João Francisco Gomes*
Pela primeira vez, o Papa chamou ao Vaticano (com considerável urgência)
líderes católicos de todo o mundo para debater os abusos sexuais. Perceba o que
está em causa, em nove perguntas e respostas.
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- Que reunião é esta?
- Porque foi convocada?
- Quem vai participar?
- O que vai acontecer durante a cimeira?
- Que relato leva D. Manuel Clemente sobre Portugal?
- Que resultados se podem esperar?
- Que impacto poderá ter em Portugal?
- Como foi preparada a reunião?
- O que significa este gesto inédito do Papa?
Começa nesta quinta-feira no Vaticano uma reunião convocada pelo Papa
Francisco, com 190 líderes católicos de todo o mundo, para discutir os abusos
sexuais na Igreja. Após duas décadas de sucessivas investigações que revelaram
escândalos por todo o mundo, o Papa argentino tomou a decisão inédita de chamar
a Roma os presidentes das conferências episcopais de todos os territórios onde
a Igreja está implantada. Durante quatro dias, as atenções estarão voltadas
para o Vaticano — mas não é ainda certo que decisões poderão sair da reunião.
Nove perguntas e respostas para perceber o que está em causa nesta cimeira.
Que reunião é esta?
O encontro, convocado em setembro de 2018 pelo Papa Francisco sob o mote
“A Proteção dos Menores na Igreja”, é uma cimeira que reúne no Vaticano os
líderes das estruturas locais da Igreja Católica em todo o mundo. Na sua
maioria, são os presidentes das conferências episcopais, o organismo colegial
que reúne todos os bispos católicos de um país e que, habitualmente, adota
procedimentos que dizem respeito ao país ou território em causa.
O Papa Francisco convocou a reunião inédita em setembro e vai falar aos
líderes católicos de todo o mundo
É uma cimeira inédita. Nunca o Papa tinha convocado todos os presidentes
das conferências episcopais do mundo para um encontro no Vaticano dedicado
apenas a um assunto. A Igreja Católica tem, habitualmente, outras formas de
reunir os seus líderes para tomar decisões. Por exemplo, através das reuniões
periódicas do Conselho dos Cardeais, órgão consultivo do Papa Francisco,
composto atualmente por seis cardeais oriundos de várias partes do mundo que
aconselham o líder dos católicos em todo o tipo de assuntos.
Os temas mais importantes, para os quais é necessário ouvir uma maior
amplitude de vozes e tomar decisões que afetam a Igreja em todo o mundo, são
tratados no Consistório, a reunião de todos os cardeais (atualmente mais de
200). As reuniões ordinárias do Consistório contam com todos os cardeais que
estiverem em Roma no momento do encontro; já os consistórios extraordinários
reúnem todos os cardeais do mundo.
Em simultâneo, a Igreja Católica tem o Sínodo dos Bispos, um órgão
permanente criado pelo Concílio Vaticano II (na década de 60) que se reúne
periodicamente em Roma para discutir um determinado assunto e que conta com
bispos eleitos por cada conferência episcopal, habitualmente especializados no
tema em questão.
A convocatória de uma cimeira com os líderes da Igreja Católica em todo
o mundo surge, pois, fora do esquema habitual das reuniões magnas do Vaticano.
A ideia de convocar esta reunião inédita saiu de um encontro do Conselho dos
Cardeais e, inicialmente, foi comunicada sem grandes detalhes. A decisão
acabaria por ser justificada pelo Papa Francisco durante o voo de regresso do
Panamá, onde esteve para as Jornadas Mundiais da Juventude.
Aos jornalistas, o líder da Igreja Católica explicou que o grande
objetivo do encontro é dar uma “catequese” aos bispos de todo o mundo — através
dos seus líderes — para que “tomem consciência do drama” que são os abusos
sexuais. “Percebemos que alguns bispos não entendiam bem, não sabiam o que
fazer, ou faziam uma coisa bem e outra mal”, explicou Francisco. São precisos,
acrescentou ainda, “protocolos claros” que indiquem aos bispos em todos os
lugares do mundo o que devem fazer perante situações de abuso.
O Papa lamentou ainda que, segundo as estatísticas, apenas 50% dos casos
de abusos sejam denunciados e apenas 5% resultem em condenações. “É um drama
humano”, assegurou. “Também nós, resolvendo o problema na Igreja, ajudaremos a
resolvê-lo na sociedade e nas famílias, onde a vergonha cobre tudo. Mas,
primeiro, devemos tomar consciência, ter os protocolos e seguir em frente.”
"Percebemos
que alguns bispos não entendiam bem, não sabiam o que fazer, ou faziam uma
coisa bem e outra mal" quando lidam com denúncias de abusos sexuais,
explicou Francisco.
Porque foi convocada?
A decisão surge após vinte anos de sucessivas investigações que têm
vindo a revelar situações de abusos sexuais na Igreja Católica em todo o mundo
— fortemente impulsionadas pelas reportagens publicadas em 2000 pelo Boston
Globe sobre a ocultação dos abusos nos Estados Unidos.
Sucederam-se escândalos em países como a Austrália, a Irlanda, a Alemanha
e, mais recentemente, o Chile.
“Percebemos que é um fenómeno que está presente em todos os países, e
não apenas no Ocidente, na América do Norte ou na Europa Central. Está em todo
o lado”, disse
recentemente ao Observador o padre jesuíta alemão Hans Zollner, um dos homens
fortes do Vaticano para a proteção das crianças e jovens e encarregado da
preparação desta cimeira inédita.
O ano de 2018 foi um dos períodos mais negros para a Igreja no que toca
a este assunto, sobretudo nos Estados Unidos. O caso mais mediático foi o do antigo
cardeal norte-americano Theodore McCarrick, que, no último fim de semana, foi
oficialmente expulso do clero pelo Papa Francisco e que, em julho do ano
passado, tinha sido o primeiro cardeal em quase 100 anos a abandonar o colégio
dos cardeais, depois de surgirem contra ele fortes acusações de que teria
cometido abusos sobre crianças de 11 anos na década de 60.
O caso McCarrick fez rebentar a outra grande polémica de 2018
quando, em agosto, o antigo embaixador do Vaticano nos EUA, o arcebispo Carlo
Maria Viganò, publicou uma carta aberta ao Papa na qual alegava que Francisco
sabia dos abusos cometidos por McCarrick desde, pelo menos, 2013. E mais: pela
primeira vez na história recente, um elemento da Cúria Romana apelava
diretamente à resignação do Papa.
Com a Igreja a chegar a um ponto de ruptura — que fez vir ao de cima
velhas guerras entre alas mais conservadoras e outras mais progressistas da
hierarquia católica — a decisão de Francisco pode ser interpretada
simultaneamente como uma demonstração de autoridade e como um reconhecimento de
que o problema é universal. Durante os quatro dias da reunião, o Papa terá
oportunidade para dizer aos bispos que houve comportamentos que a Igreja
considera hoje intoleráveis. “É qualquer coisa sem precedentes”, resumia o
jesuíta Hans Zollner na mesma entrevista ao Observador.
O padre jesuíta Hans Zollner foi o responsável pelo comité organizador
da reunião
Quem vai participar?
A cimeira de quatro dias, que decorre na ampla Ala Nova do Sínodo (onde
habitualmente se reúnem os bispos nas reuniões periódicas do Sínodo), vai ter
um total de 190 participantes, nos quais se incluem:
- O Papa Francisco, que vai estar presente durante todo o tempo da reunião;
- Os 114 presidentes ou representantes das conferências episcopais de todo o mundo, a saber:
- 36 de África;
- 24 da América;
- 18 da Ásia;
- 32 da Europa;
- 4 da Oceânia.
- Os 14 líderes das Igrejas Orientais Católicas;
- 15 bispos que não fazem parte de nenhuma conferência episcopal (nomeadamente, representantes de administrações apostólicas em lugares do mundo onde não há católicos suficientes para organizar uma conferência episcopal);
- 12 superiores de congregações masculinas;
- 10 superioras de congregações femininas;
- Os 10 prefeitos dos dicastérios da Cúria Romana (os “ministros” do Governo da Igreja Católica);
- 4 outros elementos da Cúria Romana, nomeadamente adjuntos e secretários;
- 5 membros do Conselho de Cardeais (o conselho consultivo particular do Papa);
- E ainda os 5 membros do comité organizador da cimeira, incluindo o moderador do encontro, o padre italiano Federico Lombardi, ex-porta-voz do Vaticano.
Portugal será representado pelo presidente da Conferência Episcopal
Portuguesa, que é neste momento o cardeal-patriarca de Lisboa, D. Manuel
Clemente.
O que vai acontecer durante a cimeira?
O Vaticano divulgou esta segunda-feira o programa detalhado da reunião, que inclui momentos de
oração, palestras, trabalhos em pequenos grupos organizados por língua e ainda
auscultação de testemunhos.
Os três primeiros dias da cimeira vão ser passados na Ala Nova do
Sínodo, ao lado da Praça de São Pedro, e estarão divididos por temas: o
primeiro será sobre a responsabilidade dos bispos, o segundo sobre a prestação
de contas e o terceiro sobre a transparência. O último dia vai
ser marcado por uma missa de encerramento, após a qual o Papa Francisco fará um
discurso com as conclusões da reunião. Como não será publicado um
documento final, este discurso é o momento mais aguardado dos quatro dias.
Em dez
oradores, apenas três são mulheres e apenas duas não fazem parte do clero.
Entre os oradores que os bispos vão escutar ao longo da cimeira
encontram-se o cardeal filipino Luis Antonio Tagle, arcebispo de
Manila; D. Charles Scicluna, arcebispo de Malta e responsável da Cúria
Romana pelas investigações aos casos de abusos sexuais; o cardeal
colombiano Rubén Salazar Gómez, arcebispo de Bogotá; o cardeal
indiano Oswald Gracias, arcebispo de Bombaim; o cardeal
norte-americano Blase J. Cupich, arcebispo de Chicago; Linda
Ghisoni, sub-secretária do Dicastério para os Leigos, a Família e a Vida e
professora de Direito Canónico; a irmã Veronica Openibo; o cardeal
alemão Reinhard Marx, arcebispo de Munique; e a jornalista
mexicana Valentina Alazraki.
O moderador dos encontros será o ex-porta-voz do Vaticano e padre
jesuíta Federico Lombardi. Em dez oradores, apenas três são mulheres e
apenas duas não fazem parte do clero.
De acordo com o programa, os bispos terão duas palestras de manhã e uma
à tarde. Entre as palestras, terão de trabalhar em pequenos grupos de cerca de
duas dezenas de pessoas, divididos por língua. Cada grupo terá um relator que
apresenta as conclusões ao plenário no fim de cada módulo.
Os temas em debate oscilam entre a responsabilidade dos bispos, o
conhecimento da dor e do sofrimento do povo cristão, o momento de atual crise
da Igreja, a comunicação, a transparência ou a abertura às realidades
exteriores à Igreja Católica.
No sábado, dia 23, os bispos vão concluir a reunião com uma celebração
penitencial para pedir perdão pelos abusos cometidos pelos membros do clero.
Todos os dias, os momentos de oração que concluem os trabalhos serão feitos na
presença de vítimas de abuso sexual, que vão ser ouvidas pelos bispos. O
Vaticano manteve em segredo a identidade destas pessoas.
No início do encontro serão mostrados vídeos de vários bispos do mundo a
relatar encontros que tiveram com vítimas de abusos sexuais. Entre os vídeos já
divulgados pelo Vaticano encontram-se os dos presidentes das conferências
episcopais de França, da Irlanda e de Itália.
Que relato leva D. Manuel Clemente sobre
Portugal?
Pelo menos em público, os bispos de Portugal têm passado a mensagem de
que a situação dos abusos sexuais não é mais do que um conjunto de casos
pontuais. Ainda no verão passado, o cardeal de Leiria-Fátima, D. António Marto,
vice-presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, dizia
em entrevista ao Observador que “não consta, por exemplo, que [o problema
dos abusos] tenha tido uma proporção semelhante nos nossos países, Portugal,
Espanha, Itália e outros”, como teve nos Estados Unidos, Irlanda ou Chile.
O cardeal-patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, é o presidente da
Conferência Episcopal Portuguesa e vai representar Portugal na cimeira
Por isso, em novembro do ano passado, o cardeal-patriarca de Lisboa, D.
Manuel Clemente, defendia que não era necessário, “para já”, um estudo de
âmbito nacional sobre os abusos na Igreja em Portugal. “Para já não tratámos
disso diretamente. O que fizemos [anteriormente] foi publicar as diretivas, que
para já são suficientes e esclarecedoras para aquilo que tem que se fazer”,
disse aos jornalistas, referindo-se às normas publicadas em 2012 pela Conferência Episcopal.
Na semana passada, depois de o Observador ter começado a publicar uma
série de reportagens sobre a forma como a hierarquia da Igreja lidou com as denúncias
de abusos em Portugal, o porta-voz dos bispos portugueses, padre Manuel
Barbosa, deu conta, pela primeira vez, da dimensão do problema, falando numa
“dezena” de casos investigados pelas dioceses desde 2001. Já um
levantamento feito pelo Observador junto de todas as dioceses portuguesas — para
o qual mais de metade das dioceses recusaram fornecer dados — resultou na
identificação de nove casos investigados.
O número avançado pelo padre Manuel Barbosa resultou de um levantamento
feito entre os bispos portugueses durante o processo de preparação para a
cimeira que agora se realiza. A Conferência Episcopal Portuguesa continua,
porém, sem ter nos seus planos a realização de um estudo aprofundado sobre
eventuais casos que nunca tenham sido relatados ou que tenham sido escondidos
nas últimas décadas pelos vários bispos que lideraram as dioceses portuguesas.
Até porque, como sublinhou o padre Manuel Barbosa, o entendimento da
Conferência Episcopal é que “os casos tratados nos tribunais eclesiásticos onde
chegam as denúncias são pouquíssimos“. O responsável salientou ainda
que, desses, em mais de metade “a investigação prévia parou por falta de
fundamento”.
Olhando para os casos que chegaram à justiça civil, há três padres
portugueses que foram condenados em tribunal a penas de prisão (duas delas
suspensas) por abusos sexuais de menores, totalizando nove vítimas.
A investigação publicada pelo Observador na semana passada revelou ainda
que, em vários dos casos que foram conhecidos nos anos recentes, os bispos
responsáveis ou outras pessoas da hierarquia da Igreja souberam dos abusos mas
não os reportaram às autoridades civis com competências para investigar crimes.
Foi o que aconteceu no caso do padre António Júlio dos Santos, que
abusou de duas menores da paróquia da Golegã, diocese de Santarém, em 2013. O
então bispo de Santarém, D. Manuel Pelino, soube do primeiro crime poucos dias
depois de este ter acontecido e deu início a uma discreta investigação interna,
não aplicando nenhuma medida cautelar nem comunicando as suspeitas à polícia.
Quando o sacerdote cometeu o segundo crime de abuso, já era investigado pela
Igreja, que voltou a não denunciar o caso. As autoridades só souberam dos
crimes por uma notícia do jornal regional O Mirante.
Já no mediático caso do antigo vice-reitor do seminário do Fundão, a
investigação do Observador mostrou que, de acordo com os registos que constam
do processo, o padre que dirigia o externato onde os seminaristas estudavam foi
informado dos abusos três semanas antes da investigação policial e desvalorizou
a denúncia, argumentando que não iria interferir na vida de “família” do
seminário.
Na diocese do Funchal, na ilha da Madeira, o padre Anastácio Alves foi
transferido, primeiro de paróquia e depois de país, em momentos coincidentes
com os dois processos por abusos em que foi investigado — e que acabaram sem
acusação. Num deles, a vítima voltou atrás no testemunho. Na altura, o
bispo do Funchal, D. Teodoro de Faria — o mesmo que não tinha aberto um
processo canónico ao padre Frederico, que foi condenado por homicídio de um
jovem e que fugiu para o Brasil — optou por não investigar as denúncias, ao
contrário do que manda o Código do Direito Canónico.
Entre os casos analisados pelo Observador, o único em que a hierarquia
da Igreja não só cumpriu com todas as orientações a que estava obrigada como
ainda foi mais longe do que a própria justiça civil foi o do padre Pedro
Ribeiro, em Vila Real. Ali, a denúncia contra o sacerdote — que abusou de duas
menores através de mensagens sexualmente explícitas pelo Facebook — partiu da
própria Igreja, que foi mais dura do que o tribunal na aplicação de uma pena,
condenando-o a quatro anos de suspensão do sacerdócio, durante os quais terá de
residir num mosteiro.
O cardeal-patriarca de Lisboa leva ainda para a reunião o testemunho
pessoal de uma vítima de abuso sexual com quem se encontrou antes de partir
para Roma. Em dezembro, o comité organizador da cimeira enviou
uma carta a todos os participantes pedindo-lhes que escutassem as vítimas
de abusos nos seus países.
“O primeiro passo deve ser tomar consciência da verdade do que
aconteceu. Por esta razão, pedimos a cada presidente da conferência episcopal
que se aproxime e visite as vítimas que sofreram abusos do clero nos seus
respetivos países, antes da reunião de Roma e ouvir, em primeira mão, o seu
sofrimento”, lia-se na carta.
Quando questionado pelos jornalistas sobre se o presidente da
Conferência Episcopal Portuguesa o tinha feito ou se tinha planos para o fazer,
o porta-voz dos bispos respondeu apenas que existe uma “disponibilidade ativa”
para ouvir “presumíveis vítimas” que se queiram aproximar. O padre Manuel
Barbosa sublinhou que “não há uma lista” de vítimas — mesmo quando questionado
sobre as nove vítimas concretas dos três padres condenados em tribunal.
Esta quarta-feira, numa entrevista à Agência Ecclesia, D. Manuel
Clemente sublinhou que, face à disponibilidade manifestada, “apareceu um caso
de uma pessoa” que quis falar com ele. “Falou longamente comigo, eu ouvi e com
certeza que estive com essa pessoa no seguimento do caso”, disse o
cardeal-patriarca de Lisboa.
Que resultados se podem esperar?
O Papa Francisco tem feito um esforço para baixar as expectativas
relativamente aos possíveis resultados desta reunião. No voo de regresso do
Panamá, no final de janeiro, quando falou aos jornalistas sobre esta reunião,
disse sentir que existe “uma expectativa de certo modo exagerada” relativamente
à cimeira.
“É preciso moderar as expectativas em relação a estes pontos de que lhes
falei, porque o problema dos abusos continuará. É um problema humano, em todos
os lugares”, disse o Papa Francisco.
Também o padre jesuíta Hans Zollner, organizador da cimeira, disse em
entrevista ao Observador que “não podemos esperar que, em três dias e
meio, se mude toda a Igreja, se mude todo o mundo”. “Este é um passo num
caminho maior, que começou há anos”, considerou Zollner, reconhecendo, contudo,
que é “um passo importante” por ser “a própria liderança da Igreja a
envolver-se”.
"É
preciso moderar as expectativas em relação a estes pontos de que lhes falei,
porque o problema dos abusos continuará. É um problema humano, em todos
os lugares"
Papa
Francisco
Além disso, não é esperada a publicação de um documento final com
orientações concretas, o que indicia que o objetivo da reunião não é tomar
decisões específicas, mas sim dar aos bispos de todo o mundo ferramentas para
que tomem decisões nos seus próprios países.
Esta segunda-feira, o cardeal norte-americano Blase J. Cupich, um dos
responsáveis pela organização desta cimeira, disse numa conferência de imprensa
no Vaticano que “o Santo Padre quer tornar claro para os bispos em todo o mundo
que cada um deles tem de assumir responsabilidade por este problema” e
“assegurar que as pessoas entendem, a nível individual, enquanto bispos, quais
são as suas responsabilidades”.
O objetivo desta reunião é que os bispos saiam com novas ideias e
orientações sobre qual deve ser a responsabilidade das estruturas locais da
Igreja na forma como se lida com o problema dos abusos. Por isso, será
expectável que, nos meses seguintes à cimeira, as conferências episcopais de
todo o mundo, incluindo a portuguesa, adotem procedimentos e aprovem novas
medidas sobre a investigação de abusos sexuais e a colaboração com as
autoridades civis nesta matéria.
Que impacto poderá ter em Portugal?
Os bispos portugueses têm agendada para o próximo mês de abril uma
reunião da Assembleia Plenária da Conferência Episcopal Portuguesa — e têm
remetido todas as decisões sobre os abusos sexuais para esse encontro.
Numa conferência de imprensa na semana passada, o padre Manuel Barbosa
explicou que é nesta reunião que D. Manuel Clemente vai apresentar aos bispos
portugueses o resultado da cimeira do Vaticano e que vão ser pensadas eventuais
medidas a adotar. O porta-voz admitiu ainda que, “se vier uma orientação da
Santa Sé nesse sentido”, poderá ser tomada em abril a decisão de levar a cabo
uma investigação de âmbito nacional aos abusos sexuais.
O Papa Francisco vai estar presente durante toda a duração do encontro,
ao qual vai presidir
A Conferência Episcopal Portuguesa tem um conjunto de linhas
orientadoras que os bispos devem seguir se souberem de denúncias de abusos
sexuais. Este documento foi publicado em 2012, na sequência do escândalo
surgido em 2009 na Irlanda — que obrigou à intervenção direta do Papa Bento
XVI. É expectável, porém, que este documento possa ser ajustado, atualizado ou
até mesmo substituído por um novo num futuro próximo, de modo a respeitar as
indicações dadas pelo Papa Francisco nesta reunião.
Como foi preparada a reunião?
O comité organizador desta cimeira, orientado pelo padre Hans Zollner e
composto por clérigos e leigos com experiência no estudo dos abusos sexuais,
começou a trabalhar na preparação do encontro logo em setembro, quando o Papa o
convocou.
A maior parte do trabalho de preparação consistiu na recolha de
informação. Todas as conferências episcopais do mundo receberam um extenso
inquérito cujas respostas foram remetidas para Roma e serviram para ajudar os
organizadores a perceber em que pé estão os bispos de cada país. Foi a partir
destas informações que os temas a abordar na reunião foram escolhidos. O
conteúdo deste inquérito foi mantido em segredo.
Segundo explicou ao Observador o padre Hans Zollner, a decisão de
realizar a reunião partiu diretamente do Papa, que não deu aos organizadores um
caderno de encargos detalhado. “Ele pediu-nos para organizar uma reunião sobre
a proteção das crianças na Igreja. Ele queria, e quer certamente, que os bispos
de todo o mundo reconheçam a necessidade de trabalhar neste assunto e que
recebam informação e instruções sobre tudo o que é necessário para que as
instruções da Santa Sé e a lei civil de cada país sejam seguidas”, explicou
Zollner.
"O
Papa queria, e quer certamente, que os bispos de todo o mundo reconheçam a
necessidade de trabalhar neste assunto e que recebam informação e instruções sobre
tudo o que é necessário para que as instruções da Santa Sé e a lei civil de
cada país sejam seguidas"
P. Hans
Zollner, sj
O alemão, mesmo sem revelar ao Observador o conteúdo do inquérito
enviado aos bispos ou as conclusões que retirou das respostas, afirmou que o
trabalho de preparação do encontro permitiu perceber que o fenómeno “está em
todo o lado”. Foi na sequência desta conclusão que o comité pediu aos vários
presidentes das conferências episcopais que se encontrassem com as vítimas
antes de viajarem para Roma, para que levassem os testemunhos do sofrimento por
que aquelas passaram quando entrassem na cimeira.
Depois de recebido o feedback dos bispos de todo o mundo, o
comité elaborou um programa para os quatro dias, que o Papa Francisco aprovou
no mês passado.
O que significa este gesto inédito do Papa?
O Papa Francisco descreveu recentemente o encontro como “um ato de forte
responsabilidade pastoral diante de um desafio urgente do nosso tempo”. O facto
de ser a primeira vez na história da Igreja Católica que é convocada uma
reunião magna desta dimensão já diz muito da importância que o Papa argentino
dá a este problema.
A decisão, aplaudida e aguardada com expectativa por católicos em todo o
mundo, foi apelidada de “Super Bowl” do Vaticano pelo jornalista
norte-americano John Allen Jr., um dos mais reputados
vaticanistas anglo-saxónicos, que alerta, porém, para o facto de a reunião
ter de ser “avaliada pelos resultados” que produzir.
Espera-se, na opinião de Allen, que na sequência deste encontro inédito
a Igreja endureça a sua posição de “tolerância zero” em duas frentes: por um
lado, adotando medidas concretas que levem à demissão permanente de qualquer
clérigo que seja alvo de uma acusação credível de abuso sexual; por outro lado,
que o Vaticano faça “mais do que aceitar discretamente a resignação dos bispos
acusados” de encobrir os casos, instaurando processos a estes responsáveis e
condenando-os a penas semelhantes às aplicadas aos padres abusadores.
Esta cimeira será um dos eventos do Vaticano com maior cobertura
mediática, equiparável a um conclave para a eleição do Papa, com a sala de
imprensa da Santa Sé a receber centenas de jornalistas de todo o mundo. Durante
uma semana, os olhos do mundo — especialmente nos países tradicionalmente
católicos — vão estar virados para o Vaticano à espera de respostas.
Artigo atualizado às 21h54, com a nova informação de que D. Manuel
Clemente se encontrou com uma vítima de abuso sexual.
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* Estou desde 2016 no Observador, onde escrevo sobre religião e sociedade.
Antes, licenciei-me em Jornalismo pela Escola Superior de Comunicação
Social de Lisboa. Em 2017, recebi o prémio de jornalismo Dom Manuel
Falcão, atribuído pela Conferência Episcopal Portuguesa a trabalhos
jornalísticos de temática religiosa. Nasci e cresci em Vieira de Leiria.
OBS do BLOG: Português de Portugal.
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