"Se olharmos a ação litúrgica e o cuidado com a natureza a
partir dessa perspectiva “eucaristizante” compreenderemos o grande
impacto que situações como Brumadinho, Mariana, mas também cada pequeno ato de ofensa à natureza, nossa casa comum, exercem sobre a vida litúrgica da Igreja."
A reflexão é de Guto Godoy, artista sacro. Bacharel em artes visuais pelo Centro Universitário Belas Artes de São Paulo. Estudou no ateliê de Cláudio Pastro, o mais renomado artista sacro brasileiro. Ilustrou livros e realizou pinturas em diversas igrejas pelo Brasil. Em 2017 executou o projeto interno e afrescos na igreja Santa Paulina na favela do Heliópolis/SP, marca dos 100 anos da Arquidiocese de São Paulo. Atualmente cursa Arquitetura e Arte para a Liturgia no Pontificio Ateneo Sant’Anselmo, em Roma.
Eis o texto.
25 de janeiro de 2019, solenidade da conversão de São Paulo Apóstolo, a barragem de rejeitos da empresa de mineração Vale se rompe na cidade de Brumadinho, em Minas Gerais.
Lama, casas destruídas, 34 mortes confirmadas e outras 252 pessoas
desaparecidas até o momento em que escrevo. Um cenário de destruição
desolador!
Todo um ecossistema destruído!
Tudo isso poderia ser dado como desastre natural se a causa de tal
destruição não fosse a ganancia do ser humano, sua obsessão por lucro e
sua total incapacidade de “cultivar e guardar a criação” (Gn 2, 15) afim
de explorar a natureza até suas últimas possibilidades.
Porém o que tudo isso possui de relacionável com a liturgia da
Igreja? Talvez em um primeiro olhar nada possa apresentar tal relação,
mas, se olharmos de maneira mais profunda, poderemos encontrar grandes
possibilidades de relacioná-las.
Cultivar e guardar a criação são as obrigações do ser humano quando
Deus o cria e o coloca no jardim dando-lhe a missão de dominar sobre os
seres criados, mas tal dominação não se dá no campo da opressão, da
destruição, do uso dos recursos naturais até o seu esgotamento. A missão
de dominar deve ser compreendida a luz do versículo 15 do 2º capitulo
do Gênesis: cultivar e guarda. A dominação da qual fala
o capítulo 1, é a atitude de ser co-criador, dividindo com Deus a
tarefa de criar. Repetidas vezes vemos nos mosaicos das antigas
basílicas, a cena de Adão nomeando os animais. Nomear é dar existência, e, com isso, partilhar da missão criadora de Deus.
Entretanto, a cobiça, a avareza, a ganância entram no ser humano e
passam a destruir a obra realizada pelo Criador. Sucumbindo à tentação, o
ser humano perde o seu lugar no jardim e é expulso, já não pode cuidar
da criação, pois se crê com maior valor do que toda ela, já não se
entende mais como uma parte do grande cosmos criado por Deus... E tem
vergonha...
Quando o tempo se cumpre o Pai envia o seu filho para realizar por
sua vida, morte e ressurreição a reconciliação de toda a criação,
especialmente do gênero humano. Todo o cosmos é redimido pela entrega do
Senhor na Cruz e com ele ressuscita do sepulcro. É ele o novo Adão, o primogênito da nova criação! Temos então a gênese da liturgia da Igreja, que brota da morte e da ressurreição do Cristo.
Quando a comunidade cristã se reúne para a Eucaristia, são os dons da
criação que ela apresenta ao Pai, pelo Filho, no Espírito. Pão e vinho,
simples elementos naturais, sem grande valor monetário, mas que se
tornam os mais valiosos alimentos para quem caminha nesse mundo.
Apresentamos a Deus, o fruto da terra e do trabalho humano, dons de sua
bondade, resultado de suas mãos criadoras. Como nada mais podemos fazer,
a Igreja invoca a ação do Espírito para “eucaristizar” os dons e
convertê-los no corpo e no sangue do Senhor. Segundo o teólogo ortodoxo Ioannes Zizioulas,
os dons do pão e do vinho levam consigo toda a dimensão criatural, não
são apenas eles mesmos, mas são sinais de toda a criação que se
apresenta ao Pai como oblação no seu filho Jesus. São a
totalidade da criação colocados sobre o altar afim de que o Espírito se
derrame sobre eles, mas também sobre todo o universo, “eucaristizando”
todas as criaturas.
Já na Igreja primitiva, a ação litúrgica compreendia uma santificação
da matéria e do tempo, fossem nos sentidos da comunidade celebrante
quanto os dons eucaristizados e neles apresentava preces pelo clima,
pela abundância dos frutos, pelo trabalho. Assim “reofertavam” a Deus os
dons de sua bondade, na ação sacerdotal de toda a criação da qual o
homem era o ministro. A ligação entre liturgia e criação é herança e
tradição da Igreja e com a reforma do missal após o Concílio Vaticano II
se explicitará na apresentação das oferendas, quando o presidente da
celebração apresentando o pão e o vinho, bendiz a Deus pelos mesmos que
são frutos da terra e do trabalho do homem.
Também na IX Oração Eucarística, para missas com
crianças – I, uma bela prece pela criação é prescrita no prefácio: “Nós
vos louvamos por todas as coisas bonitas que existem no mundo... Nós vos
louvamos pela luz do dia... Nós vos louvamos pela terra...”. A ação de
graças também se realiza por toda a obra da criação, por toda natureza,
por cada espécie, por cada ecossistema, por cada micro-organismo, pois
também eles são dons da bondade de Deus e obras de suas mãos.
Se olharmos a ação litúrgica e o cuidado com a natureza a partir
dessa perspectiva “eucaristizante” compreenderemos o grande impacto que
situações como Brumadinho, Mariana,
mas também cada pequeno ato de ofensa à natureza, nossa casa comum,
exercem sobre a vida litúrgica da Igreja. Todos esses atos, do menor ao
maior, são pecados. Segundo o Patriarca ortodoxo Bartolomeu, “um crime contra a natureza é um crime contra nós mesmos e um pecado contra Deus”.
Situações extremas como a que vive o estado de Minas Gerais são
gravíssimo pecado, fruto dos interesses escusos de grandes empresas de
mineração, da falta de cuidado com a casa comum e da deificação do
dinheiro e do poder. Quem paga a conta são os pobres, as famílias de
pescadores e camponeses que viviam próximos às regiões atingidas, os
trabalhadores dessa mesma empresa que, como já vimos em casos
semelhantes como em Mariana em 2015, se negará a arcar com as consequências de seus atos.
É também dever da Igreja, consciente da dimensão cosmológica de sua
liturgia, levantar uma voz profética denunciando tais crimes contra a
natureza, chamar a penitencia e a reparação os responsáveis por esses
atos e não se calar afim de não ser cúmplice de tal pecado para que os
dons apresentados ao Pai na ação litúrgica, não estejam manchados pela
lama da omissão, mas sejam, de fato, dons puros e agradáveis ao Criador,
para que no seu Filho, através da ação do Espírito Santo, tudo e todos
“nos tornemos em Cristo um só corpo e um só Espírito”.
ALBINI, C. Ioannis Zizoulas: il creato come Eucaristia. Disponível em: < https://sperarepertutti.typepad.com/sperare_per_tutti/2014/05/ioannis-zizoulas-il-creato-come-eucaristia.html >. Acesso em: 27 jan. 2019.
BÍBLIA: Nova Bíblia Pastoral. São Paulo: Paulus, 2014.
BENSEN, J. A. Criação, Ecologia e Eucaristia. Disponível em : <https://pebesen.wordpress.com/2015/11/07/criacao-ecologia-e-eucaristia. Acesso em: 27 de jan. 2019.
FRANCISCO. Carta Encíclica Laudato Si'. Disponível em: <http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/encyclicals/documents/papa-francesco_20150524_enciclica-laudato-si.html> . Acesso em 27 de jan. 2019.
MISSAL Dominical. 1ª ed. São Paulo: Paulus, 2016.
ZIZIOULAS I., Il creato come eucaristia. Approccio teologico al problema ecologico, Qiqajon, Bose 1994.
BÍBLIA: Nova Bíblia Pastoral. São Paulo: Paulus, 2014.
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