamar de emancipatórios e identitários–contraditoriamente emancipatórios por serem identitários—de que foram protagonistas setores das populações negra, LGBT, feminina e indígena. Essa combinação entre um retrocesso histórico e uma reação comportamental explica a penetração e o enraizamento que o bolsonarismo teve na sociedade brasileira. E isso deve ser enfatizado: o bolsonarismo é um fenômeno popular, uma reação enraizada na sociedade brasileira, que mobilizou uma parcela considerável não só da classe média, como também das classes populares. 

Eu li em Franco Berardi uma citação de Marshall McLuhan que dizia que “quando a simultaneidade substitui a sequencialidade—ou seja, quando a enunciação se acelera sem limites–a mente perde a capacidade de discernimento crítico e passamos, a partir dessa condição, a uma neomitologia.” Houve muito dessa “narrativa” chamada fake news nas eleições do Brasil, difundidas pelas redes e pelo WhatsApp. Você acredita que o estado atual das coisas teria suplantado de alguma maneira o pensamento crítico e histórico?
Sem dúvida, a oposição entre pensamento crítico e mitológico é uma vertente possível para pensar as novas formas de discurso público. Eu começaria questionando essa própria distinção, na medida em que as forças sociais que têm recorrido nos últimos anos à noção de pensamento crítico não estão muito atentas, me parece, às dimensões mitológicas do seu próprio pensamento. Se tomamos a eleição de Bolsonaro e o papel das fake news nessa eleição, o que mais chama atenção não é o caráter inovador do fenômeno, mas as linhas de continuidade com o discurso dominante da campanha eleitoral de 2014, a saber, o discurso dilmista sobre como sua coalizão–que incluía Michel Temer, não nos esqueçamos–, era a guardiã da reflexão crítica sobre a desigualdade social brasileira.
Sem dúvida, a oposição entre pensamento crítico e mitológico é uma vertente possível para pensar as novas formas de discurso público
A campanha de 2014 também foi caracterizada pelas fake news, apesar de que não existia o termo fake news na época. O dilmismo impôs, por exemplo, à liderança ambientalista de Marina Silva a imagem de entreguista neoliberal sabotadora da ascensão social dos pobres. Foi um verdadeiro massacre propagandístico liderado por João Santana, o marqueteiro de Dilma. Há semelhança entre o que fez o lulo-dilmismo a Marina–acusada não só de neoliberal, mas também de fundamentalista–e o que Bolsonaro fez ao lulo-dilmismo em 2018, embora o veículo fundamental na campanha de 2014 tenha sido a televisão e, até certo ponto, as redes sociais como o Facebook e o Twitter, e o veículo principal da campanha de Bolsonaro tenha sido o WhatsApp. Então, para retornar ao problema do crítico versus o mitológico, poderíamos dizer que 2018 no Brasil representou o momento de derrota de um discurso fortemente atravessado por mitos não questionados, mas que se apresentava como guardião da reflexão crítica. Esse discurso foi derrotado. Não está derrotado todo o legado lulista, mas foi derrotado um aspecto peculiar desse legado, a forma como o lulo-dilmismo se imaginou a si mesmo como depositário exclusivo de uma concepção crítica de país. O que a situação atual nos exige seria questionar melhor o estabelecimento da fronteira entre essas duas dimensões que você cita, a crítica e a mitológica. 

Na sua obra, você soube descrever como se reformularam nos últimos tempos o papel dos intelectuais. Como definir o papel deles hoje em dia?
No Alegorias da Derrota trabalhei com a premissa de que o horizonte epocal representado por essa transição que, simplificando, era do Estado ao mercado, eliminava a função reitorial dos intelectuais e os instalava em um terreno em que deveriam lutar contra sua transformação em técnicos. A oposição tradicional entre ideólogos e intelectuais era deslocada para uma nova oposição, agora entre técnicos e intelectuais, em um contexto em que a necessidade laboral permanentemente transformava intelectuais em técnicos. Nos últimos 20 anos essa dinâmica se acentuou. Limito minhas considerações à universidade brasileira, onde a notável expansão universitária dos anos Lula se ancora em uma série de fundamentos que intensificam a dimensão puramente técnica do trabalho intelectual. O lulismo expande a universidade brasileira basicamente através de três pilares: o primeiro, que é fundamental para o aumento da população que consegue chegar às universidades, sustenta-se por programas de transferência do erário público para os empresários do ensino privado ou por bolsas a alunos também do ensino privado. O ProUni e o ReUni, responsáveis pela entrada de centenas de milhares, se não milhões de jovens brasileiros ao sistema de ensino superior privado, se baseiam na premissa de que o Estado garantirá, através de bolsas e programas de transferência de renda, o diploma de ensino superior às classes populares brasileiras. Não se pode desprezar o papel simbólico que teve Lula ao impulsionar essas medidas. Nos anos de maior entusiasmo popular com o lulismo, um dos atributos mais fortes de seu discurso era a celebração dessa novidade: “Sou o primeiro de minha família a me formar em uma universidade, o primeiro a receber um diploma de curso superior”. Essa dimensão simbólica teve um impacto tremendo no Brasil, que talvez não seja muito visível na Argentina, um país que foi alfabetizado muito cedo, em que o processo de alfabetização se resolveu muito antes e de maneira mais completa. No Brasil, a força desse discurso de Lula sobre a entrada de uma primeira geração de pobres e negros à universidade teve um peso enorme na legitimação do lulismo. Por outro lado, as circunstâncias econômicas produzidas pelo próprio lulismo convertem esse corpo laboral diplomado em um exército de técnicos de baixa qualificação buscando inserção no mercado. 

Essa é a primeira dimensão: o repasse de fundos públicos a empresários do ensino privado. A segunda dimensão: a expansão dos campi das universidades federais, que é notável durante o lulismo e que explica de certa forma a força que o lulismo exerce dentro da academia brasileira, entre os professores e também entre os alunos. A terceira dimensão são as cotas raciais, um fenômeno que cuja relevância não se pode ignorar no legado universitário lulista. Porém, apesar disso tudo, essa expansão desenfreada do período lulista se chocou com os limites do próprio modelo desenvolvimentista que viu seu colapso definitivo nos anos Dilma e que transformou essa população de recém formados em um espécie de precariado intelectual. Aqui me refiro ao conceito do sociólogo brasileiro Ruy Braga no livro Política do Precariado, no qual ele estuda essa nova classe social, emblemática dos anos Lula e que já foi chamada de batalhadores ou de nova classe C: um exército de reserva do setor de serviços caracterizado por forte precariedade e combinação de trabalho intelectual e trabalho manual de uma maneira que submete qualquer dimensão intelectualmente independente à mera execução técnica. Portanto, ao analisar a atualização do problema intelectuais versus técnicos, creio que poderíamos dizer que não temos uma mudança, um distanciamento do horizonte que descrevi em Alegorias da Derrota, mas uma intensificação e realização completa dessa dinâmica de transformação epocal dos intelectuais em técnicos. 

Em Letter of Violence, você aponta para as figuras de violência do Estado e analisa sua legitimidade, além de sua legalidade (“formas de violência que seriam cúmplices do horror, da acumulação original, da submissão de milhões de seres humanos para o ganho de alguns, por oposição a formas de violência que aspiram a supressão desse horror”). Você pode discorrer sobre como as democracias liberais que sucederam as ditaduras limaram a legitimidade dessa segunda forma de violência enquanto legitimavam a primeira?
Acredito que você está certo quando aponta que as democracias das últimas décadas procederam a legitimar a primeira forma de violência, que poderíamos chamar de violência originária, e a deslegitimar a segunda, que poderíamos chamar de violência revolucionária. De resto, essa distinção é tão precária, que inclusive pessoas como eu, que refletiram sobre ela e não confundimos as duas formas de violência, nos pegamos, durante a campanha eleitoral de 2018, falando em termos quase arendtianos sobre o tema, implorando diretamente às pessoas que tivessem cuidado com qualquer discurso ou atitude que pudesse estimular violência física nas ruas, algo que passou a ser um temor muito real entre nós. Isso me fascina pois, por um lado, é evidente a distinção entre essas formas de violência e também é claríssimo o processo de legitimação da violência fundante da desigualdade e de deslegitimação das formas de insurreição violenta que a aspiram mitigação ou eliminação dessa desigualdade. Por outro lado, há uma dimensão bastante pragmática do problema da violência, que nos obriga em vários momentos a realizar uma escolha visível pela recusa de todas as formas de violência, sem distinção entre elas. 

Em certo sentido, volto a uma distinção que trabalhei em Figuras da Violência e que vem de Walter Benjamin, que é a de violência instauradora da lei e mantenedora da lei. O que Bolsonaro fez com essa distinção é interessante, porque legitima todas as formas de violência que supostamente se ocupam de manter a lei. Qualquer ação de um agente estatal está legitimada de antemão, ainda que seja um assassinato a sangue frio. Ao mesmo tempo, oculta-se por completo o fato de que a violência mantenedora da lei, a policial, atua com frequência fora de toda lei, atua de forma a inventar uma nova lei em cada ação. O emblema disso no Brasil é o que chamamos de “autos de resistência”, que são documentos que legitimam assassinatos cometidos por policiais militares ao pintar  um cenário em que a vítima teria apresentado algum tipo de perigo ao agente estatal, que se viu obrigado a utilizar da força letal. Os autos de resistência são uma legitimação prévia da violência estatal e a lógica que os preside teve papel importante na campanha de Bolsonaro em torno dos chamados “excludentes de ilicitude”, que são nada menos que autorizações prévias para matar, concedidas ao Estado. 

Na Argentina pressupomos que os julgamentos dos crimes de lesa-humanidade retomados em 2006 salvam de alguma forma este país da ascensão de um Bolsonaro. Porém, sem manchar em nada a validade histórica dos julgamentos, eles tampouco vieram a questionar a continuidade da tirania do capital financeiro entre ditadura e democracia, como de algum modo você postula nas Alegorias (assim como outras vozes que apontaram esse aspecto acerca desses julgamentos). Como você analisa esses julgamentos na cultura argentina e na da região?
Creio que é correto pressupor que o processo de julgamento de ditadores e torturadores argentino colocou vocês em uma posição na qual o surgimento de um Jair Bolsonaro é, senão impossível, altamente improvável. Não se pode relativizar isso, não se pode desenfatizar isso, não se pode deixar de ter uma apreciação intensa desse processo de julgamento de torturadores, precisamente porque temos o horizonte comparativo do Brasil como país que não realizou nenhuma dessas tarefas. Isso é algo notável no Brasil não apenas porque não fizemos nada do que foi feito na Argentina, como sequer fizemos o que foi feito no Chile, algo bem mais tímido e limitado no que se refere à responsabilização. No Brasil, conseguimos não fazer nada e temos instalado como dominante, inclusive durante os governos de esquerda, o imaginário econômico da ditadura, o imaginário desenvolvimentista, colonizador da Amazônia e nacional-estatista, nacional-grandioso que teve a ditadura brasileira. Portanto, partindo do ponto de vista brasileiro, isso seria a primeira coisa que eu sublinharia: a importância de não perder de vista o impacto cidadão, não apenas simbólico, mas também pragmático, político e efetivo dos julgamentos. Eu não seria a melhor pessoa para analisar até que ponto os julgamentos conseguiram ou não questionar o vinculo do instrumental mortífero da ditadura com o horizonte do neoliberalismo duro que se impõe nos anos 1990 com Menem, mas creio de alguma maneira que a tarefa que se delineia para vocês é muito mais avançada, pode-se dizer, que a tarefa que temos no Brasil, que é basicamente voltar ao ABC da memória. Alguns amigos argentinos têm mencionado o novo ciclo de direitas no continente e às vezes demonstravam preocupação que algo como um Bolsonaro pudesse emergir na Argentina. Demonstravam preocupação de que o Brasil poderia ser em alguma medida a antecipação de um processo que pode vir a  suceder na Argentina. Posso me equivocar, mas não acredito que este deva ser o principal medo que devamos ter neste momento, não penso que esse é o horizonte com que se deve trabalhar agora. Acredito que vale mais a pena entender algumas tarefas básicas executadas na Argentina e ignoradas no Brasil e que a dinâmica política de cada um de nossos países responde não somente a um horizonte global comum como também a diferenças nacionais agudas. Em vez de entender o Brasil como algo que viria a antecipar a Argentina, prefiro, a partir do Brasil, continuar prestando atenção na Argentina como um país onde algumas das tarefas mais urgentes que nos envolvem tiveram resultado se não de uma maneira completa, definitiva e incontestável, pelo menos de forma suficientemente contundente para que o horizonte político da Argentina seja um pouco menos catastrófico que o do Brasil.     
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* Escritor. Crítico literário. Jornalista.
*Publicado em espanhol na Revista Rea.Tradução de Gabriel Caio Correa Borges
Fonte:  https://cultura.estadao.com.br/blogs/estado-da-arte/o-horizonte-da-derrota-entrevista-com-idelber-avelar/ 22/02/2019