Socorro-me do livro “De onde vêm as palavras – origens e curiosidades
da língua portuguesa” (17a. edição, Lexikon Editora) , trabalho
brilhante do professor e jornalista Deonísio da Silva, para lembrar que o
vocábulo “assassino” vem do árabe, “ashohashin”, originariamente
bebedor de haxixe. Trazido para o ocidente por Marco Polo no fim do
século XVIII, ele designava uma seita de fanáticos, consumidores de
haxixe, que roubavam e matavam a serviço de um chefe feudal sírio, o
“Velho da Montanha”, grupo este que ao final foi destruído e executado
pelo temível Gengis Khan.
Se, na origem, a palavra “assassino” estava ligada ao consumo de
haxixe, sua permanência derivada, nas línguas do ocidente, perdeu o
nexo necessário com a droga, mas continuou carregando sua característica
odiosa e revelando aquilo que o ser humano é capaz, muito além da
animalidade, como matar alguém sem causa, ou por um motivo sem qualquer
justificação moral. As palavras, como é sabido, mudam seu significado em
determinadas estruturas sintáticas, na sua relação com as demais
palavras de uma frase, ou mesmo inspiradas pelo contexto literário em
que são usadas.
Acho intrigante o uso que Jorge Luis Borges faz da palavra “centro”,
no seu conto “Pesadelo”. Cada vez que leio aquele texto colho, desta
palavra um significado diferente, sempre embalado pelo meu “estado de
espírito”, no momento. Diz Borges, após relatar o sonho do personagem,
cercado por “um Saara de areia negra”, onde “não há água nem mar”: “no
deserto sempre se está no centro.” Sempre acabo concluindo — mesmo
dando à palavra “centro” conotações espaciais e existenciais diversas —
que Borges fez uma poderosa imagem literária da dúvida. Não da
distância física ou espiritual. Quando ele coloca a palavra “centro”,
como identidade da sua grande metáfora, quer afirmar – penso eu – de
um lado, a sua distância de um enigma e dizer, ao mesmo tempo, que
todos somos iguais a ele. Nos momentos mais importantes das nossas
vidas, compomos uma melodia arbitrária em relação ao nosso destino e,
com a fórmula mágica “no deserto sempre se está no centro”, nos iludimos
quanto a nossa finitude, para não encará-la como condição humana.
Esta mudança de significado das palavras e os sentimentos que ela
evoca, são impressionantes no tango argentino. Na letra de Alfredo Le
Pera, do tango “Mi Buenos Aires querido”, que muitos de nós já ouvimos
ou nos arriscamos – em algum momento remoto – a tentar cantar, a palavra
“arrabal” (o nosso “arrabalde”), celebra a pureza do amor no estado
mais “puro” e romântico: “la ventana de mi calle de arrabal / donde
sonríe una muchachita en flor.” Já na letra do tango “Arrabal amargo”,
o mesmo Le Pera celebra o “arrabal” como tragédia e desilusão. E a
palavra passa a ter, no seu novo contexto, uma revelação de dor e
amargura: “Arrabal amargo metido en mi vida / como la condena de una
maldición…!”
José Edmundo Clemente, autor junto com Borges do delicioso e profundo
“El Lenguage de Buenos Aires” (Emecé Editores, 1968), escrevendo sobre o
“Lunfardo”, o idioma dos “lunfas” (os ladrões) das periferias, dos
arrabaldes e dos bairros boêmios de Buenos Aires -ou seja a linguagem
popular dos que não estão na sociedade hierarquizada e disciplinada pela
ordem vigente- diz que as palavras constituem, na verdade, a superfície
de um idioma. Mas elas descrevem “zonas diferentes, matizes expressivos
diferentes de um mesmo idioma”. E o lunfardo é “usado por quem faz do
delito uma profissão” e pretende, portanto, esconder-se, também na
linguagem, com significados que protejam a sua vida e os seus
interesses delitivos.
A palavra “austeridade”, muito em voga nos cronistas políticos,
articulistas econômicos, políticos de todas as extrações e bancos
centrais de todas as latitudes, sempre me evocava alguns quadros de
Edward Hooper. Hooper, como se sabe, foi o mestre-pintor da depressão
americana: seus quartos de hotéis com mulheres despojadas e pouco
mobiliário, suas casas solitárias perdidas no meio-oeste, seus bares
monásticos na noite, como o insuperável “Nighthawks”, de 1942. Também me
evocava, a palavra “austeridade”, a casa dos colonos italianos que eu
visitava, com meu pai, a partir dos doze anos de idade em Santa Maria.
Era lá no interior do então distrito de Silveira Martins, cuja limpeza e
economia, em relação a qualquer coisa que lembrasse excesso, só era
comparável -em intensidade- à religiosidade das famílias e o seu apreço
em receber visitas.
Hoje, esta palavra (“austeridade”) mudou completamente de
significado. Ela deixou de ser uma situação social determinada, para ser
uma política de Estado. Ela passou a traduzir orientações de Governo
para resolver uma determinada situação de crise, deixando de ser a
revelação de um estilo de vida – numa realidade social e cultural de
carência (ou pelo menos falta de “fartura”) – para ser um comando
ideológico da economia. Este comando exige, de cada um, certas
restrições no consumo e redução do seu padrão de vida: é “austeridade”
desenhada pela política que a gera. É isso? Bem examinado o termo, não
é só isso que ele está ressignificando. Por quê? Porque será muito
diferente o dano, pela austeridade imposta, na vida de uma pessoa que
percebe 2 mil reais por mês e perde dez por cento do seu poder
aquisitivo , do dano sofrido por aquele que percebe 50 mil reais por mês
-na atividade pública ou privada- e não depende , para viver, de
nenhuma prestação social do Estado.
Levanto este problema porque entendo que, na verdade, as pessoas que
defendem uma política de “austeridade”, nestes termos que aí estão,
defendem -conscientemente ou não- uma política de maior “apartheid”
social, que vai gerar uma sociedade ainda mais violenta e mais
socialmente perversa: primeiro, porque os ricos e muitos ricos no
Brasil, não só não são historicamente austeros, mas não abrem mão de não
serem e o que gera a violência, não é, imediatamente, a pobreza,
mas o contraste e a ausência de atenção do Estado em relação às
necessidades dos mais débeis; segundo, porque a diferenciação de renda e
a estrutura social brasileira são avessas a qualquer “austeridade”, que
reparta sacrifícios, com ou sem crises, o que faz com que a noção do
vocábulo “austeridade” passe a ser, então, “mais desigualdade” e “mais
concentração de renda”: a austeridade deve ser compreendida, neste
contexto, como discriminação e desigualdade. Mas não é assim em todo o
mundo, pois a austeridade pode, também, ter mais ricos com menos riqueza
e poder, como ocorre na Noruega.
Não estamos tratando, aqui, de uma ideia “socialista”, mas de uma
forma de organização do capitalismo, na qual os idiomas “lunfardos”, do
projeto neoliberal, tratam de traficar o sentido atual do vocábulo
“austeridade”, como se o sentido que eles dão ao vocábulo fosse a
única alternativa. No Brasil, 1% da população, detém 42% da renda e os
20% mais pobres da população, tem uma renda no mínimo trinta vezes menor
dos que os 20% mais ricos. Na Noruega os 20% mais ricos detém “quase
quatro vezes mais” – o que eles já acham exagerado – do que os 20% mais
pobres. Aqueles (os 20% mais ricos), têm uma renda média de 58 mil
dólares por ano, e estes (os mais pobres) detém uma renda média anual de
15.500 dólares. Sem falar da qualidade e gratuidade dos serviços de
educação e de saúde, acessíveis a pobres e ricos, mantidos pelos
recursos públicos, cuja carga tributária (progressiva), vai a mais de
40% do PIB.
As políticas neoliberais – com todo o respeito – não são políticas
de “austeridade”. Usar o vocábulo “austeridade”, para nomear políticas
que geram mais desigualdade e mais concentração de renda, é assassinar
as palavras, para perverter a compreensão dos destinatários destas
políticas. Austeridade existe é na Noruega, na Suécia, na Dinamarca, que
repartiram riqueza, e em Cuba, que repartiu carências. Nenhuma dessas
experiências pode ser “transplantada”, mecanicamente, para o nosso país,
que vem buscando seus caminhos dentro da democracia recentemente
conquistada, mas defender a “austeridade”, quando estão sendo
atrasados salários dos servidores, estão sendo cortados recursos para
saúde, para a educação, para a segurança, quando a retração econômica
gera menos emprego com o látego dos juros arbitrados pelas agências de
risco, é muita ignorância, muita ingenuidade ou muita provocação. Ou
tudo junto.
O “Velho da Montanha” deve estar muito orgulhoso dos seus filhotes
pós-modernos, que são certamente os mesmos que, na antiguidade clássica,
pregavam aos escravos que eles não deveriam se rebelar. O assassinato
das palavras pode ser feito com arte, como nas metáforas de Borges, para
nos ensinar a ter dúvidas, a respeito de onde nós estamos. Pode
socorrer aos maravilhosos tangos das letras de Le Pera, para nos ajudar a
mitigar o sofrimento. Pode transmutar-se no “lunfardo”, para promover o
escape da lei, dos que se defendem na vida com a delinquência e o
banditismo. Mas, quando o assassinato das palavras tortura a
inteligência alheia, com sua vil aparência de neutralidade, as pessoas
que estão na política por ideais e utopias, têm o direito de dizer, em
alto e bom som: “não sejam tão arrojados, amanhã ou depois o “Velho da
Montanha” pode enjoar de tanto servilismo”.
-----------------
* Tarso Genro foi governador do Estado do Rio Grande do Sul,
prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça, Ministro da Educação e
Ministro das Relações Institucionais do Brasil.
Imagem da Internet: Nighthawks
Edward Hopper, 1942
Fonte: O Sul online, 17/08/2015
Nenhum comentário:
Postar um comentário