segunda-feira, 31 de agosto de 2015

Ainda à espera do apocalipse?

Apocalípticos e Integrados desperta interrogações oportunas, talvez até mais necessárias do que nunca, sobre a importância que o prazer, o consolo, a evasão ou o pensamento têm na relação que cada um estabelece com a literatura, a música e a banda desenhada, entre outras artes



Numa reedição da Relógio D'Água, Apocalípticos e Integrados, de Umberto Eco, regressa ao espaço público português com os ensaios e artigos que o tornaram numa das obras mais comentadas das ciências sociais e dos estudos da comunicação. O seu impacto foi tão amplo que a dicotomia explícita no título persiste noutros contextos e discursos, com frequência acerca de controvérsias semelhantes. Onde começa e acaba o mau gosto? A cultura de massas desapareceu ou degradou-se ainda mais? Ainda existem artes superiores e inferiores? A boa literatura é melhor do que o bom hip-hop? O cinema morreu?

Umberto Eco não responde propriamente a estas perguntas (não poderia fazê-lo), mas, a par dos prefácios, as análises incluídas em Apocalípticos e Integrados merecem ser revisitadas. Reler ou ler pela primeira vez os textos sobre a canção de consumo, a breve e certeira interpretação de Peanuts, de Charles Schulz, ou os ensaios dedicados ao kitsch não é um exercício estéril. Desperta interrogações oportunas, talvez até mais necessárias do que nunca, sobre a importância que o prazer, o consolo, a evasão ou o pensamento têm na relação que cada um estabelece com a literatura, a música e a banda desenhada, entre outras artes.

Confrontar o legado desta obra com a actualidade implica recordar o contexto do seu aparecimento em 1964, data da primeira edição em Itália. “[O livro] surgiu num momento em que se multiplicavam os números de consumidores dos media, em que se impunha reflectir sobre a teoria da comunicação, da cultura de massas e da indústria cultural”, recorda o professor universitário e ensaísta Arnaldo Saraiva. Umberto Eco juntava-se, assim, a um conjunto de autores que estudavam os mass media, como Marshall McLuhan, Abraham Moles, Clement Greenberg, Edgar Morin, Roland Barthes. A sua entrada nesse campo apresentava, contudo, contornos específicos, dados os antecedentes: “Foi depois de elaborar estudos sobre textos da Idade Média. Ele tinha uma invulgar cultura literária, linguística, histórica, sociológica, psicanalítica. E a sua escrita revelava um humor e uma verve inusuais em estudiosos ou pensadores. Não negavam, acentuavam a seriedade e a novidade das suas análises.”

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

Um enfant-terrible

O impacto dos ensaios de Umberto Eco tardou a sentir-se em Portugal. As edições das suas principais obras realizaram-se com atrasos de décadas (Apocalípticos e Integrados, por exemplo, só surgiu em 1991 numa tradução da Difel), ao contrário do que aconteceu em França, na Espanha ou no Brasil. “Nenhuma foi imediatamente conhecida em Portugal nem suscitou nos anos 60 e 70 seguintes o interesse dos nossos editores e intelectuais. É com a tradução de O Nome da Rosa, em 1983, que Eco se torna popular em Portugal”, assinala Saraiva. O que pode explicar esse alheamento? A nossa “condição periférica”? O desinteresse pelos temas tratados? “Nos anos 60, a intelligentsia portuguesa ainda vivia obcecada pela cultura francesa, embora começasse a voltar-se para a anglo-americana. Interessava-se por alguns romancistas e cineastas italianos, mas não, por exemplo, pelos poetas Novissimi e pelos ensaístas. E manifestava evidentes preconceitos contra a cultura de massas. Mesmo quando realista, ou neo-neo-realista, despreza o que considerava a cultura baixa e géneros e textos híbridos, a banda desenhada, a canção popular."  

Três décadas depois, numa universidade lisboeta, Pedro Moura, crítico e estudioso de BD, encontrava-se, embora em circunstâncias mais favoráveis, com a obra de Umberto Eco: “O meu curso tinha a cadeira de Linguística e interessei-me por semiologia. Lembro-me de ter comprado vários ensaios dessa disciplina. Em Apocalípticos e Integrados, o que mais me chamou a atenção foi o destaque dado à banda desenhada. O Eco tratava com rigor académico a banda desenhada. Outros já tinham escrito sobre o tema, mas sem os mesmos instrumentos de análise, em textos impressionistas, de opinião. Ele não, nisso foi claramente pioneiro.”

Os tempos, entretanto, tinham mudado. Nos anos 90, pareciam esbatidas as fronteiras entre alta e baixa cultura e, a par da semiologia, os contributos dos Estudos da Recepção e da Escola de Birmingham traziam um alívio a muitos leitores e espectadores. Parafraseando Eco, o entretenimento, a evasão, o jogo e o consolo já não tinham de ser sinónimo de automatismo, irresponsabilidade e gulodice desregrada, ideia partilhada por Pedro Mexia: “A descoberta de Apocalípticos e Integrados coincidiu com a minha propensão para gostar da alta e da baixa cultura. Sempre gostei muito de cinema, de música pop, e achei interessante o argumentário do Eco, a legitimação cultural que fez no livro."

Para o crítico literário, poeta e cronista do Expresso, interrogar a pertinência actual do debate desenvolvido pelo autor italiano conduz a uma reflexão curiosa. “Este artigo sai num suplemento que resolveu essa questão, ao tratar, ao mesmo tempo, de cinema, literatura, música pop, banda desenhada. Ainda há pessoas que acham que as coisas pertencem a patamares diferentes, mas creio que na prática a querela se resolveu, é pacífica."

Mas reler Apocalípticos e Integrados permite imaginar, pelo tom cauteloso e elegante da escrita de Umberto Eco, o ambiente do debate no interior da Universidade. “Em algumas passagens talvez esteja a pedir desculpa, mas temos de ter em conta o contexto em que o livro apareceu. Nos anos 60, o Eco parece um enfant-terrible, tem a capacidade de abordar assuntos que não eram considerados respeitáveis. Havia alguma provocação por um lado, humor até, mas também um interesse genuíno, um prazer”, diz Pedro Moura.


Umberto Eco com José Saramago na cerimónia de entrega dos prémios Príncipe das Astúrias, em 1998: a sua obra chegou a Portugal com mais de 20 anos de atraso SERGIO PEREZ/ REUTERS
Arnaldo Saraiva fala de uma sensibilidade, mas também da capacidade de projectar um olhar distinto sobre as coisas. “Foi hábil e ecléctico o suficiente para não se colocar do lado dos integrados, ou para não arrumar em compartimentos fechados a alta, a média e a baixa cultura. Diz quais são os prós e os contras da cultura ou da sociedade de massas e não deixa de mostrar o que há de complexo em mensagens aparentemente simples, o que há de interessante no kitsch, o que há de significativo e criativo no esforço de produção de efeitos ou na maquilhagem ideológica e publicitária."

Cultura(s) de nicho

Um dos aspectos que Pedro Mexia recorta da sua leitura é a ideia de uma estética da recepção, que terá levado, entretanto, a inevitáveis sobre-interpretações. “Para um crítico inteligente, todos os objectos são interessantes e creio que o Eco é um autor que vê coisas que nós não vimos. Mas tenho uma colecção de artigos e livros sobre a música dos The Smiths – e algumas canções aguentam as interpretações feitas, mas outras não. No livro, o artigo sobre o Charlie Brown justamente aguenta a leitura, as ideias do Eco. Gosto muito da descrição que ele faz da série como uma enciclopédia das fraquezas humanas. Encontra aí uma mundividência, como eu a encontro na obra dos The Smiths. Julgo que as coisas que nos marcaram quando éramos novos têm um valor que é independente do seu valor estético."

O ponto de vista de Pedro Moura sobre O Mundo de Charlie Brown não só é mais académico, como sinaliza uma transformação. “Há um lado emocional que não impede a análise crítica, mas vale a pena lembrar que esse artigo foi escrito, porventura, nos primeiros anos da década de 60, numa época em que a BD não tinha memória de si, não existiam edições históricas. Acaba por ser um texto impressionista, com considerações genéricas, sem prejuízo da interpretação sensível que faz." Para o estudioso de BD, a conclusão é muito clara. Já não é possível considerar esta disciplina artística como fazendo parte da cultura de massas, pois em quase todos os países ocidentais a sua circulação presente é muito mais diminuta do que nos anos 1960-1970. “Há uma fragmentação e uma atomização de culturas de nicho, e uma restruturação variada da sua produção. A BD, mesmo das personagens que têm presença nos grandes ecrãs, não vende assim tanto. Logo a análise cultural que se faz dela, hoje em dia, deve ser diferente daquela que o Eco cumpriu, por mais importante que tenha sido."

Se a música pop e a banda desenhada ganharam um estatuto académico, a verdade é que só com muito boa-vontade se nega a degradação dos sucedâneos hodiernos da cultura de massas. Basta ligar a televisão e rádio. Qualquer leitor concordará, por exemplo que acabaram traídas as expectativas cautelosas de Umberto Eco sobre a capacidade educativa da televisão. Pedro Mexia não discorda, mas complementa com um comentário que se articula com as mutações sofridas pela banda desenhada em termos de produção, circulação e recepção. “Uma pessoa letrada terá horror à televisão, sobretudo depois do espectáculo dos reality-shows, e, no entanto, a mesma pessoa concordará que tem havido melhor ficção nas séries americanas do que no cinema americano. Não é fácil negar a qualidade de séries com Os Sopranos, The Wire ou Mad Men. É claro que a televisão por cabo concorreu para isso. As coisas segmentaram-se, tribalizaram-se."

Cidadão, consumidor?

O mundo tornou-se mais complexo, mas as velhas dicotomias insistem em sobreviver. Se, como Pedro Mexia sugere, a controvérsia sobre a legitimidade cultural de certas artes parece sanada, a chama dos apocalípticos continua bem acesa. “Há a ideia de que a cultura chegou a um estado de exaustão, de que o cinema morreu, de que nas livrarias não há nada de interessante. É um discurso que se tornou muito comum. A hostilidade à massificação que o Eco refere, e identifica em autores com diferentes orientações políticas, não desapareceu”, afirma o crítico literário, que vislumbra nessa posição uma nota nostálgica. “Lembro-me de uma frase que julgo ser de George Steiner [ensaísta e crítico literário americano] em que ele diz que que as edições escolares têm cada vez mais notas de rodapé porque hoje os estudantes não sabem quem é Zeus. Há aí um lamento sobre uma progressiva perda de memória cultural."


Não será esse um lamento cada vez mais urgente? Afinal a situação ideal a que se refere Umberto Eco – a de um consumidor que também é cidadão – parece cada vez mais difícil de manter. “Acho que é muito complicado ou problemático impor qualquer dirigismo cultural, dizendo às pessoas o que devem querer, do que devem gostar”, responde Pedro Mexia. “Há aí uma dimensão que, não sendo equivalente, pode ser considerada paralela, que é a do cidadão enquanto votante. Não temos de dar, julgo eu, a sua escolha como boa ou má, apenas como válida. De outro modo, [muitos] não votariam. É verdade que há 50 mil pessoas que já viram O Pátio das Cantigas… Era melhor que acompanhassem o ciclo do Tati? Talvez, mas que alternativa nos resta?”

Pedro Mexia não se considera um optimista, mas elogia o acesso das pessoas à cultura e a importância da divulgação das grandes obras, posição em que Pedro Moura também se revê não sem enfatizar, no âmbito do seu trabalho, certas condições: “Para se criar um discurso crítico, temos de ser exaustivos e por vezes movidos pelos nossos princípios éticos, que têm de ser inabaláveis, ou não o serão, mas ao mesmo tempo é isso que o Eco discute como o equilíbrio entre ser-se apocalíptico ou integrado. Um excesso dessas posições não é bom." Arnaldo Saraiva procura o mesmo equilíbrio. Inspirado pelo contributo de Umberto Eco – uma referência incontornável, com Roland Barthes, para os ensaios de Literatura Marginalizada (1975-1980) e do livro Canções de Sérgio Godinho (1977-1983), títulos relevantes, a (re)descobrir na sua produção intelectual –, o professor e investigador não se vê como um apocalíptico: “Não, não sou. Mas não esqueço a advertência de Eco. Por vezes os apocalípticos fazem o jogo dos integrados, e vice-versa. O jornal, a rádio, o cinema, a televisão, o computador produziram grandes acelerações na educação e na democratização das sociedades. Mas sei do mal que fazem quando se submetem aos poderes económicos, políticos e religiosos, ou manipulam, narcotizam e imbecilizam as pessoas. As televisões de hoje cumprem quase todas, despudoradamente, este papel. E a Internet, com todo o bem que trouxe à humanidade, veio favorecer e facilitar as maiores perversões e falsificações." 
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Reportagem

Quando caiu o muro de Berlim havia mais 16 a separar fronteiras no mundo, agora há 65

A Hungria está a fechar, com um muro e arame farpado, a sua fronteira com a Sérvia Laszlo Balog/Reuters

Por todo o mundo cresce a tentação do muro. Mas os especialistas são unânimes em dizer que não são eficazes. Só dão uma ilusão de segurança.


A mundialização aboliu as fronteiras para os mercados, mas para os seres humanos foram erguidos muros em todo o mundo, por causa das preocupações com a segurança e o desejo de conter a imigração ilegal, apesar de os especialistas duvidarem da sua eficácia a longo prazo. Há um quarto de século, quando caiu o muro de Berlim, havia 16 muros a defender fronteiras no mundo. Hoje há 65, construídos ou em vias de ficarem prontos, diz Elisabeth Vallet, da Universidade do Quebeque.

Do muro de separação israelita (a que os palestinianos chamam “muro do apartheid”), à barreira de arame farpado de quatro mil quilómetros que a Índia construiu na fronteira com o Bangladesh, ou ao enorme dique de areia que separa Marrocos das regiões detidas pela rebelião da Polisário no Sara, os muros e as barreiras são cada vez mais populares entre os políticos desejosos de parecerem firmes em matérias de migração e segurança.

Em Julho, o governo conservador húngaro iniciou a construção de uma barreira de quatro metros de altura ao longo da sua fronteira com a Sérvia, para tentar travar a entrada dos refugiados que fogem da Síria, do Iraque e do Afeganistão. “Derrubámos os muros da Europa, não devíamos erguê-los de novo”, disse na altura um porta-voz da União Europeia.

Três outros países — o Quénia, a Arábia Saudita e a Turquia — fortificaram as suas fronteiras para impedir a infiltração de jihadistas vindos dos países vizinhos, da Somália, do Iraque e da Síria.

Apesar de serem símbolos agressivos, a sua eficácia tem sido relativa, dizem os especialistas. “A única coisa que estes muros têm em comum é que são sobretudo cenários de teatro”, defende Marcello Di Cintio, autor do livro Murs, voyage le long des barricades. “Eles dão uma ilusão de segurança mas não uma verdadeira segurança”.

Apesar destes obstáculos, os migrantes conseguem passar, a cocaína nunca faltou nas ruas de Manhattan ou os cigarros de contrabando em Montmartre. Nem o muro de Berlim conseguiu ser totalmente estanque, apesar dos sentinelas que disparavam a matar.

Os que defendem os muros dizem que é preferível haver fugas do que inundações, mas para Marcello Di Cintio as consequências psicológicas da edificação destas barreiras não podem ser ignoradas. Fala na tribo de índios americanos Tohono O’odham, onde morreram pessoas, aparentemente de tristeza, quando o muro que separa o México dos Estados Unidos lhe cortou o acesso a lugares sagrados.

Foi nos anos de 1970 que o psicólogo berlinense Dietfried Muller-Hegemann falou na “doença do muro” — fortes taxas de depressão, alcoolismo e violência familiar em famílias que viviam coladas ao muro que separou a cidade em duas.

Na verdade, os muros nada mudam nas causas profundas da insegurança ou da imigração: a construção de todas estas barreiras não diminuiu os números de asilo ou os ataques terrorista. Levaram, apenas, os grupos a adaptar-se.

Segundo Reece Jones, professor na Universidade do Hawai e autor de Border Walls: Security and the War on Terror in the United States, India, and Israel, “o encerramento das fronteiras só faz deslocar o problema, levando os migrantes através de desertos terríveis ou para embarcações no Mediterrâneo. E isso só aumenta o número de vítimas”.

Mais de 40 mil pessoas morreram desde 2000 ao tentarem imigrar, diz a Organização Mundial de Migrações.

Para Emmanuel Brunet-Jailly, da universidade canadiana de Victoria, “a actual vaga de migrantes diz aos políticos que os muros são necessários”. “Porque apelam aos velhos mitos das fronteiras, à linha traçada na areia. O que torna mais difícil que a opinião pública aceite o facto de a cooperação, a diplomacia e a partilha de informação, serem mais eficazes a longo prazo”.

Algumas barreiras 
 
Hungria — É o muro mais recente, obra que o Governo conservador quer ter concluída amanhã. São 177 km ao longo da fronteira com a Sérvia.

Espanha/Marrocos — Os enclaves espanhóis de Ceuta e Melilla, na costa marroquina, estão cercados por barreiras. Muitos morreram ao tentar saltá-las, outros foram mortos pelas tropas marroquinas.

Grécia/Turquia — A melhoria das relações bilaterais e o levantamento das minas na fronteira levou a que a zona se tornasse num dos principais pontos de entrada de migrantes na União Europeia. O muro de Evros foi edificado em 2012.

Arábia Saudita/ Iraque — Perante a ameaça do Estado Islâmico, os sauditas estão a alargar uma barreira que já existia, de sete metros de altura, para 900 quilómetros; terá 78 postos de observação, oito centros de comandos e 32 postos de reacção rápida.

Israel — A construção do muro separando Israel dos territórios ocupados começou em 2002 com o objectivo de o proteger de ataques palestinianos. Os detractores dizem que foi um pretexto para confiscar terras e estabelecer uma fronteira de facto, violando acordos.

EUA/México — O Presidente Bill Clinton começou a reforçar a fronteira nos anos 1990. A crença de que por ali entravam membros da Al-Qaeda justificou a aposta em barreiras sólidas. A imigração estará no centro da campanha presidencial de 2016.

Índia/Bangladesh — Em 1993 a Índia cobriu a sua fronteira com o Bangladesh com arame farpado para tentar reduzir o número de imigrantes. A decisão abriu a disputa sobre o traçado da fronteira e cem mil pessoas ficaram em terra de ninguém, sem serviços públicos.

Chipre — Um muro continua a cortar em duas a capital, Nicósia, dividida entre a parte grega e a parte turca da ilha desde a invasão turca de 1974.

Irlanda do Norte — Há em Belfast 99 “linhas de paz” que separam católicos e protestantes; as mais antigas são de 1969. Apesar de acordos de paz, o número aumentou.
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Reportagem 

OS NOVOS MUROS DA EUROPA


 
Perante a maior crise de refugiados do pós-guerra, países como a Bulgária e a Hungria responderam com novos muros. Está a Europa a voltar aos tempos em que a política externa é feita de arame farpado?
“Não há volta atrás numa Europa multicultural. Nem para uma Europa cristã, nem para o mundo das culturas nacionais. Se fizermos um erro agora, ele continuará para sempre.”

Foi assim que, no início de junho, o primeiro-ministro da Hungria, Viktor Órban, se referiu à crise dos refugiados, que neste ano já levou 300 mil pessoas a atravessar o mediterrâneo em direção ao Sul da Europa. Muitos procuram chegar a países mais prósperos do que a Grécia ou a Itália, abrindo caminho em direção à Alemanha, Reino Unido ou Suécia. Entre uns e outros está a Hungria — onde nos últimos dias têm entrado mais de 2 mil refugiados por dia.

Não terá sido em vão que Órban — um homem controverso, mas com amplo apoio no seu país, que tem merecido as críticas da Comissão Europeia — disse aquelas palavras. Duas semanas apenas depois dessa ocasião, o governo húngaro anunciava a construção de um muro que vai atravessar a totalidade da fronteira magiar com a Sérvia, a Sul. Ao todo, serão 175 quilómetros de uma vedação de aço e arame farpado que visa impedir uma das rotas mais usadas pelos refugiados (ou, tecnicamente falando, candidatos ao estatuto de refugiado) que fogem da guerra e outros conflitos localizados na Síria, Iraque, Afeganistão, Somália, Eritreia, Sudão, etc.

“Se o permitirmos, as migrações em massa podem consistir em milhões, dezenas de milhões ou até centena de milhões de pessoas”, disse Orbán, já em julho, quando os trabalhos já avançavam a toda a velocidade na fronteira com a Sérvia.

Apesar de o muro entre a Hungria e a Sérvia ser o maior desta natureza a ser construído na Europa, houve outros que o antecederam. Os primeiros foram construídos por Espanha, mas em enclaves no continente africano — Ceuta (erguido em 1993, com 9 quilómetros) e Mellila (1998, 12 quilómetros).
14 anos depois, em 2012, o continente europeu voltou a conhecer um muro — embora não tão robusto quanto aquele que tombou em Berlim, em 1989. Trata-se de uma vedação com um total de 12,5 quilómetros, encimada por uma linha de arame farpado, junto à aldeia helénica de Nea Vyssa. Os números mais recentes provam a ineficácia desta estrutura: só em julho entraram 50 mil pessoas no país e em 2015 o número total já é de 200 mil, segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados. Ou seja, um aumento de 750% em relação ao ano passado.

Mais recente — embora de uma dimensão reduzida — é a vedação de 1,5 quilómetros em Calais, no Norte de França, ao longo da entrada para o Canal da Mancha, que vai dar a Folkestone, no Sul de Inglaterra. Esta estrutura, com pouco menos de 4 metros de altura, é temporária e será aumentada. Ao todo, o Reino Unido irá gastar quase 31 milhões de euros em novas vedações, instalação de câmeras de vigilância, de sistemas de detecção por raios infravermelhos e focos de luz.
Rotas-Refugiados-Muros
Outro exemplo, com provas dadas de eficácia e, por isso, um caso de inspiração para o governo húngaro, é aquele que separa parte da Bulgária da Turquia. Mandado erguer pelas autoridades de Sófia, a vedação de 30 quilómetros foi finalizada em setembro de 2014 — mas, um mês antes, o governo búlgaro já afirmava a sua intenção de juntar outros 130 quilómetros à estrutura. Além da vedação em si, existe um sistema de vigilância em torno da fronteira.
 
“A polícia tem postos onde há salas com mais de dez écrãs, com imagens de câmeras onde dá para fazer zoom”, conta ao Observador Mathias Fiedler, do projeto Border Monitoring Bulgaria. “É como se fosse uma loja. Se quisermos roubar alguma coisa, o segurança vê e vai logo atrás de ti. Mas mesmo assim não conseguiram impedir todas as tentativas de entrada.”

Ainda assim, os números sugerem que a estratégia do governo búlgaro funciona. Em 2013, quando o muro ainda era só uma ideia, as autoridades conseguiram evitar que 16 736 pessoas entrassem, de acordo com números oficiais. No ano seguinte, o número mais do que duplicou: 38 502.

Nações Unidas criticam controlo fronteiriço búlgaro

Estes números condizem com as denúncias de pushback nas fronteiras búlgaras — isto é, quando as autoridades, em vez de acolherem quem pede asilo, repelem aqueles que chegam. Por exemplo, em março deste ano, dois iraquianos da minoria Yazidi morreram de hipotermia em solo turco, depois de fugirem das autoridades búlgaras que tentavam impedir-lhes a entrada no país. Nessa ocasião, o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, dirigido por António Guterres, lançou um comunicado onde se afirmava “particularmente perturbado pelas histórias de brutalidade que podem ter contribuído para a morte destas duas pessoas que, sendo membro da comunidade perseguida Yazidi, seriam provavelmente refugiados”.

Em março, o governo búlgaro deixou de dar uma
pensão mensal de 33 euros aos 
refugiados que se encontram no país. 
 
Fiedler, que está em permanente contacto com refugiados e as autoridades, comenta que histórias como esta contribuíram para a formação de uma ideia entre os refugiados: “‘Não vamos passar pela Bulgária, eles matam-nos'”.

Por outro lado, a opinião pública búlgara não é das mais favoráveis à entrada de estrangeiros no país. Nas eleições legislativas de 2014, 17,5% dos votos foram distribuídos entre três partidos de extrema-direita xenófoba. Uma deputada de uma destas forças políticas, o Ataka, Magdalena Tacheva, referiu-se aos refugiados que chegam ao país como “assassinos em série”, “selvagens”, “fundamentalistas islâmicos que fogem à justiça” e “canibais”.

E segundo uma sondagem de novembro de 2014, 83% dos inquiridos responderam que a entrada de refugiados na Bulgária é um risco para a segurança nacional — uma posição que pode ter sido influenciada pelo facto de, no verão de 2012, um atentado do Hezbollah ter morto sete turistas israelitas na estância balnear de Burgas, no mar Negro.

Ao mesmo tempo, o governo conservador de centro-direita, liderado pelo primeiro-ministro Boiko Borisov, cortou em março a pensão mensal de 33 euros a que cada refugiado tinha direito — o salário mínimo da Bulgária, atualmente nos 184 euros, é o mais baixo da Europa.

Muro húngaro é “caro e muito pouco inteligente”

Não é muito diferente a receção dada aos refugiados e outros estrangeiros na Hungria, onde o governo fez questão de afixar cartazes a dizer “Se vem para a Hungria, tem de respeitar as leis” e “Se vem para a Hungria, não tire os empregos aos húngaros”. Além disso, o governo húngaro aprovou uma série de medidas que dificultam os pedidos de asilo. Uma delas foi a redução, para um prazo de somente oito dias, para um refugiado recorrer em tribunal caso lhe seja negado o estatuto. Outra, foi a inclusão da Sérvia como um “país de origem segura” — o que, para efeitos práticos, retira a obrigatoriedade das autoridades húngaras de receberem as pessoas que lhes chegam a partir do país vizinho. Por cima disso, atravessar a fronteira da Hungria ilegalmente passou a ser punido com quatro anos de prisão.
E, claro, o muro, que, se tudo correr de acordo com o que foi planeado, estará concluído esta segunda-feira.

"Se vem para a Hungria, não tire 
os empregos aos húngaros."
Mensagem escrita em cartazes financiados pelo governo da Hungria 
e distribuídos por todo o país 
 
Para Juliá Iván, do Comité de Helsínquia da Hungria, uma ONG internacional pela defesa dos Direitos Humanos, a construção do muro de 175 quilómetros de arame farpado ao longo da fronteira com a Sérvia é uma medida “cara e muito pouco inteligente”, conta ao Observador por telefone.

“Estas pessoas [os refugiados] estão à procura de proteção e deixá-los fora do território europeu não é uma solução. A História mostra-nos isso. E os números também. O número de refugiados está a subir, porque eles entram na mesma e como podem. Através das linhas de comboio, ou então cortam as vedações, passam por baixo delas, passam por cima… E além disso vão para outras fronteiras, como na Roménia ou na Croácia.”

Esta hipótese foi colocada por um jornalista da BBC ao porta-voz do governo húngaro Zoltan Kovacs, a quem referiu a determinação de refugiados em entraram na Hungria através da fronteira com a Roménia (443 quilómetros) ou com a Croácia (329 quilómetros). “Se necessário, também construiremos barreiras nesses sítios”, respondeu-lhe o responsável.

Para já, enquanto o muro com a fronteira na Sérvia é construído, Iván faz notar que o resultado é, para já, precisamente o contrário que o governo de Órban desejaria. “É muito estranho, até irónico, como estas coisas funcionam. Em junho, antes de o governo falar do muro, tinham entrado entre 800 a mil pessoas vindas da Sérvia. Só ontem, foram 2 500!”

“Quem gostaria de encontrar um afegão na sua casa?”

O resultado do aumento de entradas de refugiados, aliado com a dificuldade de obter o estatuto de refugiado, pode ser visto, por exemplo, no centro de Budapeste, mais propriamente na estação de comboios de Keleti. É à volta deste edifício do século XIX que se juntam muitas das caras da maior crise de refugiados do século XXI. “É a primeira vez que vemos uma população de refugiados urbana”, explica Iván. “A maior parte deambula pelas ruas, alguns têm tendas, outros nem isso. Ficam pela estação ou pelos parques e praças em volta. As pessoas passam por eles e ficam desagradados, muitas vezes. E a empresa ferroviária trata-os de uma maneira muito desumana. Não os deixam entrar na estação de qualquer maneira, não podem ir para as zonas de espera, não podem ir à casa de banho… Nada.”

"Às vezes [os refugiados] entram para dentro de estaleiros para dormir lá ou para mudarem de roupas. E de vez em quando o dono chega e eles estão lá dentro. Quem é que gostaria de encontrar um afegão ou uma família africana assim, na sua casa?"
László Toroczkai, autarca de uma aldeia húngara na fronteira com a Sérvia 
 
Mas não é só nas grandes cidades que esta postura perante os refugiados se verifica. Nas aldeias, sobretudo naquelas que estão junto à fronteira, este é um sentimento preponderante. Em Ásotthalom, uma localidade de 4 mil pessoas no Sul do país, há milícias de populares armados que auxiliam as autoridades na patrulha da fronteira onde, não tarda muito, haverá um muro de 4 metros de altura. O autarca local, László Toroczkai, pertence ao Jobbik, o partido de extrema-direita muitas vezes rotulado de nazi, foi eleito com mais de 70% dos votos.

“Às vezes [os refugiados] entram para dentro de estaleiros para dormir lá ou para mudarem de roupas. E de vez em quando o dono chega e eles estão lá dentro. Quem é que gostaria de encontrar um afegão ou uma família africana assim, na sua casa?”, disse numa entrevista recente ao Irish Times. Um dos êxitos mais recentes deste edil de 37 anos foi ter conseguido reunir mais de 14 mil euros em donativos para que fosse comprado um novo jipe para a patrulha da fronteira. Até agora, esta era assegurada por um velhinho Lada Niva — um jipe russo, ainda dos tempos em que “o muro” era a Cortina de Ferro.

Mais um tijolo no muro?

“Ainda agora derrubámos os muros na Europa, não devíamos estar a erguê-los de novo”, disse Natasha Bertaud, uma porta-voz da Comissão Europeia, depois do anúncio da construção do muro húngaro. Não foi por acaso que Bertaud evocou os murros entretanto derrubados — a Hungria, tal como a Bulgária, era um dos países por trás da Cortina de Ferro. É uma memória ainda fresca para quem viveu esses tempos, em que a Europa (e, de certa forma, o mundo) estava dividido em dois: União Europeia e União Soviética, Ocidente e Leste.

A Cortina de Ferro (termo cunhado por Winston Churchill no discurso em 1946) era, sobretudo, simbólica — uma linha imaginária de quase 7 mil quilómetros, ao longo da qual, de forma localizada, havia vedações, controlos de fronteira apertados e até um muro bastante concreto, em Berlim. Em 1991, com a queda da União Soviética, desapareceu a dicotomia até aí prevalecente — dando lugar à União Europeia dos 28 e à livre circulação no espaço Schengen, do qual a Hungria faz parte e no qual a Bulgária pretende entrar.

69 anos depois do “Discurso da Cortina de Ferro” de Churchill e outros 24 desde o fim da União Soviética, a Europa torna a construir novos muros. Mas será que pode haver algum tipo de comparação entre um tempo e outro?
Juliá Iván, do Comité de Helsínquia húngaro, fala em “ligações” entre os muros de hoje com os de outrora, mas com uma ressalva. “Os tempos são outros. Nesses tempos havia uma ordem para atirar contra quem passasse a fronteira e isso hoje não acontece”, explica, para depois contrapor com algo que lhe parece incontornável: o simbolismo. “É pelo simbolismo que as coisas começam e isso é inegável. A maneira como vemos o discurso público em torno dos refugiados, a maneira como eles são representados… Como se fosse uma ameaça à nossa paz, à nossa estabilidade europeia, quando a única coisa que eles procuram é um sítio pacífico onde possam retomar as suas vidas. 25 anos depois, estes muros representam o regresso a uma retórica de confronto.”

"Antigamente, o objetivo do muro era não deixar que as pessoas saíssem. Hoje, servem para que outros não entrem."
Dimitar Bechev, diretor do Instituto de Estudos Europeus da Universidade de Sófia 
 
Para Dimitar Bechev, diretor do Instituto de Estudos Europeus da Universidade de Sófia, o paralelismo faz “algum sentido” mas, ainda assim, não é o mais acertado. “Os muros de hoje não são como os de outrora, até porque não são tão militarizados como no passado.” Além disso, explica, os propósitos destas novas barreiras não são os mesmos: “Antigamente, o objetivo do muro era não deixar que as pessoas saíssem. Hoje, servem para que outros não entrem.”

Para o académico, a solução para a crise dos refugiados — a maior na Europa desde o fim da Segunda Guerra Mundial — terá de passar por um equilíbrio entre “solidariedade e interdependência” dos estados-membros. Iniciativas como a da Alemanha, que conta receber um total de 800 mil sírios em 2015, podem ser um pontapé de saída para uma solução. O olhar é, por isso, “para o futuro e não para o passado”, explica Bechev. Para uma política que passe pela diplomacia em vez de uma que assenta em muros de arame farpado. Até porque, acredita, “muros e vedações não ajudam, são puramente simbólicos e ineficazes, é algo que os países da periferia europeia fazem com o intuito de conseguir algo a curto prazo.”
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REPORTAGEM POR  João de Almeida Dias
FONTE: Site de Portugal: O observador, 29/08/2015

sábado, 29 de agosto de 2015

Contra mudança climática religiosos são difusores de mensagens pelo meio ambiente

arquivopessoal
 
 Maria Rita Villela é antropóloga e doutoranda em Ciências Sociais na Pontifícia 
Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ).
 Foto: Arquivo Pessoal.
Ana Clara Jovino
 
Adital
 
Metas e medidas para proteger a natureza das ações destrutivas do homem e amenizar os impactos das mudanças climáticas, como reduzir a emissão de gases de efeito estufa, estão sendo preparadas por vários países para contribuírem com a Convenção das Nações Unidas sobre o Clima (COP21), que acontece entre o fim de novembro e início de dezembro deste ano, em Paris [França].

Uma dessas contribuições foi firmada no último dia 25 de agosto, na cidade do Rio de Janeiro, quando lideranças de 12 comunidades religiosas nacionais e internacionais assinaram a Declaração Fé no Clima. Este é um documento informal do segmento religioso brasileiro para a COP21. O evento foi promovido pelo Instituto de Estudos da Religião (Iser).

Para falar sobre a relação das religiões com o tema socioambiental, a Adital entrevistou a antropóloga Maria Rita Villela, pesquisadora do Programa de Meio Ambiente e Desenvolvimento do Iser. Ela diz acreditar que a mobilização dos/as religiosos/as em torno da temática é importante por eles serem grandes propagadores de mensagens.
osservatoreromano
O Papa Francisco e outros líderes de diversas religiões, como judeus, muçulmanos, ortodoxos, anglicanos, budistas e hindus, devem ser porta-vozes da mensagem de defesa do planeta. Foto: Osservatore Romano. 

ADITAL - Qual a importância das lideranças religiosas levarem para suas comunidades o debate sobre as mudanças climáticas, em linguagem de fácil acesso, que estimule a reflexão sobre como os homens podem transformar os modos de vida?
Maria Rita Villela – Vemos, atualmente, que a ciência especializada e as comunidades mais vulneráveis aos efeitos das mudanças climáticas, como os eventos extremos, muita chuva concentrada em pouco tempo, longos períodos de estiagem etc. conseguem compreender mais diretamente esse fenômeno e suas dramáticas consequências sobre a vida no Planeta. Contudo, a maior parte das pessoas que não sente diretamente os efeitos das mudanças ambientais globais não consegue entender como esses eventos se relacionam com as suas escolhas de vida.

A fala religiosa, que explica a sacralidade da criação, introduz um imperativo ético e moral de conduta, que mostra a responsabilidade de cada um dos seres humanos diante da complexidade de fatores que contribuem para a manutenção da vida na Terra. Coloca a natureza no plano do sagrado, e o sagrado não devemos corromper.

Apresenta a perspectiva do cuidado que se deve ter com o presente de Deus ou com as entidades divinas que, em algumas tradições, se manifestam em elementos da natureza. Desse modo, a linguagem sagrada religa (que é a origem da palavra religião) o ser humano com o que nos cerca, e esta aproximação pode gerar resultados mais tangíveis de sensibilização e mobilização.

Adital - Como a senhora avalia as ações que as comunidades religiosas efetuam para protegerem a natureza e enfrentarem as mudanças climáticas? Elas resultam em avanços significativos?
MRV - As ações das comunidades religiosas costumam ir na direção da educação e da sensibilização, embora, muitas tradições tenham avançado em projetos de energia solar, agricultura agroecológica, projetos piloto de bioconstrução, entre outros. Dito isto, é ainda difícil medir, e isso requereria uma pesquisa ampla específica sobre o assunto, os resultados tangíveis em termos de redução das emissões ou a diminuição do desmatamento, ou a busca por novas fontes de energia dessas iniciativas no plano, digamos, bruto, como diria [o mestre budista] Lama Padma Samten.

Mas as religiões agem, como nenhum outro segmento, no plano sutil. Provocam reflexões, questionamentos, ensinamentos e explicações, que têm resultados menos tangíveis, mas não menos importantes, no plano pessoal, espiritual, energético, comunitário. Isto é difícil medir, mas poderemos ver resultados significativos ao longo dos anos. É como uma semente plantada debaixo da terra, que ninguém vê, germina lentamente, brota delicadamente, antes de virar uma árvore forte e muito maior do que nós mesmos. Essa é a nossa esperança.

ADITAL - Qual o papel das lideranças religiosas engajadas com o tema socioambiental na COP21?
MRV - As lideranças religiosas falam para suas comunidades de fé sobre os mais diversos assuntos e influenciam perspectivas e modos de agir. A partir do momento em que religiosos do mundo passam a evocar o tema socioambiental e climático em suas narrativas, temos milhares e milhares de pessoas a quem esse tema chega, em uma linguagem acessível, fácil de apreender.

As COPs são eventos políticos que geram imensas mobilizações. Ter comunidades religiosas também sensibilizadas, gerando burburinho e fazendo barulho com relação às metas dos países mostra que as decisões que forem tomadas nessa Cúpula estão sendo, no mínimo, acompanhadas por muita gente, para não dizer influenciadas por elas.

Mas, independente das COP, a mobilização dos religiosos em torno desse tema é importante por eles serem grandes propagadores de mensagens e essa é realmente uma que acho que valha a pena espalhar, pelo bem de todos.


A COP21, que será realizada em Paris, é um dos principais espaços de proposição de medidas para conter impactos ambientais negativos. Foto: Reprodução.   

ADITAL - Depois do lançamento da encíclica do Papa Francisco, Laudato Si’, o cuidado com o meio ambiente vem sendo bastante discutido em todo o mundo. A senhora acha que isto influenciou também as religiões a começarem a abordar o tema em seus discursos?
MRV - Sim e não. As religiões já abordam a relação do ser humano com a natureza há milênios. Então, não acho que possamos dizer que as religiões como um todo passaram a se preocupar mais com o tema ecológico ou com as mudanças climáticas como resultado da Encíclica. Até porque é uma minoria de pessoas que tem acesso ao texto, que tem mais de 100 páginas.

Contudo, acredito na importância da Encíclica como um documento mais que religioso, humanitário, que marca um momento de necessidade de convergência entre humanos e a "nossa Casa Comum”, como Papa Francisco coloca. Assim, creio que o texto seja de importância geral para todas as pessoas, religiosas e não religiosas, pois aponta para os grandes desafios das sociedades contemporâneas. 

Certamente a Encíclica tem influência na agenda católica e cristã mais ampla e isto, em si, já é um grande resultado. Mas, em se tratando de religiões de outras matrizes, não creio que a Encíclica possa ter uma influência tão direta. Em minha perspectiva, as religiões que já abordavam a ecologia irão continuar a fazê-lo e aquelas que não abordavam talvez incorporem o tema, não por resultado direto da Encíclica, mas porque vivemos em um momento de crise de valores que gera incompreensão e destruição, e esse quadro, se tornando cada vez mais evidente, será impossível ignorar.

ADITAL - Especialistas consideram audaciosa a proposta brasileira de zerar as emissões de gases de efeito estufa até 2100, que será apresentada na COP21. O que a senhora pensa sobre isto? E o que as lideranças religiosas poderiam fazer para que as metas fossem cumpridas?
MRV - O Brasil tem se gabado de ter uma matriz energética limpa e ter controlado o desmatamento nos últimos anos, o que nos coloca em uma vantagem em relação aos demais grandes países emissores, mas isto não quer dizer que, num futuro próximo, o Brasil não possa estar entre os maiores emissores em geração de energia e em mudança de uso do solo. Porque, se não houver planejamento e incentivos apropriados, e tendo em vista o petróleo do pré-sal, nós rapidamente podemos ocupar postos altos no rol de emissores de GEE [Gases de Feito Estufa].

O que se espera é que o governo apresente metas de longo prazo para uma matriz energética mais renovável ainda (incluindo solar e eólica), a diminuição dos incentivos aos combustíveis fósseis e o reflorestamento, e não apenas o controle do desmatamento. Assim, podemos, sem muito sacrifício, chegar a zero emissão e ficar assim por muito tempo. Eu gosto de metas mais em longo prazo e, portanto, mais audaciosas.

As lideranças religiosas podem buscar explicar de um jeito mais acessível quais são esses dilemas nacionais em torno das emissões. E como isso influencia a vida das pessoas. E o que as pessoas podem fazer para influenciar politicamente quem toma as decisões na Cúpula, mas também na sua casa, na sua comunidade, na escola. Quanto mais gente entender sobre esse assunto, melhor.
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O Papa Francisco, na Encíclica Laudato Si, discute meio ambiente a partir da crítica ao sistema capitalista. Foto: Reprodução.  

ADITAL - O que a senhora tem a dizer sobre como o Papa Francisco está conduzindo a questão do cuidado com o planeta?
MRV - Sou super fã do Papa Francisco. Achei a Encíclica emocionante e gostosa de se ler. Como lido com o tema ambiental e climático há muitos anos, foi quase como a realização de um sonho ver tanta gente falando sobre isso — até o Papa. Fiquei feliz e esperançosa por melhores dias.
Achei que ele toca num ponto crucial, que é difícil de ser enfrentado, que é o questionamento do modelo econômico vigente. Isso tudo em uma prosa agradável e bela. Agora, a Igreja Católica terá por missão fazer repercutir o mandato em todas as paróquias. Precisamos, agora, acompanhar, para sermos capazes de analisar os efeitos concretos que esse documento, que é voltado para a ação, terá na comunidade católica e em "nossa Casa Comum”.
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Fonte: Adital 28/08/2015

QUALIDADES DA FÉ

Frei Betto* 
 
A fé é a adesão da inteligência ao mistério, a algo ou alguém que se pode sentir sem, no entanto, provar. Não é irracional, é suprarracional. 
 
Em toda relação amorosa a fé é o vínculo que une. Não há equação que convença João de que seu amor por Maria é cientificamente equivocado. Ou vice-versa. Um confia (com fé) no outro.
Marx, Freud e tantos pensadores tentaram nos convencer de que a fé é uma ilusão ou alienação. Projeta-se no Céu o que se desejaria desfrutar na Terra. Nenhum dos dois conheceu a fé libertadora manifestada, hoje, pelo papa Francisco. 

O Iluminismo confinou as convicções na razão e, assim, desencantou o mundo, como frisou Max Weber. "A razão é a imperfeição da inteligência”, proclamava meu confrade Tomás de Aquino. 

Há muitas qualidades de fé. Paulo Patarra, militante comunista e meu chefe na revista Realidade, se queixava de que Deus não o havia provido de fé. Professava o salmo às avessas. 

Alberto Schweitzer, ao duvidar da divindade de Jesus, abraçou radicalmente a ética do Nazareno e abandonou a filosofia, a teologia e a música para cuidar, na África, de doentes pobres. 

Jung, na contramão de Freud, afirmava "não preciso acreditar. Eu sei.” Ecoou a profissão de fé de Jó, o mais enigmático crente de toda a Bíblia: "Antes eu só te conhecia de ouvir falar, mas agora meus olhos te viram.” 

Jó foi desafiado a mostrar sua fé em um Deus que o privava do que ele mais amava. Mergulhou na "noite escura”, mais tarde cantada por João da Cruz. E confiou (com fé), até que a aurora irrompeu. 

O amálgama entre Ocidente e Cristianismo banalizou a opção de fé. Rara a Igreja que proporciona a seus fiéis educação da fé conforme as idades infantil, jovem e adulta. Muitos cristãos adultos vestem a calça curta da fé. Guardam a mesma fé da catequese infantil. 

Outros abdicam do senso crítico para aderir, como cordeiros a serem tosquiados, à palavra do bispo ou pastor. Confundem autoridade e verdade. 

É triste constatar que muitos políticos corruptos, e profissionais indiferentes aos direitos dos pobres, são ex-alunos de colégios e Universidades católicos. É de se perguntar: escolas confessionais ou meras empresas de formação de mão de obra qualificada para o mercado? Qual a qualidade da evangelização feita por instituições cristãs? 

Fé em Jesus é fácil. Embora poucos se interessem em estudar os Evangelhos e o contexto em que viveu Jesus para melhor entender a sua proposta. 

O desafio é ter a fé de Jesus. Fé que identificava Deus como Pai amoroso, reconhecia-O na face dos pobres, denunciava fundamentalistas e opressores, centralizava-se na justiça e no amor.
Será que nós, cristãos, cremos no mesmo Deus de Jesus?
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* Frei Betto é escritor, autor de "Um Deus muito humano – um novo olhar sobre Jesus” (Fontanar), entre outros livros.
Fonte: Adital 28/08/2015

sexta-feira, 28 de agosto de 2015

Há uma solidão que faz bem aos negócios. A dos introvertidos

O sucesso não é determinado por características de personalidade, mas é importante saber tirar partido delas. 
Se é introvertido, não se aflija: saber estar sozinho 
pode ser uma vantagem competitiva.


Estar sozinho e gostar de estar sozinho. É daqueles que procura ouvir-se no espaço que conhece melhor – o seu – em silêncio? E que ao mesmo tempo tem uma equipa de 50 ou 100 pessoas para gerir? Não se aflija: a gestão também sai a ganhar com a introversão. (E não, não estamos a falar de timidez.) Sabe quem é Mark Zuckerberg, o fundador do Facebook? Aos 31 anos tem uma fortuna pessoal estimada em 34 mil milhões de euros, segundo a Forbes. E sim, é introvertido.

Se, quando pensa num empreendedor, ou gestor de sucesso, vê alguém muito efusivo, aberto e com uma vida social muito preenchida, pense melhor. O sucesso não é consequência exclusiva dos extrovertidos. Nem dos introvertidos. Mas depende da forma como cada um deles lida com as características que os inserem ou afastam da vida social – que são, no fundo, vantagens competitivas. Sem querer estereotipar, pensemos apenas em características comuns: porque não usar cada uma delas para progredir?

Susan Cain, autora do livro “Silêncio – O poder dos introvertidos num mundo que não para de falar” lançou este ano, nos Estados Unidos, o Quiet Leadership Institute, uma consultora que pretende ajudar as empresas a retirar proveito das características dos colaboradores mais introvertidos. E ajudá-los a crescer.

Ao The Wall Street Journal, Susan Cain disse que os introvertidos não estão interessados em liderar por glória pessoal e que o seu foco está em criar algo no mundo, e não em si mesmos. “Os bons empreendedores são capazes de dar a si próprios a solidão que precisam para pensar e agir criativa e originalmente – para poderem criar algo onde antes não existia nada”, disse. Não têm medo da solidão.

Beth Buelow, fundadora  do site The Introvert Entrepreneur, acrescentou que os introvertidos tendem a pensar muito antes de decidirem o que quer que seja – e antes de a comunicarem aos outros. Enquanto os extrovertidos tendem a construir a maior parte da suas ideias no discurso e na interação com os outros.
Os melhores líderes de negócios não são necessariamente os melhores oradores, mas são os melhores ouvintes, aqueles que fazem as perguntas certas”, disse.
Para Pedro Barbosa da Rocha, psicólogo especialista em stress e bem-estar na Oficina de Psicologia, nenhuma destas características é, por si só, determinante para o sucesso de uma organização. Mas devem ser utilizadas de maneira diferente, pelas pessoas, que também são diferentes. Se por um lado, a solidão ajuda a analisar e a ponderar, por outro, a extroversão ajuda a reagir.
Se estivermos perante uma tarefa que requer rapidez de raciocínio e de resposta, uma pessoa extrovertida pode ter algum tipo de vantagem. Mas se estivermos numa situação em que existe tempo para recolher todos os dados para tomar uma decisão fundamentada, talvez o introvertido tenha uma maior vantagem”, diz ao Observador.
Porquê? Porque uma pessoa introvertida “vive com maior tranquilidade os silêncios”, explica. Porque é mais analítica, introspetiva e observadora. “Pode ser uma vantagem quando estão em causa decisões estratégicas, que vão além dos demais diretores da empresa. Porque são mais neutros em relação ao impacto da opinião do outro“, explica.

Laurie Helgoe, autora do livro “Introvert Power: Why Your Inner Life is Your Hidden Strength” (sem tradução para português), acrescenta que os introvertidos tendem a ser mais críticos, porque são mais realistas quando analisam a informação que lhes é dada, e não se deixam levar facilmente por “distrações felizes,” como o reconhecimento dos pares ou o número de seguidores que têm no Twitter.

Pedro Barbosa da Rocha explica que o ideal é que haja um equilíbrio – não ser 100% introvertido ou extrovertido e saber aproveitar e canalizar cada uma das características para o sucesso das equipas e da organização. E aqui insere-se outro conceito: o de inteligência emocional. “Um extrovertido com inteligência emocional tem sensibilidade para saber quando tem de se calar e ouvir mais os outros, por exemplo”, diz.

E no meio está a virtude.

As vantagens de ser um líder mais introvertido

  • Capacidade de trabalharem, desenvolverem tarefas e tomarem decisões sozinhos. Lidam melhor com a solidão e conseguem ser produtivos e atingir objetivos desta forma. Não precisam tanto do contexto social para ganharem energia para produzirem;
  • Podem ser mais capazes de fundamentarem as suas opiniões, porque debatem-nas consigo próprios. Demoram algum tempo a debatê-las e só as comunicam quando estão seguros do que têm para dizer;
  • Por serem mais compenetrados e introspectivos, são bons observadores, explica Pedro Barbosa da Rocha. Porque observam muito antes de emitirem opiniões ou tomarem decisões. Para estarem seguros das suas opiniões.

As vantagens de ser um líder mais extrovertido

  • Perante uma tomada de decisão rápida, podem ter maior capacidade de reação, explica Pedro Barbosa da Rocha;
  • Têm maior capacidade de dinamização das redes sociais, porque se sentem mais confortáveis socialmente. O que também pode ser mais vantajoso na relação com os clientes ou consumidores;
  • Podem trabalhar melhor em equipa e fazer com que essa equipa tenha melhores resultados.
  • REPORTAGEM POR  Ana Pimentel
  • Fonte: O Observador, 28/08/2015

quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Ler ou reler, eis a questão

Ernani Ssó*
 Graham Greene

Há livros demais e a vida é breve — a vida tem cinema e arte culinária, a vida tem mulheres, música e bares com mesas na calçada, sem esquecermos de sinuca e futebol, de banho de mar e daquela cochiladinha depois do almoço. Conheço gente que se agonia só de pensar que é impossível ler tudo. Mas faça as contas. Noventa e oito por cento dos livros não precisam ser lidos. São lixo, sem remição. O diabo é que os dois por cento restantes ainda são demais. O diabo é que na escola raramente temos de ler algum desses dois por cento. O diabo é que todo ano um ou dois livros são acrescentados a essa lista. O diabo é que mesmo depois de morrermos a lista continuará crescendo.

Olhe, bem no fundo, acho isso tudo uma frescura, ou doença pura e simples. Vamos fazer contas de novo. Quantos livros você lê por ano? Cem, duzentos? Ou vinte ou trinta? Ou você é do tipo Rubem Fonseca, que lê um livro por dia? Eu, que sou praticamente uma tartaruga, fico maravilhado com isso. Mas desses livros, quantos mudaram a sua vida, ou ao menos acrescentaram alguma coisa que lhe fazia falta?

Ou vamos pôr a questão de outra forma. Você já tem uma certa idade e uma biblioteca de uns dois mil, dois mil e quinhentos livros. Se fosse para a famosa ilha deserta, fora manuais de escotismo e a Charlize Theron, que livros você levaria? Eu provavelmente levaria apenas os livros que reli mais de cinco vezes, digamos. Acho cinco vezes uma medida razoável — ninguém relê cinco vezes um livro se ele não o toca fundo ou o diverte muito, forma também de tocar fundo, não? Quantos livros você releu mais de cinco vezes? Eu não sei quantos livros reli mais de cinco vezes, mas duvido que cheguem a quinhentos, talvez não cheguem nem a trezentos. Sei que os que li pulando são muitas e muitas vezes mais.

Mas digamos quinhentos e digamos três releituras no mínimo. Se você releu pra valer esses quinhentos livros, vai descobrir uma coisa mais ou menos evidente: não há nada ou quase nada de novo nos demais livros. Os livros praticamente se repetem, ou nossa cabeça é incapaz de tirar mais deles, ou pelo menos a minha. Um grande livro, de alguma forma, contém muitos outros livros. Quinhentos grandes livros talvez contenham todos os livros. Infelizmente a imaginação, a sensibilidade e a inteligência humanas não são ilimitadas. De um ponto pra frente, cada livro lido não é menos um a ser lido, mas apenas mais um livro lido. De um ponto pra frente, a gente lê meio como quem assenta o fio de uma navalha. Essa papagaiada de jornais e revistas de que toda semana tem uma novidade fundamental na praça é isso mesmo, papagaiada — pura publicidade ou ignorância.

Cabe a você descobrir os seus quinhentos grandes livros. Agora, se você nunca releu um livro, ou no máximo releu uns dois ou três, ou nunca relê mais de uma ou duas vezes, pode parar por aqui. Não temos nada a nos dizer. Nem falamos a mesma língua.

Um dos poucos autores que me pegou depois de adulto foi Graham Greene. Por um desses lapsos inexplicáveis, eu só li Graham Greene aos vinte e oito anos. Tinha topado com inúmeras referências a ele, mas sempre fui deixando para depois, até que encontrei O americano tranquilo numa banca, numa edição de 1981 da Abril, feia que dá pena. Ainda lembro de abrir o volume, de ler os primeiros parágrafos, de começar a gostar devagarinho, até que cheguei nesta frase: “Fechei os olhos e ela se tornou novamente o que costumava ser: o chiado do vapor, o tilintar de xícara, uma certa hora da noite e a promessa de repouso”. Isso não quer dizer muito para a maioria das pessoas, sei, mas foi aí que o Greene se revelou para mim. Há algo na serenidade resignada, ou no tranquilo desespero dessa frase, na atmosfera de solidão, que me levou a pensar na hora: está falando comigo. Mais: por essa frase eu entrevi todo o homem Graham Greene. Então, não li O americano tranquilo, eu o devorei e cada nova página apenas me confirmou essa impressão inicial — os demais livros também, embora O americano tranquilo continue meu preferido com O poder e a glória e Cônsul honorário. Em seguida, passei a recomendar o livro para todo mundo e quando alguém não gostava muito eu, depois de um certo aturdimento, me sentia quase que ofendido.

Depois que a gente releu muito, poucos autores satisfazem inteiramente. Às vezes leio vinte páginas de um livro, vinte de outro e desisto — já encontrei tudo aquilo, escrito de forma muito melhor. Aí releio algum trecho de um dos meus autores preferidos e então sou vítima de uma esperança meio boba, mas invencível: será que não me escapou algum conto do Cortázar, do Borges, do Kafka, do Conrad? Será que não vão descobrir um romance inédito do Stendhal? Como será ler pela primeira vez algo deles depois dos quarenta? Por que não fui previdente e guardei um livro para a velhice? Tive sorte com Graham Greene: O décimo homem. Tive sorte com Rubem Fonseca: “Placebo”. Tive sorte com Cortázar: Ciao, Verona. É estranho, eu os li sem aquele fogo da descoberta, li quase como se lembrasse, como se os textos já fizessem parte de mim ou fossem meus, como se eu me reencontrasse depois de muito tempo e um tanto surpreso me desse conta de que continuo o mesmo, não mudei nada, veja só.

Na adolescência, após o último conto de Poe, me bateu o desespero. Eu já não aguentava relê-lo e tinha certeza, certeza absoluta, como se diz, de que nunca ia encontrar outro autor. Estava enganado, claro, logo logo iria encontrar muitos outros e muito melhores, mas eu tinha dezesseis anos. Agora é um pouco mais complicado, penso quase amargo. Mas não é que há poucos anos descobri um lapso maior que o do Greene? Ele se chama Ítalo Svevo. Até ando pensando em aprender italiano pra ler o homem direito.

É isso, não leio mais um livro atrás do outro como antes. Pulo de um para outro na busca dos livros que eu possa reler. Como não confio na crítica, dependo da indicação dos amigos e de minhas próprias investigações.

Houve épocas de saturação. Aí eu simplesmente lia um monte de romances policiais de segunda classe. A vantagem dos romances policiais de segunda classe é que não pretendem ser nada e então eu podia relaxar, sem exigir nada fora uma historinha com começo, meio e fim. Se o camarada pretende ser qualquer coisa e não cumpre, ou cumpre pela metade, começo a implicar. Podia relaxar, eu disse. Hoje não dá mais. Prefiro ver desenho animado com meu filho.

Às vezes leio entrevistas ou reportagens com escritores que têm bibliotecas de dez, quinze mil livros. É ou não é pra gente se sentir humilhado? Mas não consigo acreditar que existam quinze mil livros importantes para uma pessoa. Quinze mil livros não são uma biblioteca, são uma superstição.

Sei que jamais chegarei a uma biblioteca de cinco mil livros. Pra começo de conversa, não tenho espaço. Mesmo que tivesse ia pensar duas vezes. Não faço o tipo colecionador, embora possua três ou quatro edições de alguns livros. Gosto de edições bonitas como gosto de pratos bonitos — queira ou não, o sabor muda. Se não acredita, compare o mesmo livro numa edição fedorenta caindo aos pedaços e numa edição novinha em folha. Até no tato livro velho não ajuda.

Sabe o que eu faço? Os livros que eu sei que não vou reler, ou que penso que nem valem uma leitura, dou, troco ou simplesmente boto fora. Desse modo minha biblioteca está mais ou menos do mesmo tamanho há anos. Mas ainda assim tem um monte de porcaria.
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* Ernani Ssó é o escritor que veio do frio: nasceu em Bom Jesus, numa tarde de neve. Em 73, entrou pro jornalismo porque queria ser escritor. Saiu em 74 pelo mesmo motivo. Humor e imaginação são seus amuletos.
Imagem Graham Greene
Fonte: http://www.sul21.com.br/jornal/ler-ou-reler-eis-a-questao/26/08/2015

Ameaças na internet

 Eugene Kaspersky
Presidente de uma das maiores empresas 
de antivírus do mundo,
crê que ameaças na internet 
atingiram escala inédita
 
Entrevista com Eugene Kaspersky
Presidente da Kaspersky Labs

Uma das mais conhecidas empresas de antivírus do mundo, a russa Kaspersky, foi acusada na semana passada de espalhar ameaças falsas de vírus por dez anos para prejudicar seus concorrentes. De passagem por São Paulo para um evento, o presidente da empresa, Eugene Kaspersky, conversou com o jornal O Estado de S. Paulo.

O sr. negou a acusação de práticas desleais. De onde acha que surgiu essa denúncia?

Eugene Kaspersky: Esse tipo de matéria costuma sair logo depois de uma grande revelação de espionagem por parte de países ocidentais, como Estados Unidos da América (EUA) ou Israel. Em outras ocasiões, fui acusado de ser um espião russo. Para fazer o que me acusam eu teria que ter engenheiros, especialistas em antivírus, em bancos de dados, em infraestrutura. É um grupo de pessoas, trabalhando o tempo todo, por cerca de 10 anos, para fazer isso, e mantendo segredo. Seria muito caro!

Como é sua relação com o governo russo?

E.K.: Há muitos tipos de relações com governos, e com departamentos de governos, incluindo com o Brasil. Há muitos departamentos governamentais lidando com o cibercrime e órgãos nacionais de cibersegurança com os quais mantemos contato. É claro que estamos em contato com os órgãos russos. Assim como os de vários países europeus, das Américas do norte e do sul, da Ásia. A Scotland Yard é nosso cliente. Nós fazemos treinamentos com eles. E aí existem os setores de inteligência, os espiões, mantemos distância destes.

Que serviços a empresa presta para o governo brasileiro?

E.K.: Várias instituições em vários níveis, municipal, estadual e federal, usam nossos produtos como usuários. Agora temos colaborações para procurar ameaças sendo desenvolvidas aqui no Brasil. Temos um laboratório de análise de malwareaqui que nos permite coletar e capturar informações em primeira mão. Conseguimos rapidamente coletar amostras e podemos mandar para Moscou para análise posterior e isso ajuda no desenvolvimento de produtos.

Este ano tem sido pródigo em ciberataques, incluindo o que atingiu cerca de 100 bancos, revelado em fevereiro. Estamos vivendo um aumento do cibercrime?

E.K.: O cibercrime está cada vez mais profissional. Já tem uma experiência acumulada, aprenderam com erros, prisões, cooperam em nível internacional, trocam e vendem tecnologias, bancos de dados roubados entre países. Nada nisso é novo, mas a escala não para de crescer.

E o que isso pode significar em termos de ameaças à segurança na rede?

E.K.: Ataques que resultam em danos na infraestrutura física. Até agora aconteceram apenas dois casos desse tipo: o Stuxnet (que invadiu usinas nucleares na Índia e Irã, em 2010) e um ataque a uma siderúrgica alemã no fim do ano passado, onde sistemas de controle foram manipulados a ponto de impedir o fechamento de um alto-forno, o que causou grandes danos à empresa.

Você acredita que governos e autoridades estão se preparando para esse tipo de ocorrência?

E.K.: Infelizmente, não. Existem três estágios para lidar com o problema. O primeiro é entender que ele existe, e a maioria entende isso. O segundo é desenvolver uma estratégia para lidar com ele e o terceiro é colocá-lo em prática. A maior parte dos governos está no primeiro estágio. Eles têm as informações, mas não sabem o que fazer, incluindo o governo norte-americano. Uma das exceções é Cingapura.

Como o sr. classificaria a vulnerabilidade do Brasil?

E.K.: Infelizmente, quase todos os países estão no mesmo nível, pois usam os mesmos sistemas e hardware. É difícil medir qual é o mais seguro. O Brasil, por exemplo, não tem os mesmos recursos que os EUA para se proteger, mas é um alvo de importância muito menor. Nesse sentido, o país mais seguro do mundo seria algum como o Zimbábue ou uma ilha da Oceania. Países como EUA, Reino Unido, Israel, Rússia, tem cibersegurança de primeira linha, mas ao mesmo tempo são os melhores alvos.

O crescimento da internet das coisas trará mais perigos?

E.K.: Eu a chamo de “internet das ameaças”. É questão de tempo até que um aparelho seja invadido. Os grandes fabricantes entendem os riscos, mas muitas vezes cometem erros bobos que permitem que seus novos sistemas sejam invadidos. Objetos críticos, como carros, são conectados à internet e infelizmente são vulneráveis. Por questões de competitividade e a necessidade de lançar logo, a segurança fica em segundo plano. E já pensou nos aviões? Teremos cada vez mais trabalho nas mãos.

Você tem alguma boa notícia para dar?

E.K.: Nós vamos sobreviver (risos).
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Reportagem por  Camilo Rocha
Fonte: Estadão online, 26/08/2015