Leneide Duarte-Plon é uma conhecida
jornalista brasileira que vive na França. Continuamente envia análises
cuidadosas da situação social da França e também sobre a nossa situação
brasileira. Publicamos este seu artigo, pois, nem todos conhecem o que
está por detrás no movimento dos “coletes amarelos” (gilets jaunes) que
já há meses todos os sábados se manifestam em quase todas as cidades
francesas. Ai emerge uma nova consciência acerca da injustiça das
desigualdades sociais e contra a irracional acumulação mundial do
capital em nível mundial num pequeníssimo número de pessoas. Mesmo em
nosso pais, segundo o especialista nesta área, Márcio Pochmann,”os 10%
mais ricos da população impõem, historicamente, a ditadura da
concentração, pois chegam a responder por quase 75% de toda
riqueza nacional enquanto os 90% mais pobres ficam com apenas 25%.” A
desigualdade brasileira (injustiça social) comparece como uma das mais
altas do mundo. Quem sabe os pobres, os marginalizados e os feitos
invisíveis um dia despertem como na França “os coletes amarelos” e saiam
à rua reclamando menos acumulação em poucas mãos e mais igualdade
social. A França que, em muitos temas sociais, se antecipou no mundo,
pode nos inspirar. O título do artigo de Leneide Duarte-Plon leve este
título: “Uma revolta francesa: o povo contra o ‘Presidente dos ultra ricos”: Lboff
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Todos os dias os jornais franceses trazem análises sobre o movimento social que agita o país há quase três meses.
Como os «sans culotte» da Revolução Francesa, os coletes amarelos
(gilets jaunes) pretendem mudar o país no sentido de mais igualdade
fiscal e mais participação popular nas decisões importantes da
République. Além de mais poder aquisitivo, eles pretendem aperfeiçoar a
democracia representativa, aumentando a participação do povo na gestão
do Estado e do orçamento público. Isso é unanimemente reconhecido.
Dois textos publicados no jornal «Libération» dão algumas chaves de compreensão do movimento, que começou em 17 de novembro.
Publicados com quatro dias de intervalo, no primeiro, dia 25 de
janeiro, o decano dos jornalistas políticos, Alain Duhamel, analisava os
paradoxos franceses que levaram a essa crise duradoura entre o
presidente e o povo, que sai às ruas todo sábado desde novembro. Muitos
votaram em Emmanuel Macron.
«A França tem na Europa o primeiro lugar na contestação social. As
pesquisas mostram que o país é, entre os europeus, onde se vê mais
descontentamento, pessimismo e constestação. Isso é paradoxal pois a
França é o país ocidental, juntamente com a Escandinávia, que tem o
orçamento social mais elevado, o escudo social mais amplo e a proteção
social mais ambiciosa», escreveu Alain Duhamel no «Libération».
Segundo ele, o cidadão francês é um contestador por excelência. E a
preocupação com a igualdade, a força como é vivido o sentimento de
injustiça, a detestação dos privilégios, o rancor diante das
desigualdades, além do ódio que o povo tem dos ricos são sentimentos
muito mais acentuados na França.
A História e a Revolução Francesa explicam.
O presidente dos ultra-ricos numa entrevista no mesmo jornal, os
respeitados sociólogos de esquerda Monique Pinçon-Charlot e Michel
Pinçon, falam do livro que acabam de lançar, «Le Président des ultra-riches».
Eles dizem que Macron faz tudo para apressar a agenda neoliberal de
reformas. Isso revela, segundo eles, a pressão exercida pelos poderosos,
ricos e acionistas, «que utilizam o dinheiro como arma de poder e
divisão dos indivíduos».
Monique e Michel Pinçon salientam a unidade que o movimento conseguiu
manter até hoje, com núcleos ativos em todas as grandes cidades
francesas e representantes de vilarejos de todo o país. Como sociólogos,
nunca imaginariam que um movimento social como este pudesse surgir. Foi
uma grata surpresa.
«Com Macron, as imposturas vêm em cascatas. Além da supressão do
Imposto de Solidariedade sobre a Fortuna (ISF), logo no início do
mandato, ele criou depois um imposto único para os lucros do capital
(PFU-Prélèvement Forfaitaire Unique ou flat-tax). Ora, os ricos foram
dispensados da progressividade do imposto sobre os lucros e dividendos.
Impondo uma taxa fixa, Macron iguala o bilionário ao pequeno investidor
que possui um pequeno lote de ações», explicam os dois sociólogos.
O jovem presidente, que destilou nos dois anos de mandato pequenas
frases de desprezo pelo povo, representa aos olhos desse povo mais
humilde a elite dos ricos e privilegiados, aquela que é objeto dos
estudos de Monique Pinçon-Charlot e Michel Pinçon.
«A maneira de ser e de governar de Emmanuel Macron é muito ligada ao meio no qual ele evolui : o do poder e do dinheiro», dizem.
Reforma fiscal
Em um artigo no «Le Monde», Thomas Piketty detalhou há alguns meses
como a reforma fiscal feita por Macron pode ser comparada à que Trump
instituiu : os ricos são os grandes beneficiários.
Os coletes amarelos exigem uma reforma fiscal mais igualitária, além
de uma reforma do sistema político e maior participação dos cidadãos nas
decisões políticas.
Por isso, é uma grande tolice, senão total ignorância, compará-los
aos movimentos da extrema-direita europeia, como o fez o ex-presidente
Fernando Henrique Cardoso, em recente encontro na Maison de l’Amérique
Latine.
Seria também um reducionismo analisar o movimento ao anúncio do
aumento do combustível, a «taxe carbone», que iria ser usada para a
transição energética ecológica. Depois do início dos protestos, o
governo voltou atrás e suspendeu essa taxa, aproveitando para anunciar
algumas medidas paliativas.
Mas os coletes amarelos não voltaram para o calor dos seus lares.
Enfrentam frio e neve toda semana para expressar a cólera de quem se
sente injustiçado num país onde as desigualdades começam a aumentar.
Lei controvertida
Os coletes amarelos têm uma agenda muito ampla, que foi sendo
compreendida à medida que as reuniões e manifestações se sucediam. O
movimento é um grito popular por mais participação cidadã, que ainda
pode ser aperfeiçoado, segundo a maioria dos franceses.
As pesquisas mostram que o movimento tem o apoio da maior parte dos
cidadãos, apesar de todos condenaram as degradações materiais contra
lojas e bancos, alvos do pequeno grupo de anarquistas militantes muito
bem doutrinados em livros contra o Estado e qualquer tipo de poder. Além
deles, há membros da extrema-direita, que se infiltram em todas as
manifestações dos coletes amarelos para provocar danos materiais. Esses
grupos, de extrema-esquerda ou de extrema-direita visam a desestabilizar
Macron, «o presidente dos ricos».
Para prevenir quebra-quebra no fim das manifestações, o governo
propôs uma lei de controle dos manifestantes. Pessoas suspeitas seriam
proibidas de participar das manifestações. Um deputado comparou essa
medida às leis reacionárias do regime de Vichy.
Exagero ou não, se for aprovada, será mais uma lei liberticida.
Do Banco Rothschild ao Eliseu
Churchill costumava dizer que «um país que tem mais de 300 tipos de queijos é ingovernável».
O jovem e determinado Emmanuel Macron, eleito aos 39 anos, está se
debatendo com uma realidade muito mais difícil do que previra, ao se
candidatar em 2017 ao primeiro cargo eletivo de sua vida.
Ao vencer a candidata de extrema-direita, Marine Le Pen, ele
empreendeu um aprendizado diário do poder, com o qual já convivera
intimamente como um dos conselheiros do presidente Hollande e depois
como ministro da Economia.
No livro do ex-presidente «Les leçons du pouvoir», lançado no ano
passado, Hollande analisa a «traição» que representou a candidatura do
ex-ministro que criou seu próprio movimento «En marche» e depois o
partido «La République en marche», inviabilizando a candidatura
Hollande.
«Quando ele veio me assessorar no Eliseu, trocou um salário
mirabolante no Banco Rothschild por um dez vezes menor. Talvez esse
sacrifício fosse um investimento de futuro…», escreve Hollande que deve
se sentir vingado com a grande crise política e social enfrentada pelo
presidente Macron.
Além de tomar medidas imediatas para melhorar o poder aquisitivo dos
franceses mais vulneráveis, Macron convocou o Grand Débat, que vai durar
até março e durante o qual o presidente se desloca a pequenas cidades e
debate face a face ouvindo reclamações e reivindicações de franceses,
que fazem passeatas com os coletes amarelos ou não.
Por outro lado, o presidente fez diversas reuniões com prefeitos de
cidades grandes e pequenas de toda a França para ouvir as principais
reivindicações e responder a elas. Paralelamente, vem recebendo os
chefes de todos os partidos representados no Parlamento.
Desde o início do movimento, as centenas de prefeituras de toda a
França abriram os «Cahiers de doléances» (Cadernos de reclamações), tais
quais na Revolução Francesa, quando os cidadãos vinham defender suas
reivindicações políticas e sociais.
Os coletes amarelos esperam do presidente uma resposta política e não
policial. Endurecendo a repressão contra os manifestantes, a polícia
confunde os «casseurs» – que aparecem em grupos bem organizados para
quebrar agências bancárias e lojas de luxo – com os coletes amarelos que
protestam pacificamente.
O jornalista David Dufresne vem fazendo um trabalho minucioso de
denúncia das violências policiais. Até meados de janeiro, já havia 94
feridos gravemente e 14 pessoas tinham perdido um olho devido ao uso do
Flash Ball, uma arma também chamada LBD (Lanceur de Balle de Défense).
As feridas na cabeça e nos corpos de manifestantes pacíficos feitas
por essa arma são impressionantes e cresce o movimento para impedir o
flash ball.
A França é o único país da União Europeia em que ele é utilizado.
Mais um paradoxo do «País dos Direitos Humanos», como a França é
reconhecida no mundo por estar na origem da redação da primeira
Declaração Universal dos Direitos Humanos.
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Fonte: https://leonardoboff.wordpress.com/2019/02/07/os-coletes-amarelosna-franca-contra-o-presidente-dos-ultra-ricos-leneide-duarte-plon/
Imagem da Internet
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