sábado, 9 de fevereiro de 2019

HÁ FORÇAS CONSERVADORAS TODA VEZ QUE SURGEM FORÇAS DE RENOVAÇÃO

 Tatiana Salem Levy* 
 
Quando a situação política em nosso país 
se mostra contrária a tudo aquilo em que 
acreditamos, melhor ficar ou partir? 
Esperar, resistir ou buscar a utopia 
em outra terra? Até que ponto vale 
a pena abrir mão da vida pessoal por 
um sonho de mundo melhor?

Na segunda metade do século XIX, em Saint-Imier, um pequeno vilarejo suíço, dez jovens mulheres tomam conhecimento do movimento anarquista quando Bakunin aparece para um congresso, enchendo os cafés de curiosos. Suas ideias incendeiam as mentes dessas dez trabalhadoras da recente indústria relojoeira, despertando nelas o desejo de construir uma sociedade sem Estado. Esse desejo as levará para longe: primeiro para Punta Arenas, depois para o arquipélago de Juan Fernández, em seguida Buenos Aires, até o exílio de Valentine Grimm no Uruguai. Nascida em 30 de novembro de 1845, é ela quem narra "Dix petites anarchistes" (Dez meninas anarquistas, Ed. Buchet Chastel), romance de Daniel de Roulet, em formato documental. Como na cantiga popular "Os dez negrinhos" - que nos choca hoje em dia, mas corresponde à época colonial da narrativa -, das dez mulheres sobra apenas Valentine. A partir de um caderno verde feito por elas ao longo das décadas para "preencher as lacunas da memória", a sobrevivente narra a vida das outras nove, numa espécie de testamento político.

Com a coragem de quem deixa tudo para trás, essas meninas fazem uma longa travessia, partindo da velha Europa rumo ao novo continente. Décadas depois, Valentine decide relatar essa história, "sem mentir muito", para mostrar "o quanto custa reinventar o mundo". O quanto custa seguir seus ideais até a longínqua Patagônia ou a ilha de Robinson Crusoé para criar uma comunidade "sem Deus, nem chefe, nem marido". O que resta à testemunha senão a palavra? "Éramos dez, e no fim apenas uma", assim começa o romance, anunciando desde o princípio que apenas Valentine, "a última das dez emigrantes", permanecerá viva e, por isso mesmo, cabe a ela o testemunho sobre quem lutou ao seu lado.

Escrever, deixar um testemunho, é uma vitória: a vitória da palavra sobre o tempo. No entanto, nem sempre a história narrada traz a alegria do sucesso. Sabemos de antemão que o destino levará as nove mulheres a um fim antecipado. A solidão de Valentine é tal que nem mesmo Mathilde Basswitz, a mais jovem de todas, permaneceu para testemunhar ao seu lado. Mathilde é filha do dr. Hermann Basswitz, médico judeu, cidadão alemão, que logo no início do relato se torna um exilado político, cassado pelo governo, mas defendido pelo povo. Se Bakunin é o grande encontro que desponta nas meninas o desejo de um mundo livre, o ocorrido com o dr. Hermann em 1851, quando Valentine tinha apenas seis anos de idade, foi o motor do ideal de uma sociedade mais justa.

Certos acontecimentos ficam marcados na história por configurarem o início de uma nova era. O caso Dreyfus, também no século XIX, é um deles. O assassinato do estudante Edson Luís durante a ditadura militar no Brasil é outro. O assassinato de Marielle 11 meses atrás poderá ser mais um desses casos - só o tempo dirá. No romance, é o exílio do médico judeu que revela aos cidadãos desse vilarejo suíço a intolerância e o autoritarismo de um Estado que não ouve a população.

É por isso que a ideia de uma sociedade sem Estado surge como utopia para as meninas, em seguida mulheres, que se aventuram pelo Oceano Pacífico, chegando sem nada - a não ser a esperança - numa terra árida, ventosa, onde a neve não dura como nos alpes: a Patagônia chilena. "A sociedade contra o Estado", diria o título da obra mais conhecida do antropólogo e etnólogo Pierre Clastres, resultado de uma intensa convivência com tribos indígenas sul-americanas entre 1962 e 1974. As tribos que ele observa não são apenas sociedades sem Estado, mas sociedades contra o Estado. Nelas, tudo se organiza de forma a impedir o nascimento de uma entidade exterior à comunidade. Daí as inscrições nos corpos: "A lei, inscrita nos corpos, é a recusa da sociedade primitiva em correr o risco da divisão. Cruelmente ensinada, é uma proibição de desigualdade de que todos se recordarão: você não vale menos do que qualquer outro, você não vale mais do que qualquer outro".

É o que confirma Sexta-Feira, o índio Mapuche de quem as protagonistas se tornaram amigas na ilha de Robinson Crusoé, ao afirmar: "Eu não sei se morreria pela anarquia, nós, os Mapuches, nunca precisamos de Estado, a república é uma ideia importada pelos colonos". A ilha de Robinson Crusoé é também a ilha de Thomas More, o não-lugar onde se constrói a sociedade perfeita. Ou melhor, onde nunca se constrói a sociedade perfeita - inviável, como demonstra o relato de Valentine. A narradora e sobrevivente é aquela que nunca acreditou de fato, nem na emigração, nem na utopia, nem na anarquia. Sinal de que mais vale não ter esperança e viver até o fim para contar? Ou melhor morrer na glória da revolução e de seus ideais, deixando a palavra para quem fica?

Nessa ilha do arquipélago Juan Fernández, os anarquistas vivem "sem nenhum pacto, sem nenhuma norma de trabalho, nenhum código moral. O primeiro ou a primeira a acordar  desperta os outros, só o apetite os leva ao refeitório, a paixão ao trabalho, o sono ao repouso". A busca por esse mundo ideal e idealizado foi o que levou as dez mulheres a deixarem a Suíça e se aventurarem por mares desconhecidos. A Europa que hoje refuta a imigração em seu território já foi grande produtora de emigrantes. Para as Américas, vieram trabalhadores da Polônia, da Suíça, da Itália, de Portugal... Todos eles aparecem no romance no Hotel dos Imigrantes, em Buenos Aires, a única cidade grande para onde vão as mulheres que não ficaram pelo caminho.

Parte da reconstrução da narrativa vem da correspondência entre os que partem e os que ficam. O próprio autor, Daniel de Roulet, diz que se inspirou nas cartas de emigrantes a que teve acesso. Nessas cartas, o sonho muitas vezes terminava ainda no navio, como foi o caso de Émilie, que deu à luz em pleno oceano antes de morrer. Colette e Juliette,
casal de namoradas, foram as primeiras a partir. As outras receberam por carta a notícia de que haviam sido mortas por estrangulamento. Sinal de que nas Américas, ao contrário do que imaginavam, nem toda forma de amor era livre?

São as cartas que desmistificam o sonho de um lugar ideal, "para onde se partia pobre, e de onde se voltava rica". E se elas não querem assumir o fracasso para os que ficaram também têm o cuidado de não cantar uma realidade que não existe, para não incentivá-los a entrar em outro navio.

Mas essas mulheres são fortes. Têm que lutar não apenas contra o Estado, mas também contra o estado das coisas - o fato de ganharem um quarto do que ganham os homens; de serem consideradas prostitutas cada vez que chegam num lugar desacompanhadas; e ainda a mentira das promessas que faziam com que trabalhadores pobres da Europa viessem buscar um pedaço de terra por aqui. O que encontravam não se parecia nada com o panorama pintado. "Nosso sonho de uma vida diferente se distanciava", constata Valentine na Patagônia.

Entre a emigração, a utopia, a luta das mulheres, o livro aponta ainda para o extermínio das populações indígenas nas Américas e para a sua aculturação forçada. Sobre os Ona, primeiros habitantes de Punta Arenas, afirma a narradora: "Acusados de não respeitar a propriedade privada, estão em vias de desaparição, sendo assassinados com frequência". Será que já ouvimos isso em algum lugar? Que ainda hoje, em pleno século XXI, continuamos a ouvir o que Valentine dizia no século XIX?

A história se repete, infelizmente. Há forças de conservação - conservadoras - toda vez que surgem forças de renovação, como a das dez meninas anarquistas do livro. É nesses momentos que mais devemos estar atentos e fortes. Não desistir, não se render. "Não precisamos da vitória para manter a esperança", afirma a narradora de uma história cujo sentido é mesmo este, não perder a esperança, acreditar nos nossos ideais e defendê-los, ainda que a maré não esteja para peixe.
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*Tatiana Salem Levy é uma escritora brasileira. Atualmente, vive entre Rio de Janeiro e Lisboa. Desde maio de 2014, é colunista do jornal Valor Econômico.

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