Ernani Ssó*
Há livros demais e a vida é breve — a vida tem cinema e arte
culinária, a vida tem mulheres, música e bares com mesas na calçada, sem
esquecermos de sinuca e futebol, de banho de mar e daquela cochiladinha
depois do almoço. Conheço gente que se agonia só de pensar que é
impossível ler tudo. Mas faça as contas. Noventa e oito por cento dos
livros não precisam ser lidos. São lixo, sem remição. O diabo é que os
dois por cento restantes ainda são demais. O diabo é que na escola
raramente temos de ler algum desses dois por cento. O diabo é que todo
ano um ou dois livros são acrescentados a essa lista. O diabo é que
mesmo depois de morrermos a lista continuará crescendo.
Olhe, bem no fundo, acho isso tudo uma frescura, ou doença pura e
simples. Vamos fazer contas de novo. Quantos livros você lê por ano?
Cem, duzentos? Ou vinte ou trinta? Ou você é do tipo Rubem Fonseca, que
lê um livro por dia? Eu, que sou praticamente uma tartaruga, fico
maravilhado com isso. Mas desses livros, quantos mudaram a sua vida, ou
ao menos acrescentaram alguma coisa que lhe fazia falta?
Ou vamos pôr a questão de outra forma. Você já tem uma certa idade e
uma biblioteca de uns dois mil, dois mil e quinhentos livros. Se fosse
para a famosa ilha deserta, fora manuais de escotismo e a Charlize
Theron, que livros você levaria? Eu provavelmente levaria apenas os
livros que reli mais de cinco vezes, digamos. Acho cinco vezes uma
medida razoável — ninguém relê cinco vezes um livro se ele não o toca
fundo ou o diverte muito, forma também de tocar fundo, não? Quantos
livros você releu mais de cinco vezes? Eu não sei quantos livros reli
mais de cinco vezes, mas duvido que cheguem a quinhentos, talvez não
cheguem nem a trezentos. Sei que os que li pulando são muitas e muitas
vezes mais.
Mas digamos quinhentos e digamos três releituras no mínimo. Se você
releu pra valer esses quinhentos livros, vai descobrir uma coisa mais ou
menos evidente: não há nada ou quase nada de novo nos demais livros. Os
livros praticamente se repetem, ou nossa cabeça é incapaz de tirar mais
deles, ou pelo menos a minha. Um grande livro, de alguma forma, contém
muitos outros livros. Quinhentos grandes livros talvez contenham todos
os livros. Infelizmente a imaginação, a sensibilidade e a inteligência
humanas não são ilimitadas. De um ponto pra frente, cada livro lido não é
menos um a ser lido, mas apenas mais um livro lido. De um ponto pra
frente, a gente lê meio como quem assenta o fio de uma navalha. Essa
papagaiada de jornais e revistas de que toda semana tem uma novidade
fundamental na praça é isso mesmo, papagaiada — pura publicidade ou
ignorância.
Cabe a você descobrir os seus quinhentos grandes livros. Agora, se
você nunca releu um livro, ou no máximo releu uns dois ou três, ou nunca
relê mais de uma ou duas vezes, pode parar por aqui. Não temos nada a
nos dizer. Nem falamos a mesma língua.
Um dos poucos autores que me pegou depois de adulto foi Graham
Greene. Por um desses lapsos inexplicáveis, eu só li Graham Greene aos
vinte e oito anos. Tinha topado com inúmeras referências a ele, mas
sempre fui deixando para depois, até que encontrei O americano tranquilo
numa banca, numa edição de 1981 da Abril, feia que dá pena. Ainda
lembro de abrir o volume, de ler os primeiros parágrafos, de começar a
gostar devagarinho, até que cheguei nesta frase: “Fechei os olhos e ela
se tornou novamente o que costumava ser: o chiado do vapor, o tilintar
de xícara, uma certa hora da noite e a promessa de repouso”. Isso não
quer dizer muito para a maioria das pessoas, sei, mas foi aí que o
Greene se revelou para mim. Há algo na serenidade resignada, ou no
tranquilo desespero dessa frase, na atmosfera de solidão, que me levou a
pensar na hora: está falando comigo. Mais: por essa frase eu entrevi
todo o homem Graham Greene. Então, não li O americano tranquilo, eu o devorei e cada nova página apenas me confirmou essa impressão inicial — os demais livros também, embora O americano tranquilo continue meu preferido com O poder e a glória e Cônsul honorário.
Em seguida, passei a recomendar o livro para todo mundo e quando alguém
não gostava muito eu, depois de um certo aturdimento, me sentia quase
que ofendido.
Depois que a gente releu muito, poucos autores satisfazem
inteiramente. Às vezes leio vinte páginas de um livro, vinte de outro e
desisto — já encontrei tudo aquilo, escrito de forma muito melhor. Aí
releio algum trecho de um dos meus autores preferidos e então sou vítima
de uma esperança meio boba, mas invencível: será que não me escapou
algum conto do Cortázar, do Borges, do Kafka, do Conrad? Será que não
vão descobrir um romance inédito do Stendhal? Como será ler pela
primeira vez algo deles depois dos quarenta? Por que não fui previdente e
guardei um livro para a velhice? Tive sorte com Graham Greene: O décimo homem. Tive sorte com Rubem Fonseca: “Placebo”. Tive sorte com Cortázar: Ciao, Verona.
É estranho, eu os li sem aquele fogo da descoberta, li quase como se
lembrasse, como se os textos já fizessem parte de mim ou fossem meus,
como se eu me reencontrasse depois de muito tempo e um tanto surpreso me
desse conta de que continuo o mesmo, não mudei nada, veja só.
Na adolescência, após o último conto de Poe, me bateu o desespero. Eu já não aguentava relê-lo e tinha certeza, certeza absoluta, como se diz, de que nunca ia encontrar outro autor. Estava enganado, claro, logo logo iria encontrar muitos outros e muito melhores, mas eu tinha dezesseis anos. Agora é um pouco mais complicado, penso quase amargo. Mas não é que há poucos anos descobri um lapso maior que o do Greene? Ele se chama Ítalo Svevo. Até ando pensando em aprender italiano pra ler o homem direito.
É isso, não leio mais um livro atrás do outro como antes. Pulo de um
para outro na busca dos livros que eu possa reler. Como não confio na
crítica, dependo da indicação dos amigos e de minhas próprias
investigações.
Houve épocas de saturação. Aí eu simplesmente lia um monte de
romances policiais de segunda classe. A vantagem dos romances policiais
de segunda classe é que não pretendem ser nada e então eu podia relaxar,
sem exigir nada fora uma historinha com começo, meio e fim. Se o
camarada pretende ser qualquer coisa e não cumpre, ou cumpre pela
metade, começo a implicar. Podia relaxar, eu disse. Hoje não dá mais.
Prefiro ver desenho animado com meu filho.
Às vezes leio entrevistas ou reportagens com escritores que têm
bibliotecas de dez, quinze mil livros. É ou não é pra gente se sentir
humilhado? Mas não consigo acreditar que existam quinze mil livros
importantes para uma pessoa. Quinze mil livros não são uma biblioteca,
são uma superstição.
Sei que jamais chegarei a uma biblioteca de cinco mil livros. Pra
começo de conversa, não tenho espaço. Mesmo que tivesse ia pensar duas
vezes. Não faço o tipo colecionador, embora possua três ou quatro
edições de alguns livros. Gosto de edições bonitas como gosto de pratos
bonitos — queira ou não, o sabor muda. Se não acredita, compare o mesmo
livro numa edição fedorenta caindo aos pedaços e numa edição novinha em
folha. Até no tato livro velho não ajuda.
Sabe o que eu faço? Os livros que eu sei que não vou reler, ou que
penso que nem valem uma leitura, dou, troco ou simplesmente boto fora.
Desse modo minha biblioteca está mais ou menos do mesmo tamanho há anos.
Mas ainda assim tem um monte de porcaria.
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* Ernani Ssó é o escritor que veio do frio: nasceu em Bom Jesus,
numa tarde de neve. Em 73, entrou pro jornalismo porque queria ser
escritor. Saiu em 74 pelo mesmo motivo. Humor e imaginação são seus
amuletos.
Imagem Graham Greene
Fonte: http://www.sul21.com.br/jornal/ler-ou-reler-eis-a-questao/26/08/2015
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