Mário Sergio Conti*
"O significado das bestas é matéria de
debate entre eruditos desde a Idade Média. No caso de José Dirceu, o leopardo é
a fraude, o leão, a soberba, e a loba, a incontinência, o deixar-se levar pelos
sentidos mais prementes. Encurralado pelas três feras, ele desce agora ao fundo
do inferno."
RESUMO Figura de destaque na militância
estudantil durante a ditadura militar, o ex-ministro do governo Lula voltou à
prisão na semana passada, desta vez sob suspeita de ter recebido propinas de
empreiteiras. Cumprindo pena em regime domiciliar após caso do mensalão, José
Dirceu, 69, parece distante do jovem preso em 1968.
*
É bom conversar com José Dirceu. Ele
analisa a conjuntura à maneira de Fernando Henrique Cardoso, que enraíza
querelas brasilienses no solo mundial. Como Delfim Netto, pensa primeiro em
objetivos nacionais e só depois na casta dos profissionais da política. À
semelhança de Fernando Haddad, é realista e evita lero-lero numa conversa a
dois. O ex-ministro compartilha com Valério Arcary a cicatriz de quem esteve
com as massas em movimento: o dirigente do Partido Socialista dos Trabalhadores
Unificado tem tatuagens da Revolução dos Cravos na psique; o militante preso na
segunda-feira passada traz na pele queimaduras dos incêndios de 68.
O próprio José Dirceu abriu a porta da
mesma casa onde a polícia foi buscá-lo nesta semana. Era uma manhã de domingo
do fim do ano passado. Estava de calção azul, camiseta vermelha e calçava
chinelos. Rijo e bronzeado, parecia mais saudável do que nas fotos dos jornais,
nas quais era flagrado indo para o trabalho. Apresentou-me Simone Pereira, sua
quarta companheira, e lhe fez um afago no rosto.
Atravessamos o saguão, duas salas
sombrias, saímos para o sol raivoso de Brasília e nos sentamos no terraço, à
beira do jardim, da piscina e do salão de ginástica. Logo apareceu Maria
Antônia, sua filha de quatro anos. Ela recebeu esse nome em homenagem à rua
paulistana onde Dirceu teve o seu batismo político.
A menina estava com uma engenhoca
eletrônica que emitia silvos insistentes. O pai lhe disse que ficasse um pouco
mais longe, mas Maria Antônia se aninhara a seu lado e só saiu quando quis.
Ele conversou primeiro sobre o PT.
Falou que, mesmo com a vitória recente de Dilma Rousseff, haveria uma debandada
nos quadros e na base do partido. A Lava Jato não cheirava bem, e lhe dava a
impressão de causar calafrios em possíveis candidatos pela legenda.
Aparentemente, a investigação não o alarmava.
"Já reviraram minhas contas
bancárias, meus telefonemas e declarações de renda", afirmou. "Nunca
encontraram nada. Tenho uma consultoria, presto serviços para empresas e
recolho impostos." Durante o encontro, que se estendeu até o meio da
tarde, Dirceu não tocou em álcool, proibido no regime de prisão domiciliar:
"Não dou mole de jeito nenhum".
O governo recém-reeleito lhe parecia
velho, exausto, sem rumo. "O PT sofrerá uma derrota de proporções
históricas nas eleições municipais", vaticinou. Ele nunca se deu bem com
Dilma. Chamou-a de "camarada de armas" no discurso de despedida no
Congresso, mas intramuros a critica desde sempre.
Questionado sobre o que faria se
voltasse ao poder, fez uma longa peroração, coalhada de cifras, sobre a vocação
do Brasil na América Latina: construir estradas, aeroportos, usinas, linhas de
ferro, portos, a infraestrutura inteira do continente. Não disse palavra sobre
desigualdade, classes, lucros e interesses nacionais contraditórios, muito
menos socialismo.
GUINADA
Sem transição, como lhe é comum, mudou
de assunto e deu uma guinada abrupta à esquerda: disse que trabalharia para o
PT apoiar a candidatura à prefeitura carioca de Marcelo Freixo, do PSOL
(Partido Socialismo e Liberdade). "O Rio é a única grande cidade
brasileira com garra para eleger um prefeito de esquerda", disse
(ignorando a eleição do petista Haddad em São Paulo) enquanto checava o
celular, deitado na mesa à frente, gesto que repetia de cinco em cinco minutos.
Há dez anos, Dirceu tivera papel
preponderante na expulsão do PT de ativistas que viriam a criar o PSOL, a
começar por Luciana Genro. Antes mesmo, na década de 1990, agira com mão pesada
para que a esquerda não concorresse ao governo do Rio. O candidato em potencial
era Vladimir Palmeira, que não só pertencia ao PT como se formara em
radicalismo na turma de 1968. Ele tinha a sustentação firme da seção fluminense
do partido no Rio, mas a direção nacional –leia-se: Lula e José Dirceu– impôs o
voto em Anthony Garotinho. Deu no que deu. O celular não tocou nenhuma vez.
"As pessoas mudam, e os líderes
políticos também", disse-me Valério Arcary, pedindo desculpas pelo clichê.
"O José Dirceu de 1980 e o de 2015 não são a mesma pessoa." O líder
do PSTU ficou boquiaberto com o relato, publicado na terça-feira pela Folha, de
que Dirceu se ajoelhara diante de uma imagem de Nossa Senhora.
Eles conviveram na década de 1990,
quando integraram a comissão executiva nacional do PT. Ainda que tivessem
posições conflitantes, davam-se bem. Dirceu fora preso e banido na ressaca de
1968. Passara anos em Cuba, vivera clandestino no interior do Paraná, onde
abandonou política, e chegara relativamente tarde ao Partido dos Trabalhadores.
Defendia as posições de Fidel Castro e de Cuba.
Já Arcary morava em Lisboa quando
estourou a Revolução dos Cravos, em 1974. Voltou ao Brasil anos depois e foi um
dos fundadores da Convergência Socialista, grupo trotskista cujos militantes se
filiaram ao PT para cooptar novos adeptos. Ele se lembra de várias virtudes de
Dirceu: "Era assertivo, não se metia em intrigas, acreditava num projeto,
comprava a discussão política e a fazia às claras".
Ou seja, era quase o contrário de Lula
e dos sindicalistas que o seguiam. O presidente do PT relutava em divergir
frontalmente, tentava conciliar o inconciliável e volta e meia ocultava o que
de fato pensava. Dirceu e Lula tinham deficits semelhantes: não escreviam e
nunca estiveram em minoria no partido. O político que escreve ordena as ideias;
estar em minoria é didático, fortalece quem tem princípios e paciência.
Um belo dia, as virtudes de José Dirceu
se voltaram contra Arcary. Foi quando o movimento pela derrubada de Fernando
Collor ganhou corpo, em 1992. Manifestações continuadas juntavam centenas de
milhares de pessoas. O presidente estava por um fio, mas o mundo político,
jurídico e empresarial não chegara a um acordo quanto ao que fazer.
A Convergência Socialista defendia a
derrubada de Collor, mas não queria que o vice, Itamar Franco, tomasse posse no
lugar –por não ter sido eleito e por defender o programa liberal do titular.
Seu objetivo era seguir com as passeatas e atos públicos até que se abrisse uma
crise revolucionária.
José Dirceu partiu para cima da
Convergência. Defendeu que a organização não tivesse vida independente e o seu
jornalzinho semanal fosse proibido. "Quero ser secretário-geral do PT
contra a palavra de ordem 'fora Collor'", repetia. No seu raciocínio, o
partido deveria esperar até 1994, vencer as eleições e só então entrar no
Planalto. Não deu outra: a direção do partido ficou com Dirceu, e milhares de
trotskistas foram expulsos.
O PT tornou-se uma organização
eleitoral. Arcary não guarda mágoa. "Dirceu optou por uma política e a
defendeu com lealdade, sem dar golpes baixos", disse ele. O PT não chegou
ao poder em 1994 nem quatro anos depois. Empalmou o Planalto só em 2002, com
José Dirceu na condição de hiperministro e candidato óbvio à sucessão de Lula.
As mutações de Dirceu e do PT não se
deram num buraco negro a-histórico. O "big bang" do processo foi a
queda do Muro de Berlim. Desmoronou o "socialismo real" (que de
socialismo não tinha nada), com o qual boa parte da esquerda latino-americana
cultivava relações ambíguas. Esboroaram com ele a via insurrecional para a
tomada do poder e a perspectiva de revolucionar a sociedade.
A vaga eleitoralista, com a adoção de
um programa palatável à ordem do capital, pôs em polvorosa a Frente Sandinista
de Daniel Ortega, na Nicarágua, os Tupamaros de José Mujica, no Uruguai, e o PT
de Lula e José Dirceu. Os três partidos deixaram de falar em socialismo até nos
dias de festa, como mandava a etiqueta social-democrata. Vieram os showmícios.
Mesmo o róseo reformismo feneceu. Ele
deu lugar às ditas políticas compensatórias, mais ao gosto dos poderes
centrais. Não por acaso Obama disse que Lula era "o cara", o
"político mais popular na Terra".
A transfiguração foi testemunhada por
Frei Betto. Ele conheceu José Dirceu nos idos de 1968. Estudava antropologia na
USP da Maria Antônia, teologia no convento dos dominicanos, nas Perdizes, e era
repórter da "Folha da Tarde", para a qual cobria o movimento
estudantil. "Foi o ano em que não dormi", disse-me Betto.
Conheceram-se melhor na ocasião em que
o estudante se refugiou no convento. Aproximaram-se mais quando aderiram à
Aliança Libertadora Nacional, a ALN de Carlos Marighella. A década de prisões e
exílios os separou. Tornaram a se encontrar no início dos anos 1980. Por achar
que a esquerda consistia de sabichões que queriam manipulá-lo, Lula a evitava.
Mas gostava de Betto por ser frade e fazer parte da Pastoral Operária. Foi ele
quem apresentou José Dirceu a Lula.
FOME ZERO
Os caminhos de Betto e Dirceu voltaram
a se cruzar quando subiram a rampa do Planalto. O frei foi encarregado por Lula
de construir o Fome Zero. Na sua concepção, o programa seria gerido em conjunto
por técnicos do governo e pelos próprios beneficiários, que se reuniriam
periodicamente. Ao longo de três anos, os favorecidos seriam treinados num
ofício, passariam a trabalhar e prescindiriam da bolsa estatal.
Houve resistência de prefeitos de todo
o Brasil. Eles queriam organizar o cadastro, de modo a parecer que concediam a
benesse. Assim, poderiam encabrestá-los e cobrar votos. José Dirceu, que
pelejava para aproximar o governo de políticos de todos os partidos, comprou a
ideia. "Como era ele que controlava o orçamento do governo, durante dois
anos Zé Dirceu nos deixou a pão e água, não destinou um real ao Fome
Zero", conta Betto. O frade reclamava com Lula, que lhe dizia que tomaria
providências. Nunca as tomou.
O cadastro dos prefeitos foi
instituído, o Fome Zero virou Bolsa Família, e Betto deixou o governo. "O
que era uma política emancipatória virou uma política compensatória",
avalia o religioso. "Milhões de pobres continuam sem emprego, só que agora
são consumistas." A gênese do Bolsa Família está historiada em
"Calendário do Poder" (Rocco, 2007), no qual relata de maneira
crítica e desapaixonada como funcionou o primeiro governo Lula.
Mas nem o livro de Frei Betto dissolve
o denso mistério das relações entre José Dirceu e Lula. Graças ao primeiro, o
PT se tornou uma máquina eleitoral a serviço do segundo. Eles nunca deixaram
entrever como se dava na prática a relação entre ambos. Observando de fora,
percebe-se que Lula respeitava Dirceu, mas jamais o teve por mentor. Por sua
vez, Dirceu nunca disse uma frase reveladora a respeito de Lula.
O máximo a que chegou foi resmungar
"Lula, Lula, Lula" com a fisionomia contrafeita, quando lhe perguntei
como ia o ex-presidente. Estávamos no seu apartamento na rua Estado de Israel,
na Vila Mariana, em São Paulo. Víamos na televisão a transmissão de uma das
sessões do Supremo Tribunal Eleitoral, que julgava o mensalão.
O imóvel não tinha nada de mais: dois
quartos, mobiliário de hotel duas estrelas, sinal de internet capenga. Dirceu
mencionou que o apartamento passara por uma reforma. Na acusação dos
procuradores de Curitiba, revelada na semana passada, tal reforma foi paga por
uma empresa acusada de corrupção.
LODO
Ao se preparar para entrar no Planalto,
Lula disse a Dirceu que forjasse a aliança do PT com os partidos de aluguel
para formar a base do governo. Dirceu foi contra, queria que o PMDB fosse o
aliado preferencial. Mas cumpriu as ordens. A semente do mensalão germinou nesse
lodo.
Mas o mensalão só floresceu com
exuberância devido a uma particularidade nacional: o Brasil tem uma das
campanhas eleitorais mais caras do planeta. Bilhões de reais trocam de mãos a
cada dois anos. Há inúmeros motivos para isso: o peso da TV e da propaganda; a
longa duração e despolitização da ditadura militar; a ausência de vida
partidária consistente; as mazelas da educação básica; a importância do Estado
na economia.
Essa dinheirama faz com que as eleições
tenham se tornado uma forma de acesso a verbas estatais, manipuladas por
partidos em benefício de empresas, com as empreiteiras e bancos puxando a fila.
É um jogo de leva e traz com poucos perdedores. Nada impede que um candidato
derrotado desvie para a própria conta parte do que lhe foi doado por
empresários.
É virtualmente impossível que um
partido chegue ao poder sem manter relações com grandes companhias, sejam essas
relações promíscuas, de favor, comerciais ou decorrentes do tráfico de
influência. O sistema não é exclusivo do PT e tampouco começou com ele. O
pedágio político está disseminado porque a economia brasileira funciona assim
há décadas.
José Dirceu prestou serviços a grandes
corporações, da OAS à Ambev, da Camargo Corrêa à Parmalat. O que fazia para
elas? "Faço estudos, prospecto investimentos, dou sugestões, participo de
reuniões", respondeu ele. Estávamos na sede da sua consultoria, a JD, num
casarão com jeito de mal- assombrado ao lado do parque Ibirapuera. Os móveis
eram esparsos, e várias salas estavam desertas. Argumentei que nada disso era
propriamente trabalho, criação de valor. Ele insistiu que era, e o diálogo não
foi adiante.
Pouco depois de escrever uma resenha
que apontava a má-fé e dezenas de erros de uma biografia de Dirceu, fui
convidado por ele a almoçar na sua casa de campo. Ela fica num condomínio
aprazível em Vinhedo, no interior paulista. A consultoria voltou à baila.
"Ajudo na criação de empregos de empresas brasileiras", disse ele.
Pode ser. Mas quem cria empregos recria a exploração dos fracos pelos fortes,
aufere lucro e perpetua a desigualdade entre as pessoas.
Tarso Genro também esteve com José
Dirceu, na casa de Brasília. Como as relações entre eles se deram apenas no PT,
o ex-governador gaúcho não chegou a ter conhecimento íntimo da personalidade ou
da vida pessoal do companheiro. "Eu o via como uma pessoa extremamente
obstinada, que nunca demonstrou desejo de tirar proveito pessoal da sua
atividade política", disse-me Tarso. "Depois de mais de dez anos sem
conversarmos, minha visita teve finalidade humanística. Encontrei uma pessoa
bastante deprimida, mas com enorme vontade de voltar a viver normalmente."
Foi outra a minha última impressão de
Dirceu. Numa hora lá, ele se afastou e foi ao fundo do jardim. Parecia perdido,
amargurado, sem saída. Mudara tanto que talvez não soubesse quem era. Exilado
de si mesmo, escorava-se nos próprios restos, na sua ruína. Lembrava o poeta
peregrino, improvável sombra florentina sob os mil sóis do Planalto Central.
A derrocada de um homem tem uma
dimensão moral que a sociologia e a psicologia não alcançam. Mas a poesia pode
fornecer imagens que propiciam o seu entendimento. No primeiro canto da
"Divina Comédia", Dante se depara com o leopardo, o leão e a loba na
selva selvagem da vida.
O significado das bestas é matéria de
debate entre eruditos desde a Idade Média. No caso de José Dirceu, o leopardo é
a fraude, o leão, a soberba, e a loba, a incontinência, o deixar-se levar pelos
sentidos mais prementes. Encurralado pelas três feras, ele desce agora ao fundo
do inferno.
MARIO SERGIO CONTI, 60, é colunista do
jornal "O Globo" e apresentador do programa "Diálogos", da
GloboNews.
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