Amantes, pintura no claustro da Abadia de São Domingos de Silos (séc. XV), em Burgos (Espanha)
As reflexões que se seguem foram motivadas pelos
movimentos que se têm desencadeado na Igreja Católica, a propósito de
abusos sexuais frequentes da parte do clero, e do seu encobrimento por
parte das autoridades eclesiásticas responsáveis. Serei muito conciso,
reservando para um segundo momento uma análise mais desenvolvida do
mesmo problema.
Penso que as afirmações que têm sido feitas devem ser enquadradas
numa reflexão mais alargada do que aquela que nos tem sido transmitida
pelos meios de comunicação social.
Nestes últimos dias, o Papa tomou a iniciativa de denunciar publicamente a situação existente.
1 – Inevitavelmente, a primeira área de reflexão terá que ser a sexualidade humana.
Cito uma passagem muito clara de que é autora uma psicanalista de
língua inglesa, que trabalhou em Paris e é muito considerada. Em 1995,
publicou um livro, cujo título é “The Many Faces of Eros”, que começa
com a seguinte frase, bem clara:
Human sexuality is inherently traumatic. The many psychic
conflicts encountered in the search for love and satisfaction, arising
as a result of the clash between the inner world of primitive
instinctual drives and the constraining forces of the external world,
begin with our first sensuous relationship. (…) The slowly acquired
relation of an “other” – of an object separated from the self – is born
out of frustration, rage and a primitive form of depression that every
baby experiences in relation to the primordial object of love and
desire. Felicity lies in the abolition of the difference between self
and other.( Joyce McDougall, The Many Faces of Eros, Free Association Books – London, 1995)
Isto é afirmado dentro de um pensamento científico sobre a
sexualidade humana em geral. Nada tem a ver com o celibato nem com
posições religiosas.
Refere-se ao facto indiscutível de que, no homem, o desejo e o
comportamento sexual dependem de forma decisiva do mundo da emoção e da
fantasia que se faz sobre a realidade em que se vive. Essa fantasia tem
uma componente inconsciente, que determina a maneira como o indivíduo se
apercebe do que sente e da maneira como concretiza, ou tenta
concretizar, o desejo relacionado.
A história do amor humano e das relações mais diretamente
relacionadas com o comportamento sexual, desde os testemunhos mais
antigos que possuímos, é extremamente vasta. Dá-nos um exemplo
esclarecedor das dificuldades existentes nesta área da existência
humana.
É o conhecimento desta realidade que leva a autora que acabo de
citar, a iniciar o seu livro com aquela afirmação lapidar: Human
sexuality is inherently traumatic.
Muitos exemplos concretos se podem dar, que ilustrariam bem a
afirmação feita. Mas penso que esta concepção da sexualidade humana não é
sequer discutível.
A história das perversões sexuais é abundante. Entre muitos outros
casos, refiro só a obra do Marquês de Sade e de Sacher Masoch, de onde
proveem os termos técnicos de “sadismo” e “masoquismo”.
Deixo só, como muito significativa, a afirmação frequente, usada como
comentário a factos chocantes, de que “a prostituição é a mais antiga
profissão do mundo”.
2 – É importante o reconhecimento deste facto. E é também
fundamental reconhecer que a teorização científica sobre ele é muito
recente na história da cultura. Em especial, o reconhecimento e o estudo
da componente inconsciente do psiquismo é do final do séc. XIX.
Até há muito pouco tempo, aos desvios do comportamento sexual, às
transgressões, às perversões, davam-se explicações variadas, como sejam
“más inclinações, “desonestidade”, “tentações do demónio”, “efeitos de
magia”, etc. E as soluções ou terapias propostas tinham a ver com esta
concepção das suas causas. Por isso, eram quase sempre de tipo
religioso.
Crimes sexuais, violências sexuais, sobre crianças e adultos, sempre
existiram. Esse facto não tem a ver com o celibato, mas tem a ver com o
ser humano.
3 – No seu desenvolvimento como pessoa, o homem teve, pois,
que se confrontar com as ansiedades, as angústias, as dificuldades, os
dramas, os crimes, ou simplesmente a culpabilidade, ligados à
sexualidade humana, aos desejos proibidos e à sua eventual satisfação.
Isto levou certas correntes de pensamento, e muitas pessoas
singulares, a considerar, ou mesmo a proclamar, que a renúncia ao
exercício da sexualidade representava uma decisão sensata, uma atitude
de virtude heroica e um desejo de encontrar um caminho de virtude.
Surgia, assim, a decisão de renunciar ao que era vivido como más
inclinações e de procurar um caminho de maior dignidade, para o que
parecia aconselhável a renúncia à sexualidade e, portanto, a opção pelo
celibato. Não está em causa a sinceridade de muitas destas decisões.
Tudo isto, como se sabe, ligado, quase sempre, também, a posições e
ideais religiosos. E a Igreja considerou “estados de perfeição” estes
caminhos de renúncia.
4 – Compreende-se, assim, que a consideração da complexidade
humana que representa o assumir a própria sexualidade e a relação
pessoal que isso implica, tenha levado a renunciar à própria sexualidade
pessoas que se sentem perturbadas e angustiadas com tudo o que sentem
no seu íntimo a este propósito.
Pode reconhecer-se que a escolha do celibato, em certas
circunstâncias, seja uma decisão compreensível e respeitável. Mas, na
realidade complexa da vida de cada um, não podemos excluir que muitas
pessoas possam escolher o celibato por razões que têm a ver com
angústias, culpabilidades e dificuldades que não conseguem resolver, e
para as quais procuram encontrar solução deste modo. Renunciando. Quer
dizer, negando o problema. O que poderá ter graves consequências no
equilíbrio da pessoa.
Quando é assim, não há dúvida de que estes indivíduos ficam numa
posição de grande fragilidade para enfrentar uma situação emocionalmente
muito exigente, como é o celibato.
É indiscutível que este exige uma motivação esclarecida e sólida, em
personalidades com características especiais de maturidade e equilíbrio,
que não são frequentes. E, sobretudo, nunca pode ser uma fuga de
dificuldades sentidas.
Portanto, para uma compreensão deste problema, é indispensável
distinguir entre o celibato como estado e as pessoas que escolhem este
caminho. A seleção dos candidatos é uma tarefa difícil, que exige uma
preparação especializada de quem a faz.
A quem se confiará esta responsabilidade? A resposta não é fácil. Mas
seja quem for que assuma essa tarefa, terá que estar bem consciente que
a qualidade da motivação com que se escolhe o celibato, bem como o
realismo e o esclarecimento com que se toma a decisão, são elementos
decisivos.
Em muitos casos, e atendendo ao que tem acontecido, não podemos
excluir que essa seleção, na prática, já seja feita por pessoas que,
elas próprias, estão longe de corresponder a estas exigências.
5 – É razoável pensar que aquilo que hoje é denunciado
publicamente, também foi sempre acontecendo no passado. A palavra
pedofilia não era usada, embora existisse a realidade que agora se
designa com essa palavra. Os factos existiam mas eram silenciados.
Por outro lado, mesmo quando tornados públicos, a divulgação da
informação era completamente diferente do que é hoje. O encobrimento dos
factos era a regra geral, e muitas pessoas aceitavam essa atitude como a
mais “prudente”. Para evitar o escândalo.
É bem significativo que muitos das denunciados que agora aparecem
nos novos meios de comunicação social, se referem a factos ocorridos há
muitos anos, e de que nunca se tinha falado, porque não havia condições
para isso.
E são estes novos meios de difusão da notícia que tornaram impossível
o “piedoso encobrimento” das transgressões, que era feito
sistematicamente.
A novidade está, fundamentalmente, na divulgação da notícia e não nos
factos em si, que sempre se soube que existiam. Antes, havia uma
dificuldade em aceitar a situação que se sabia que existia, mas que era
convenção aceite que não seria divulgada, para manter a idealização do
celibato. Porém, as condições atuais tornam impossível continuar a
ignorar os factos.
É importante referir que temos assistido, recentemente, também a
frequentes denúncias de abusos e violências no campo da sexualidade
cometidos por várias figuras públicas, às vezes durante muitos anos, e
que só agora foram divulgados, porque antes não era possível a
divulgação.
Isto porque o problema não é só do celibato. É um problema da
sexualidade humana, mas é evidente que o que se passa num contexto de
violação de compromissos religiosos torna-se muito mais chocante.
A situação atual tornou impossível tentar ignorar estes factos. Mas
há inúmeras referências ao longo da história a situações de transgressão
das obrigações do celibato, algumas bem conhecidas dos contemporâneos
Na atualidade há uma mudança fundamental, e da maior importância, na
atitude da Igreja. O Papa tomou a decisão, até agora inédita, de
promover a denúncia das situações de transgressão. Quer dizer que há uma
nova maneira de reagir a factos que sempre existiram, e que não têm a
ver diretamente com o celibato, mas com as condicionantes da sexualidade
humana.
Faço uma referência à história, entre muitas que se podiam dar.
Stendhal, num livro em que conta as suas viagens no Norte da Itália em
1816, e em que descreve o modo de vida local, diz, sem qualquer
comentário, apenas narrando, o que passo a transcrever.
Antes e depois de S. Carlos (Borromeo), os párocos da região de
Milão tiveram amantes. (Acabava de mencionar um facto desse tempo). Nada
parece mais natural. Ninguém os censura. E dizem-nos com simplicidade:
“eles não são casados”. E num domingo de manhã vi uma senhora muito
empenhada em não faltar à missa que iria ser celebrada por um padre seu
amante. (Stendhal, Rome, Naples et Florence, Gallimard, Paris, 1987 , p.74)
6 – Mas, a meu ver, há um outro problema. É uma situação
extremamente grave, que torna tudo mais melindroso, mas que até agora
nunca vi referida. Trata-se da relação de grande proximidade que a
confissão e a direção espiritual estabelecem entre as duas pessoas, uma
em situação de autoridade, como quem ensina, outra na dependência da “orientação” ou do “juízo” que vai receber.
Por esta razão, deveria ser expressamente proibido manter relações de
convívio social ou de amizade, com as pessoas que se ouvem em confissão
ou em direção espiritual. É evidente que esta grande proximidade é muito
melindrosa e facilmente cria uma dependência patológica. É muito
significativo que nunca tenha sido denunciada, embora seja muito
corrente.
Também é muito significativo que a hierarquia da Igreja pareça nunca se ter preocupado com isso.
Creio que todos podíamos contar histórias sobre este assunto.
7 – Parece, pois, que o celibato obrigatório, nas condições
culturais e sociais em que hoje vivemos, não poderá continuar a ser
exigido como até aqui. A meu ver, exige-se uma profunda revisão,
clarificando, à luz do pensamento contemporâneo, o que a Igreja pensa
sobre a sexualidade, que terá que incluir o caso dos “recasados” e a
homossexualidade.
Lisboa, Fevereiro de 2019
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* João Seabra Diniz é psicanalista e membro da Sociedade Portuguesa de Psicanálise
Fonte: http://setemargens.com/sexualidade-humana-comportamentos-desviantes-celibato-um-comentario-do-psicanalista-joao-seabra-diniz/?utm_term=7Margens+-+Hoje+-+2019-02-25&utm_campaign=Sete+Margens&utm_source=e-goi&utm_medium=email
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