Psicanalista dá pistas de como atravessar
o
momento de perseguição conservadora,
buscando compreender como agem os
que
a promovem; e como refinar
a indignação
dos que resistem
Vivemos uma crise política e social, uma crise que é também e
principalmente dos afetos e das relações. Há um sofrer individualizado,
vivido de maneira ímpar pelos sujeitos e presente em seus relatos de
medo, frustração e ameaças constantes. E há um sofrer generalizado,
marcado pelo enfraquecimento dos laços, pela desesperança e pelo ódio
sempre presente, antes adormecido e hoje orgulhosamente sustentado e
atuado. É um ódio performático, que se pretende manifesto em defesa de
uma velha teia de privilégios e ao mesmo tempo contra um outro que foi
eleito o bode expiatório da vez, a ser combatido e eliminado pois
imaginariamente culpado pelos males da nação e inimigo de uma pátria que
só existe como fantasia. Nos consultórios, no convívio pessoal e nas
redes sociais são palpáveis a ansiedade, o cansaço, a sensação
paralisante de impotência e a angústia, o desamparo.
A angústia, porém, pode ser combustível da ação, e cabe o
questionamento a respeito do que pode ser feito para lidar com esse
estado de coisas tentando permanecer minimamente saudável.
O resultado desta inquietação minha é o que chamo de pequeno manual
de conduta e resistência a essa estratégia de controle do discurso e da
libido tão facilmente identificável nas ações de quem investe neste
cenário de crise, insegurança e confronto generalizados.
Não raro vemos declarações de pessoas próximas ao presidente eleito
falando em “guerra cultural”, e não surpreende que a gestão da
comunicação do novo governo, desde a campanha, tenha elementos de
estratégia militar, de “guerra híbrida”, o assim chamado firehosing.
A atuação se dá em duas frentes: num primeiro nível, declarações cada
vez mais estapafúrdias e revoltantes, sem nenhum compromisso com fatos
ou lógica, com frequentes idas e vindas, com avanços aparentes e
desistências. O objetivo aí é o controle da pauta. É uma maneira de
controlar não só a imprensa, e essa tem sido a estratégia de Trump desde
o início de seu mandato, como também os temas das conversas nas ruas,
bares e condomínios.
O uso das postagens em massa impulsionadas no WhatsApp de maneira
supostamente ilegal é o dado novo e até o momento um grande diferencial
do firehosing à brasileira. Não sei por quanto tempo isso
funcionará, mas é assim, controlando o discurso e confundindo a todos,
que as medidas impopulares, essas sim calculadas e planejadas, do
segundo nível serão postas em prática sem maior resistência. A
declaração absurda toma de assalto as redes sociais enquanto uma emenda
constitucional é votada, por exemplo.
O projeto da “escola sem partido”, cuja votação pode acontecer a
qualquer momento, e as mudanças no texto da Lei Antiterrorismo são
estratégias de controle do discurso também, óbvio, mas talvez eles nem
esperem tanto essas aprovações. Mantê-los em pauta é ótimo para garantir
a atenção e a tensão da oposição e da imprensa.
Além do controle do discurso e do diversionismo das pautas, há a
atuação sobre a libido, o ânimo daqueles que são oposição. É um jogo de
manipulação da indignação também. Acontece que a indignação é em algum
grau catártica.
Para nosso “aparelho psíquico”, a indignação antecipada com algo tem
quase o mesmo efeito de vivenciar de fato esse algo ou de agir contra
ele. Quando eu compartilho uma fala do presidente dizendo “olha o
absurdo que ele está falando”, minha indignação implica direcionamento
de energia para esse fato, um consumo de libido, e consigo até mesmo
algum gozo, uma satisfação secreta e mesmo inconsciente, na captura
também da indignação do meu grupo, garantida pelo algoritmo no caso das
redes sociais. Há uma sensação de pertencimento mesmo nos afetos
negativos vivenciados coletivamente.
"Vá ver um filme, ler um livro, ouvir a música que você ama ou um
disco novo. Consuma e produza arte, que é uma maneira e tanto de
elaborar angústias e mobilizar forças, de forma crítica, inclusive. A
arte ajuda a seguir e a mostrar que a vida continua lá fora. Convide
alguém, porque estar junto e compartilhar amor é uma forma de proteger
os seus e de alimentar esperanças, conseguir força, redirecionar a
libido."
Grosso modo, dado que libido é um recurso finito que apenas
muda de um ponto de referência a outro, o que “gastei” em meu gozo
catártico indignado falta em outras atividades. É uma estratégia de
controle dos corpos comum, clássica, potencializada pelas redes sociais.
Um exemplo é a hipersexualização das relações e do ambiente, via mídia e
publicidade, por exemplo, que resulta em sujeitos com menos libido
investida nos encontros sexuais. O fato é que a estratégia é gerar
indignação para controlar a pauta e também garantir a paralisação dos
sujeitos, que ficam meio que petrificados, sem forças para resistir. O
resultado é o sofrimento psíquico potencializado e amplificado, com mais
depressão, desamparo e sentimentos de falta de sentido. De quebra, a
indignação e o medo gerado na oposição alimentam parte da base apoiadora
de Bolsonaro. Esses jovens fazendo fotos pretensamente ameaçadoras com
armas na mão que vimos após a eleição estão implorando pelo medo que vai
alimentar uma fantasia fálica muito primitiva de poder neles. Eles se
alimentam da indignação e do assombro que esperam causar no outro, e não
oferecer o que pedem é confrontá-los com um dado de realidade.
Mas vamos ao manual propriamente dito: ninguém está dizendo que não
podemos mais demonstrar indignação e medo ou se revoltar com o absurdo. É
necessário, porém, sermos “seletivos” com nossa indignação. Ao perceber
que o noticiário sobre o novo governo te faz espumar e compartilhar
coisas o dia todo, pense em sair um pouco das redes sociais.
Vá ver um filme, ler um livro, ouvir a música que você ama ou um
disco novo. Consuma e produza arte, que é uma maneira e tanto de
elaborar angústias e mobilizar forças, de forma crítica, inclusive. A
arte ajuda a seguir e a mostrar que a vida continua lá fora. Convide
alguém, porque estar junto e compartilhar amor é uma forma de proteger
os seus e de alimentar esperanças, conseguir força, redirecionar a
libido.
É hora de usar o potencial mobilizador e de comunicação das redes em
nosso favor: criando e fortalecendo laços, contatos que sem elas não
seriam possíveis, articulando movimentos, coletivos, grupos de apoio
mútuo etc. Que nossa ação não fique restrita ao virtual. A melhor
resposta a quem quer nos capturar tanto pelo medo quanto pela indignação
é seguir vivendo, sem se esquecer da empatia para com os que estão
sofrendo, mas investindo naquilo que podemos efetivamente fazer para
ajudar; estudando, ouvindo e lendo muito para aprender formas de ajudar
mais. É preciso observar os movimentos “macro” do regime, saber onde
eles estão efetivamente investindo.
Isso estará sempre nas entrelinhas das declarações e do que aparece
no noticiário. Há medo e indignação, claro que há, mas, se nos deixamos
capturar por essa dinâmica, fazemos o jogo deles. Então, enquanto
investimos em formas de ajudar quem está precisando resistir, precisamos
nos cuidar e não sucumbir à ansiedade e à confusão propositada dos
discursos. Não podemos esquecer que é preciso mais do que nunca estar
com as pessoas. Não é sem motivo que regimes totalitários em algum
momento proíbam encontros e reuniões. O contato e a interação são
revolucionários.
Consuma e produza arte, que é uma maneira e tanto de elaborar
angústias e mobilizar forças, de forma crítica, inclusive. A arte ajuda a
seguir e a mostrar que a vida continua lá fora. Convide alguém, porque
estar junto e compartilhar amor é uma forma de proteger os seus e de
alimentar esperanças, conseguir força, redirecionar a libido. É hora de
usar o potencial mobilizador e de comunicação das redes em nosso favor:
criando e fortalecendo laços, contatos que sem elas não seriam
possíveis, articulando movimentos, coletivos, grupos de apoio mútuo etc.
Que nossa ação não fique restrita ao virtual. A melhor resposta a quem
quer nos capturar tanto pelo medo quanto pela indignação é seguir
vivendo, sem se esquecer da empatia para com os que estão sofrendo, mas
investindo naquilo que podemos efetivamente fazer para ajudar;
estudando, ouvindo e lendo muito para aprender formas de ajudar mais.
É preciso observar os movimentos “macro” do regime, saber onde eles
estão efetivamente investindo. Isso estará sempre nas entrelinhas das
declarações e do que aparece no noticiário. Há medo e indignação, claro
que há, mas, se nos deixamos capturar por essa dinâmica, fazemos o jogo
deles. Então, enquanto investimos em formas de ajudar quem está
precisando resistir, precisamos nos cuidar e não sucumbir à ansiedade e à
confusão propositada dos discursos. Não podemos esquecer que é preciso
mais do que nunca estar com as pessoas.
Não é sem motivo que regimes totalitários em algum momento proíbam
encontros e reuniões. O contato e a interação são revolucionários.
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*Marcos Donizetti de Almeida é psicanalista. por Le Monde Diplomatique Brasil Fonte: https://outraspalavras.net/outrasmidias/para-resistir-ao-avanco-pseudo-moralista/?utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=1_2_michel_lowy_reformula_a_opcao_ecossocialista_crise_fiscal_dos_estados_e_a_sanha_privatista_mpl_repressao_em_dois_atos_para_resistir_ao_avanco_pseudo_moralista&utm_term=2019-02-01
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